Acórdão nº 6284/2006-8 de Court of Appeal of Lisbon (Portugal), 15 de Fevereiro de 2007

Magistrado ResponsávelPEDRO LIMA GONÇALVES
Data da Resolução15 de Fevereiro de 2007
EmissorCourt of Appeal of Lisbon (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório 1.

T.[…] e M.[…] apresentaram uma declaração para casamento e requereram a instauração do respectivo processo de publicações na […] Conservatória do Registo Civil […]. 2. O Exmo Sr. Conservador do Registo Civil […] indeferiu a pretensão das requerentes, por serem pessoas do mesmo sexo, o que contrariava o disposto no artigo 1577º do Código Civil. 3. Não se conformando com esta decisão, as requerentes, ao abrigo do disposto no n° 1 do artigo 286° do Código do Registo Civil, interpuseram recurso da decisão do Exmo. Senhor Conservador que indeferiu o pedido de instauração do processo de publicações que antecedia a celebração do casamento entre ambas com fundamento na violação do disposto no artigo 1577º e na alínea e) do artigo 1628° do Código Civil. 4.

O Ex.mo Sr. Conservador do Registo Civil […] manteve a decisão (nº3 do artigo 288º do Código de Registo Civil).

  1. O processo foi então remetido com vista ao Ministério Público tendo o mesmo concordado na íntegra com a decisão proferida pelo Exmo Senhor Conservador.

  2. Foi proferida sentença que "confirmou assim na íntegra a decisão recorrida".

  3. Inconformadas com esta decisão, as RR interpuseram recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos e com efeito suspensivo, tendo, nas suas alegações de recurso, apresentado as seguintes (transcritas) conclusões: 1ª- Vem o presente recurso da decisão proferida pelo Mmº. Juiz a quo, que indeferiu a pretensão das requerentes, que pugnavam pela revogação do despacho proferido pelo Exmº. Senhor Conservador […] que indeferiu o pedido de instauração do processo de publicações que antecedia a celebração do casamento entre ambas, 2ª- com fundamento na alegada violação do disposto no artigo 1.577º e na alínea e) do artigo 1.628º, ambos do Código Civil, uma vez que as requerentes são do mesmo sexo.

    Ora, 3ª- Possuindo ambas personalidade e capacidade jurídica e judiciária e, por isso, plena capacidade matrimonial, tal como esta vem exigida nos artigos 1.596º e 1.600º do Código Civil, não podem as recorrentes de forma alguma conformar-se com tal decisão, pois ela não só é ilegal mas, acima de tudo, é profundamente injusta! De facto, 4ª- se o artigo 1.577º do Código Civil define casamento como «o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida» 5ª- e se, por sua vez, a alínea e) do artigo 1.628º do Código Civil fere de inexistência jurídica o casamento celebrado entre duas pessoas do mesmo sexo, 6ª- e se o casamento não é mais do que um contrato, mas um contrato de natureza exclusivamente civil, ao qual deveriam ser imediatamente aplicáveis as regras normais da Ordem Jurídica portuguesa, qualquer determinação que impeça a sua celebração será clara e inequivocamente inconstitucional!!! Com efeito, 7ª- a inclusão da expressão «de sexo diferente» no corpo do artigo 1.577º do Código Civil e que, por isso, impede dois cidadãos do mesmo sexo de «constituir família mediante uma plena comunhão de vida», 8ª- está irremediavelmente ferida de inconstitucionalidade.

    De facto, 9ª- a Constituição da República Portuguesa determina inequivocamente no seu artigo 13º, sob a epígrafe «Princípio da Igualdade»: «1 - Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

    2 - Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual

    .

    Tanto assim que 10ª- o legislador constitucional de 2004 (Lei Constitucional nº 1 /2004) entendeu completar a formulação inicial do Princípio da Igualdade acrescentando ao artigo 13º da Constituição a expressão «ou orientação sexual».

    11ª- Ora, o significado do aditamento deste «reforço» da formulação constitucional do Princípio da Igualdade tem, obviamente, um só significado: impedir constitucionalmente a discriminação dos cidadãos portugueses também em razão do facto de serem homossexuais.

    Deste modo, 12ª- se a Constituição Portuguesa como «força geradora de direito privado» terá de ser respeitada e acatada não como «mera directiva programática de carácter indicativo», 13ª- mas como uma norma vinculativa que deve ser imediatamente «acatada pelo legislador, pelo juiz e pelos demais órgãos estaduais».

    14ª- então constitui inequívoca violação constitucional a aplicação prática por parte de qualquer agente de uma norma que contrarie a determinação constitucional do Princípio da Igualdade em razão da orientação homossexual de um cidadão.

    Por outras palavras, 15ª- se o Código Civil impede no seu artigo 1.577º a celebração de um simples e mero contrato de natureza e consequências exclusivamente civis, como é o contrato de casamento, a pessoas do mesmo sexo, 16ª- então a expressão «de sexo diferente» contida naquela norma é, obviamente, inconstitucional! Mas mais: 17ª- está ainda constitucionalmente determinado, mais exactamente no artigo 36º da Constituição, que «Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade», 18ª- como no artigo 67º está estatuído que «A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros».

    Assim, 19ª- também por força destas determinações constitucionais não poderá ser vedado a um determinado cidadão o acesso à celebração de um contrato de casamento em razão da sua orientação sexual, 20ª- assim, o impedindo, também de «constituir família em plena comunhão de vida» e «em condições de plena igualdade».

    Até porque, 21ª- nenhuma razão há para impedir duas pessoas do mesmo sexo de celebrarem um simples contrato de casamento.

    22ª- Por isso mesmo, tal foi inequivocamente considerado no acórdão do Tribunal Constitucional nº 309/85: «Assim, a caracterização de uma norma como inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, depende, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, isto é, falta de razoabilidade e consonância com o sistema constitucional».

    Assim sendo, 23ª- nenhuma razão poderá assistir ao Mmº. Juiz a quo quando este, depois de considerar que o «princípio da liberdade contratual» estabelecido na lei civil contém em si próprio uma espécie de "auto-limitação" decorrente da sua formulação inicial, de onde consta a expressão «dentro dos limites da lei», 24ª- acaba por ignorar que tais «limites da lei» significam não os limites deste ou daquele diploma legal, seja ele ou não o Código Civil, mas os limites da «Ordem Jurídica» portuguesa no seu conjunto, escalonados de acordo com a sua valoração hierárquica dentro dessa mesma Ordem Jurídica.

    Ou seja, 25ª- a "auto-limitação" contida na própria formulação do princípio da liberdade contratual, que determina que esta se deverá configurar "dentro dos limites da lei", somente poderá vigorar na medida em que se interprete essa mesma "auto-limitação" depois de se apreciar a sua conformidade constitucional.

    Depois, 26ª- constituiu ainda argumento do Mmº. Juiz a quo a interpretação do artigo 36º da Constituição, no sentido de que o mesmo impediria a extensão da noção de casamento a pessoas do mesmo sexo porque, diz-se, «a proibição de discriminações não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento».

    Ora, 27ª- se isso é verdade, o que é também é um facto que essas "diferenciações" não poderão de forma alguma ser arbitrárias ou irrazoáveis, isto é, desprovidas de fundamento material bastante, designadamente a chamada discriminação intolerável.

    No entanto, 28ª- o que é verdade é que não se encontra nenhuma razoabilidade na proibição da celebração de um mero e simples contrato de natureza civil depois de se apurar a orientação sexual de quem o pretende celebrar! Pelo contrário, 29ª- se virmos bem, e paradoxalmente, é o próprio argumento utilizado pelo Mmº. Juiz a quo que melhor clarifica a inconstitucionalidade e a irrazoabilidade da proibição do casamento a pessoas do mesmo sexo! 30ª- Até porque tal argumento é absolutamente inadmissível num Estado de Direito, e tão inaceitável como irrazoavelmente preconceituoso! 31ª- Aceitá-lo significaria defender uma sociedade que quer tapar o Sol com uma peneira e varrer para debaixo do tapete uma parte...

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