Acórdão nº 0614833 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 18 de Outubro de 2006

Magistrado ResponsávelMANUEL BRAZ
Data da Resolução18 de Outubro de 2006
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Acordam no Tribunal da Relação do Porto: No .º juízo do Tribunal Judicial da comarca de Estarreja, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, foi o arguido B………. submetido a julgamento e condenado, pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelo art. 132º, nºs 1 e 2, alíneas h) e i), do CP, na pena de 17 anos de prisão.

Do acórdão que assim decidiu interpôs recurso o arguido, sustentando, em síntese, na sua motivação: -Na audiência de julgamento foi permitido ao advogado subscritor do pedido de indemnização civil fazer perguntas às testemunhas, o que, por não ter havido constituição de assistente, é ilegal e gerador de nulidade.

-É errada a decisão proferida sobre matéria de facto na parte em que considera assente que, desde a data em que o arguido teve conhecimento da relação amorosa da sua companheira com a vítima, passou a importuná-los e a observar os respectivos movimentos e hábitos; -Como errada é na parte em que não teve como provado que -o arguido, dirigindo-se à mesa onde jantava a vítima e porque ela estava de costas para si, lhe tocou com a extremidade do cano da espingarda de caça na cabeça com o intuito de chamar a sua atenção e fazê-lo voltar para si; -a C………. se levantou de imediato da mesa; -a vítima, ao sentir o toque na cabeça, se voltou para o arguido e se levantou; -a C………. se levantou e se interpôs entre o arguido e a vítima; -o arguido afastou a C………. com o braço esquerdo e, ao segurar a espingarda com a mão direita, disparou sem apontar; -o arguido no dia 14 de Janeiro de 2005 disse à sua filha D…….. que se separara definitivamente da C……….; -no dia seguinte ia com a C………. almoçar ao E……….; -meteu na bagageira do automóvel a espingarda de caça e demais objectos destinados à caça que se encontravam na cave em local de difícil acesso; -antes de entrar no restaurante onde se deu o homicídio, pelas 20 horas 56 minutos e 6 segundos, o arguido telefonou à vítima para o telefone 93…….; -e, pelas 21 horas 2 minutos e 20 segundos, telefonou ao seu amigo F………. para o telefone 91…….; -o arguido tem experiência de situações traumáticas; -o arguido tem pesadelos recorrentes, com cenas traumáticas específicas e "flash backs diurnos"; -o arguido apresenta hiperactividade neurovegetativa, com aumento persistente da irritabilidade, do nervosismo, reacções de alarme e perturbações cardiovasculares; -o arguido evita de forma persistente os estímulos que desencadeiam memórias traumáticas (fotos, filmes, notícias, conversas); -o arguido sofre de perturbação pós-traumática do stress (classificação internacional das doenças 10-F.43.1) com origem na exposição ao combate e de curso crónico; -o arguido apresenta uma perturbação obsessiva da personalidade, com traços paranóides obsessivos e narcisísticos (classificação internacional das doenças 10-F-60.5); -a deformidade da mão direita apresentada pelo arguido dificulta todas as pegas e actos de preensão que exijam a normal mobilidade do terceiro e do quinto dedo da mão direita; -manejar uma espingarda caçadeira com precisão para um destro exige que a sua mão direita não apresente as limitações referidas supra e de que o arguido é portador; -o arguido tem horror à mentira; -o arguido está profundamente arrependido daquilo que fez.

-Deviam ainda ser dados como provados outros factos não alegados na contestação, mas que resultaram da discussão da causa.

-O homicídio nunca poderá ser considerado qualificado.

-O crime cometido é o do homicídio simples do art. 131º.

-E apenas com dolo eventual.

-A pena deve ser reduzida.

O recurso foi admitido.

O MP em ambas as instâncias pronunciou-se no sentido do não provimento do recurso.

Cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP, o arguido nada veio dizer.

Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir.

Foram dados como provados os seguintes factos (transcrição): O arguido e C………. viviam um com o outro, como se de marido e mulher se tratasse, desde 1979, tendo desta relação nascido uma filha, M………. .

Em data não apurada do ano de 2004, o arguido teve conhecimento do relacionamento amoroso da referida C………. com G………. através daquela e, desde essa altura, passou a importuná-los e a observar os respectivos movimentos e hábitos.

Soube igualmente que o mencionado G………. era dono de um apartamento, sito na Rua ………., nº ., ………., na ………., comarca de Estarreja e que ali costumava dirigir-se na companhia da identificada C………..

No dia 14 de Janeiro de 2005, sexta-feira, suspeitando que a referida C………. se deslocara à ………. a fim de aí se encontrar com o mencionado G………., o arguido resolveu dirigir-se àquela localidade no ligeiro de passageiros, marca SAAB de cor ………., com a matrícula CN-..-.., sua pertença.

Antes de sair do Porto, o arguido passou pela sua residência, a fim de se munir da sua espingarda de caça de calibre 12, marca "H……….", com o nº ……, de dois canos lisos e com o comprimento de 70,5 cm, de percussão central e culatra fixa, manifestada e registada em seu nome, bem como de uma cartucheira de caça, vários cartuchos de calibre 12, um punhal com o comprimento total de 25,5 cm, sendo 15,5 cm de lâmina, com punho em metal e osso, com os dizeres "………" e um canivete de cor cinzenta, com o comprimento total de 21 cm, sendo 10 cm de lâmina, com soqueira no punho, de cor preta.

Chegado à ………., passou junto da habitação de G………. , em cujo exterior viu a viatura pertença da citada C………. .

Resolveu então ir estacionar o mencionado ligeiro de passageiros, marca SAAB, com a matrícula CN-..-.., a cerca de 200 metros daquele local e, ao sair do seu interior, cerca das 20h00, constatou que a C………. e o G………. saíam da habitação deste, fazendo-se transportar no veículo desta.

O arguido apercebeu-se que os mesmos iam jantar na companhia um do outro, pelo que entrou de novo no seu ligeiro de passageiros e, após alguns momentos, percorreu várias ruas com o intuito de localizar aqueles, passando junto de três restaurantes que conhecia na ………. .

Ao chegar ao último desses restaurantes, denominado "I……….", sito no ………., naquela localidade da ………., pertencente à sociedade "J………., Lda.", o arguido viu pela janela de tal estabelecimento que a C………. e o G………. se encontravam sentados a uma mesa do respectivo salão de refeições.

Após constatar que aqueles ali se encontravam e sem que os mesmos se tivessem apercebido da sua presença naquele local, o arguido imobilizou o ligeiro de passageiros em que se fazia transportar no mencionado ………., em frente ao mencionado estabelecimento.

O arguido saiu do seu veículo, pegou então na referida espingarda de caça e carregou-a com dois cartuchos, de calibre 12.

Pegou ainda em quatro cartuchos do mesmo calibre, de 70 mm, de cor vermelha e de chumbo 6, e colocou-os no bolso esquerdo do colete tipo Kispo, que trajava na altura.

Já com a referida arma municiada e munido dos mencionados cartuchos, o arguido dirigiu-se para o referido restaurante "I……….", cujo salão de refeições se encontrava repleto de clientes, a jantar.

Após entrar no referido estabelecimento, cerca das 21h00, levando a mencionada espingarda de caça ao alto e encostada ao corpo, o arguido percorreu em passo rápido o hall de entrada em direcção ao salão de refeições, desceu os degraus de acesso a este salão e, de imediato, abeirou-se da mesa onde continuavam sentados e a jantar a referida C………. e G………., situada à esquerda de quem entra no mencionado salão, aquela de frente e este de costas para a zona de acesso a tal salão.

Uma vez ali, dirigindo-se a estes, disse de viva voz "Sou corno há 15 anos, mas hoje isso vai acabar!".

O referido G………., surpreso com a presença do arguido, levantou-se de imediato da mesa e virou-se, ficando de frente para este, ao passo que a C………. gritou "B………. está quieto... não faças isso!".

Encontrando-se o G………. já levantado e de frente para si, e sem que este tivesse esboçado qualquer gesto, nem sequer o de afastar de si o cano da arma ou sequer procurar agarrá-lo, o arguido de imediato lhe apontou a referida arma de fogo à região torácica e, a menos de dois metros de distância, disparou um tiro sobre o mesmo, atingindo-a naquela zona corporal.

O referido G………. ainda se manteve em pé por breves instantes, levando uma das mãos à zona atingida e, após exclamar "Olha, matou-me!", caiu no pavimento e ali ficou sem mais se mover.

Nos instantes seguintes, a testemunha L………., empregado de mesa do referido estabelecimento, instintivamente, com receio de que o arguido voltasse a disparar, dirigiu-se ao mesmo pelas costas e agarrou a mencionada espingarda de caça, levantando o respectivo cano na direcção do tecto.

Nos primeiros momentos, o arguido resistiu, mas acabou por largar a referida arma de fogo e por ser manietado, com a ajuda de clientes que ali se encontravam.

Passado algum tempo, ainda no local, dirigindo-se às diversas pessoas que ali se encontravam, o arguido disse ainda "Fiz o que tinha de ser feito! Gostava de saber se algum dos cavalheiros aqui presentes, nas mesmas circunstâncias, não faria o mesmo?".

Em consequência directa e necessária do aludido disparo, o malogrado G………. sofreu ferida perfuro-contusa no tórax, com orifício elíptico na transição da região do mamilo esquerdo, apresentando em seu redor e no seu interior numerosos grãos de chumbo, hemotórax, fracturas esquirolosas, com presença de vários chumbos e numerosos fragmentos, dos arcos anteriores da 4ª, 5ª, 6ª e 7ª costelas esquerdas, rotura do saco pericárdico e perfuração do pericárdio, observando-se uma bucha de plástico aberta no seu interior, laceração e contusão cardíaca (esfacelo da face anterior do ventrículo esquerdo), laceração e contusão pulmonar (focos de contusão nos dois lobos do pulmão esquerdo com a presença de muitos bagos de chumbo).

A direcção do trajecto seguido pelo projéctil foi da frente para trás e ligeiramente da direita para a esquerda.

Tais lesões traumáticas torácicas, produzidas por projéctil de arma de fogo de caça, com um orifício de entrada na região do mamilo esquerdo, determinaram...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT