Acórdão nº 0730371 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 12 de Abril de 2007
Data | 12 Abril 2007 |
Órgão | Court of Appeal of Porto (Portugal) |
Acordam no Tribunal da Relação do Porto I.
B………. instaurou acção com forma de processo especial de consignação em depósito contra C………. .
Pediu que por via da consignação em depósito da quantia de € 43.896,62 efectuada pela autora fosse declarada extinta a obrigação.
Como fundamento, alegou, em síntese, que, em 08.06.94, prometeu comprar à ré, e esta prometeu vender-lhe, a parcela de terreno identificada no artº 1º da petição inicial, pelo preço de € 598.557,48, tendo entregado à ré, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 79.807,66, e ficando acordado que a restante quantia seria paga no prazo de 5 anos, em prestações mensais e consecutivas, no montante unitário de € 43.893,62, vencendo-se a primeira no dia 08.06.05, e assim sucessivamente.
Em 08.06.05, a autora abriu uma conta bancária, da qual é co-titular a ré, onde depositou a quantia de € 40.000,00; dias mais tarde verificou que, por lapso, depositou quantia inferior à devida, tendo procedido, em 16.06.05, ao depósito do remanescente em falta (€ 3.893,62€), facto este que comunicou à ré.
Desde a data do primeiro depósito, a ré sempre recusou a recepção da referida prestação de reforço do sinal, tendo "ameaçado" resolver o contrato promessa.
A ré contestou, impugnando parcialmente os factos alegados pela autora e pedindo a condenação desta como litigante de má fé, em multa e indemnização que contemple o reembolso de todas as despesas suportadas com a acção, incluindo os honorários ao advogado.
Percorrida a tramitação normal, foi proferido despacho saneador, com valor de sentença, que:
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Julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu a ré do pedido.
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Condenou a autora como litigante de má fé no pagamento da multa de 3 UC's e a pagar à ré a indemnização que viesse a ser fixada nos termos do nº 2 do artº 457º do CPC.
Inconformada, a autora recorreu, formulando as seguintes Conclusões 1ª - Nos presentes autos de acção de consignação em depósito, o tribunal a quo decidiu sobre o mérito da causa no despacho saneador, sem previamente ter partilhado com as partes a sua leitura do processo e do direito em causa.
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- Na audiência preliminar realizada, e tendo as partes sido notificadas nos termos e para os efeitos de todas as alíneas do artigo 508º-A do CPC, o tribunal a quo apenas teve notícia da posição que as partes, atomisticamente, perfilhavam sobre a matéria dos autos, sempre na perspectiva da elaboração da matéria assente e da base instrutória.
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- O Tribunal a quo não podia, sob pena de incorrer em grave violação do principio do contraditório e de sujeitar as partes a decisões-surpresa, preterindo formalidades processuais expressamente prescritas na lei, sem antes dar ampla possibilidade às partes de, querendo, se pronunciarem sobre o enquadramento factual que pretende dar ao litígio.
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- Deste modo, o tribunal a quo dispensou a selecção da matéria de facto relevante, e bem assim a apresentação de prova.
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- Contrariamente ao que sustenta a sentença recorrida, os presentes autos comportavam matéria de facto controvertida, como se constata do artº 3º da contestação da recorrida, onde impugna os artºs 9º a 20º da petição inicial.
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- Da fundamentação da sentença proferida resulta que o tribunal, infundadamente, considerou desnecessária a matéria de facto controvertida, tendo decidido apenas com base na matéria de facto provada por documento.
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- Atentemos na matéria de facto invocada pela autora e impugnada pela ré na contestação: a) Na decisão proferida o tribunal recorrido dá como não provado que a autora tenha tentado contactar por diversas vezes a ré, facto que, não obstante constar de uma carta remetida à autora, junto como documento nº 2, era susceptível de prova testemunhal.
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Na petição inicial, a autora invoca a recusa da ré em receber a prestação de que era credora (artºs 16º a 18º), pois que, e como, de resto, é facto assente, a autora efectuou dois depósitos em conta bancária por si aberta em nome da ré, nunca tendo esta última manifestado vontade de receber aquele pagamento.
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- Não conheceu o tribunal recorrido de tais factos, nem concedeu à parte que os invocou a oportunidade de os demonstrar, através de produção de prova.
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- Acresce que, na resposta à contestação - na parte em que a mesma foi admitida -, a autora invocou matéria de facto que sustentava o procedimento por si adoptado - de depósito do reforço de sinal em conta por si aberta de que era co-titular a ré -, pois, visava a recorrente interpelar a recorrida pela falta de regularização da situação de clandestinidade em que o imóvel prometido se encontrava.
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- A essencialidade de tal facto é incontornável; na verdade, como é inquestionavelmente sabido, não é possível transmitir construções urbanas sem a respectiva licença de utilização.
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- Não obstante a recorrente conhecer a situação de clandestinidade da edificação à altura em que celebrou o contrato-promessa, a verdade é que, quando se aprazava a realização do reforço de sinal, a recorrente tomou conhecimento da impossibilidade de legalização da construção, através de uma fiscalização feita pelos serviços competentes da CM de Chaves.
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- Ficou, ainda, relegada como não essencial para a decisão a proferir a recusa da ré em receber o depósito que havia sido efectuado em conta bancária por si também titulada.
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- Posto isto, cumpre dizer que, caso o tribunal tivesse seleccionada a matéria de facto controvertida, porventura não teria concluído que "nenhuma razão válida foi apresentada pela autora para ter tomado semelhante atitude, levando este tribunal a concluir que a mesma, ao ter sido interpelada para cumprir, e ao não ter procedido em conformidade incorreu em mora, ()." 14ª - Como supra já ficou demonstrado, a matéria de facto controvertida é essencial para a decisão que venha a ser proferida.
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- Na verdade, o tribunal recorrido não deu oportunidade às partes para se pronunciarem sobre a selecção da matéria de facto, identificando os factos considerados assentes e os que devem considerar-se controvertidos, nem apresentação de meios de prova.
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- O despacho saneador constitui assim uma decisão-surpresa, proibida pelo artº 3º do CPC e pelo direito fundamental a uma tutela jurisdicional efectiva e participada, tutelado pelo artº 20° da CRP, que resultam assim violados.
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- Na fundamentação da decisão proferida, o tribunal recorrido não considerou alguns factos relevantes para a decisão da causa, designadamente quando confrontados com o princípio da boa-fé no cumprimento das obrigações, o qual seja, a não aceitação pela ré da quantia depositada pela autora na conta bancária aberta por sua iniciativa.
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- A consagração legal do princípio da boa fé no cumprimento do contrato resulta expressamente do artigo 762° no 2 do CC, onde o legislador impõe aos contratantes a boa fé, quer no cumprimento da prestação obrigacional, quer no exercício do direito.
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- Para subsumir as referidas regras de boa fé à matéria de facto nos autos, cumpre, em primeiro lugar, aferir do comportamento das partes "dentro" da relação obrigacional, incluindo no cumprimento dos deveres acessórios.
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- Tomando por referência a matéria de facto considerada pelo tribunal a quo na sentença proferida, e outros, por este omitidos, não obstante estarem provados documentalmente e por acordo das partes, como seja: - Em 08.04.05, a ré respondeu à autora, nos seguintes termos: li Quanto aos factos que me questiona, informo V. Exª que não tenho que lhe fazer quaisquer relatos relacionados com os meus procedimentos, apenas tenho que lhe entregar devidamente licenciado o prédio objecto do contrato promessa de compra e venda, no momento da escritura definitiva. (...) Informo V. Exª que não tomo conhecimento de cartas extraviadas, nem de recados nas sopeiras dos vizinhos. Aproveito a ocasião para solicitar que seja marcada a data de entrega do baixo com as obras feitas, nomeadamente o chão, as janelas e os esgotos, conforme o combinado, e ainda a cópia da planta que foi assinada pelas duas contraentes no dia da assinatura do contrato promessa." - cfr. doc. nº 1 junto à contestação.
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- Da matéria de facto provada haverá que considerar que a ré sabia que a autora a havia tentado contactar, de outra forma, não teria feito menção no doc. nº 1 junto à contestação de que: "Informo V. Exª que não tomo conhecimento de cartas extraviadas, nem de recados nas sopeiras dos vizinhos." 22ª - Claramente, a ré demonstra conhecer as tentativas de contacto da autora, através dos meios informais, que até ali eram habituais entre as partes, e escusava-se a contactar a autora, de resto, e caso estivesse disposta a prestar os esclarecimentos que aquela lhe havia solicitado, até o teria feito na própria missiva que remeteu à autora em 08.04.05, o que não fez.
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- E não só não o fez, como negou quaisquer esclarecimentos quanto à legalização da construção existente, bem sabendo da premência que tal matéria revestia para a autora, na medida em que a CM de Chaves, tendo tomado conhecimento da falta de licenciamento da edificação urbana lá existente, realizara uma fiscalização ao local.
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- Considerando que a autora não tinha legitimidade para iniciar qualquer procedimento de licenciamento, necessitava da intervenção da ré.
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- De forma a evitar a inutilidade do fim do contrato pela falta de licenciamento, a autora tentara inúmeras vezes contactar a ré, de forma a obter informação acerca do licenciamento da construção, pois, não obstante, a licença de utilização ser essencial para a outorga da escritura de compra e venda, a verdade é que, estando já a autora na fruição e gozo da parcela, nos termos da cláusula 10ª do contrato promessa, não poderia continuar a utilizar a construção lá existente, dadas as interpelações da CMC, para proceder ao licenciamento, até porque, fora a autora informada da impossibilidade de licenciamento, em virtude da inclusão da referida parcela na RAN.
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- A abertura da referida conta bancária pressuponha efectivamente o contacto...
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