Acórdão nº 06P4055 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 18 de Janeiro de 2007

Magistrado ResponsávelCARMONA DA MOTA
Data da Resolução18 de Janeiro de 2007
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. Os factos "AA" e o arguido viveram maritalmente durante cerca de um ano e meio, dessa relação tendo nascido em 12.8.96 BB. Por o arguido ter imprimido um cariz tumultuoso, violento e inconstante a esse relacionamento, a assistente pôs-lhe termo dois ou três meses depois de o filho de ambos nascer. Após um breve período de tempo marcado pelo seu interesse pelo filho, o arguido afastou-se, não mais se importando com a sua sorte. Assim, o curador de menores propôs em 21.4.97 regulação do poder paternal que teve decisão provisória em 03.6.97, homologação de acordo definitivo em 12.11.97 e incidente de incumprimento intentado pela assistente contra o arguido em 15.6.98, por 11 meses de não pagamento, desde 05.7.97, da pensão mensal de alimentos no montante de 27.500$ mais ½ de todas as despesas de saúde do filho. O Centro Regional de Segurança Social do Norte informou entretanto (06.8.99) que o arguido não constava como beneficiário. Decorridos alguns anos, por insistência do filho, que demonstrava querer conhecer o pai, a assistente desenvolveu esforços para que esse desejo se concretizasse, desde logo aconselhando-se junto da mãe do arguido, segundo a qual este estaria melhor. Como a assistente constatou que o arguido estava menos agressivo (...), em finais de Set02 este retomou o contacto com o filho por intermédio da assistente. Dessa forma, o arguido e a assistente reaproximaram-se e reataram o relacionamento amoroso com encontros em bar de praia, na casa da mãe do arguido e na casa da assistente, aqui reatando o relacionamento sexual. Para consolidar e cimentar tal união e igualmente proporcionar ao filho de ambos uma relação de família, assistente e arguido decidiram realizar uma viagem com ele no período do Natal e de passagem de ano que então se avizinhava. Em 12.12.2002, assistente, arguido e filho partiram em viagem, programada de 15.12.2002 a 12.01.2003, para o Brasil. O preço (4.186,07 euros), tal como os extras, foi suportado apenas pela assistente. Ficaram alojados na pousada "...", em Pipa, Rio Grande do Norte. Contudo, com o contacto próximo e diário, alguns dias depois de instalados recomeçaram a tomar forma as anteriores crispações do arguido para com a assistente e que anos antes haviam demandado o termo da relação, desta feita originadas pelas diferentes posturas assumidas individualmente no tocante à indisciplina alimentar e comportamental do filho à mesa das refeições, recusando a assistente a persistência do tratamento ríspido do arguido em relação a ele, que, no entender da mãe até comia bem à mesa mas que, naquele contexto espácio-temporal quente e húmido, não queria comer tudo. O arguido, reactivamente, verbalizava à assistente que ele era o pai e sabia educar e que, se o filho continuasse nas mãos dela, viraria mulher.

As desavenças avolumaram-se e determinaram um crescendo de agressividade e autoritarismo do arguido para com a assistente e o filho, pois "tudo tinha que ser como ele queria", designadamente quanto ao filho. Tais desavenças culminaram numa discussão, no início da madrugada de 02.01.03, entre assistente e arguido quanto à possibilidade de se entenderem sob pena de a assistente, mercê do mau ambiente, regressar com o menor a Portugal antes do termo, em 12.01.2003, da viagem. Então, o arguido abandonou o quarto do "bungalow" da Pousada onde estavam instalados depois de atirar a ponta do cigarro aceso para entre a assistente e o filho. Uma vez este a dormir, a assistente foi procurar o arguido, encontrando-o no bar com terceiros. De volta, já no bungalow, o arguido recusou-se a abrir-lhe a porta do quarto porque tudo ali não lhe pertencia, nem o filho, pelo que a assistente pacientemente aguardou, ouvindo-o colocar as roupas dela, que até rasgou, dentro das malas e bem assim a roupa da criança. Cerca das 05:00 de 02Jan03, a assistente encontrava-se sentada na rede colocada no exterior do "bungalow" da Pousada, por o arguido a ter impedido de pernoitar no quarto. Quando a assistente assim se encontrava, com os pés não assentes no chão e de costas voltadas para a porta de entrada do bungalow e a cerca de um metro de distância desta, foi repentina, inesperada e violentamente agredida pelo arguido, em pé, que, enfurecido, abrira aquela porta e logo a socou na face e pontapeou nas costas. Dada a forma como foi abordada, a assistente ficou completamente à mercê do arguido e impossibilitada de esboçar qualquer gesto de defesa tanto mais que o arguido lhe prendeu os dedos com as mãos e a assistente ajoelhou à sua esquerda, fora da rede. Com a assistente assim manietada, o arguido aproximou a sua cabeça da orelha direita daquela e, fazendo uso dos dentes, num segundo mordeu intensamente com toda a sua força física de desportista de surf até lhe arrancar - parcialmente - entre 60 a 70 % - o pavilhão auricular direito. De seguida, largou a assistente que, com a perda dos sentidos pela enorme dor aguda por tal mordida completamente amputadora de parte do pavilhão, caiu desamparada, pelos dois degraus de acesso da varanda do "bungalow,", ao relvado. Em consequência destas agressões, sofreu a assistente as lesões documentadas nas instrumentais 12 fotografias tiradas logo após sua chegada a Portugal, constantes de fls. 07 a 09, lesões melhor descritas e examinadas nos autos de exame médico constantes de fls. 29-30, 84-86, 160, 170-171, que lhe determinaram directa e necessariamente doença fixável entre a data da sua produção e 31.12.03, com afectação da capacidade de trabalho geral (15 dias) e sem afectação da capacidade de trabalho profissional" (1).

Foi necessária a sua submissão "a dois tempos cirúrgicos principais de reconstrução da orelha direita em virtude de perda de substância por avulsão". "Do evento resultaram, como consequências permanentes, cicatrizes e dismorfia grave do pavilhão auricular direito com desfiguração grave" (2).

O arguido agiu de forma livre, consciente e deliberada, com o propósito concretizado de ofender corporalmente a assistente e de a desfigurar, sabendo que uma forte mordedura humana encerrava tais potencialidades e que a sua conduta era proibida posto que punida por lei.

A forma traiçoeira e cobarde como a acção do arguido foi perpetrada, e o local em que teve lugar, foram causa de uma amargura e comoção enormes, que abalaram a assistente psicologicamente e a colocaram num estado depressivo e de ansiedade, tanto mais que a assistente só recuperou os sentidos quando já se encontrava na recepção do empreendimento. E só contactou com o filho depois de o arguido comparecer em traje de praia no Departamento Policial Local sem lhe dirigir uma palavra. Só no dia 06Jan03 a assistente teve voo para regressar a Portugal com o filho, tendo no interim ficado alojados em casa de recepcionista. As evidentes marcas físicas que as agressões do arguido deixaram na assistente, causaram-lhe, pelo menos durante os primeiros 6 meses após a ocorrência, enorme vergonha, embaraço e constrangimentos perante quem com ela convivia diariamente. Na verdade, ainda hoje [data do pedido indemnizatório], e decorridos quase dois anos sobre as agressões, a assistente exibe ainda cicatrizes e dismorfia grave do pavilhão auricular direito, que ficará para sempre como uma marca física do traiçoeiro acto perpetrado pelo arguido, o que tem traumatizado psicologicamente a assistente, mas também o filho de ambos, posto que em Jan03 iniciou, no Empresa-A, acompanhamento psicológico, por então apresentar "quadro de stress pós traumático subsequente à assistência de uma agressão violenta (do pai sobre a mãe) da qual resultou a amputação de uma orelha desta, a par de múltiplas sequelas no rosto e corpo. Desde então estabeleceu-se um quadro de grande inibição e ansiedade por parte da criança que interferiu notoriamente com o seu desenvolvimento". O pai manteve-se no Brasil mas o terror de ser confrontado com o pai passou a ser uma constante na vida dele. "O acompanhamento da criança e da mãe atenuou a sintomatologia, que foi reactivada com o aparecimento do pai durante o último mês, chegando a ameaçar a mãe de forma explícita". "O mal-estar da criança já se evidencia em aumento de ansiedade, dificuldades em falar, e receio de estar sozinho". "Qualquer forma de aproximação do pai tem um elevado potencial de risco para o seu (precário) equilíbrio" (relatório de avaliação psicológica de fls. 97-98). Em carta de 02.4.2003, expedida de Tibaú do Sul, endereçado à assistente, constante de fls. 47-48, o arguido pediu desculpa à assistente ("Já devia ter escrito esta carta há mais tempo.

O motivo é pedir desculpa do que se passou entre nós") e mandou saudades ao filho ("O pai encontra-se longe mas gosta de ti. Espero que continues a ser um bom aluno e que te portes bem. Quando o Pai puder vai telefonar para falar contigo. Muitas saudades e muitos beijos do teu Pai que te adora"). A mãe do arguido fez expedir, em 24.8.2003, o telegrama documentado a fls. 99, endereçado à assistente, dando conta de "Impossível contacto. Ele está cá desde o dia 10. Tem cuidado. Muitos beijos de saudades".

Cerca das 16:00 de 30.08.03, o arguido, acompanhado de um indivíduo do sexo masculino de porte encorpado e semblante moreno, conhecedor da morada da assistente, foram colocar-se junto ao jardim do prédio onde esta residia, na Rua .... Situaram-se, ostensivamente, em local donde pudessem ser observados a partir das janelas do apartamento onde residia a Assistente, que desconhecia o jeep em que arguido e o tal indivíduo estavam respectivamente no lugar do passageiro e no do condutor. A assistente observou o procedimento do arguido, determinando-a a descer ao jardim para levar consigo, para o apartamento, o filho que entretanto descera para brincar. Nesse contexto, quando a assistente estava na porta de entrada do prédio à distância de 10 metros do jeep, o arguido retirou do vestuário que trajava uma faca e, empunhando-a, descreveu o gesto de a levar ao próprio pescoço em...

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