Acórdão nº 0857/02 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 29 de Março de 2006

Magistrado ResponsávelFREITAS CARVALHO
Data da Resolução29 de Março de 2006
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam em conferência na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo A Associação Nacional das Farmácias, identificada nos autos, recorre do acórdão de 24-01-2002, do Tribunal Central Administrativo, que negou provimento ao recurso contencioso interposto da deliberação n.º 10/99, de 9-03-1999, da Comissão Nacional de Protecção de Dados que indeferiu o pedido, formulado pela recorrente, de autorização para o tratamento informatizado de dados pessoais, designado por SIFARMA 2000.

A recorrente formula as seguintes conclusões: I - A Lei n.° 67/98, de 26 de Outubro, cujos preceitos são invocados pelo Tribunal para fundamentar o respectivo acórdão, não é mais do que a mera transposição para o direito interno da Directiva 95/46/CE do Parlamento e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995.

II - O Tribunal estava obrigado a interpretar e aplicar o direito nacional de acordo com as normas, orientações e princípios da mencionada directiva comunitária, como decorre do princípio da interpretação do direito interno em conformidade com a directiva.

III - Na sequência do que sucedeu com a deliberação da CNPD, o douto acórdão recorrido ao interpretar e aplicar os preceitos da Lei 67/98, não teve em consideração o sentido e alcance das correspondentes normas da directiva comunitária, assim violando o princípio da interpretação do direito interno em conformidade com a directiva.

IV - Por outro lado, o douto acórdão, ao apreciar a legalidade da decisão administrativa sobre o SIFARMA 2000, não tomou em consideração o artigo 35.°, n.°3 da Constituição, na redacção resultante da IV Revisão Constitucional, que veio consagrar o princípio do consentimento do titular como forma de legitimação do tratamento de dados pessoais.

V - Sendo certo que o SIFARMA 2000 implica sempre o consentimento do titular, como consta dos autos e é expressamente reconhecido pelo Tribunal, o douto acórdão violou o referido preceito constitucional.

VI - Concretizando, e pelas razões apontadas, o acórdão violou as seguintes normas: - os n.°s 2 e 4 do artigo 7º da Lei 67/98, em conexão com o n.° 2, alínea a), e com os n°s 3 e 4 do artigo 8.° da Directiva 95/46/CE; - o n.° 1 do artigo 27° e o n.° 1, alínea a), do artigo 28°, da Lei 67/98, em conexão com o n.° 1 do artigo 18.° e com o n.° 1 do artigo 20.° da Directiva 95/46/CE; - o artigo 35.°, n.° 3, da Constituição.

VII - A CNPD afirma que o fundamento decisivo e absolutamente determinante da deliberação tornada foi a circunstância de o SIFARMA 2000 alegadamente não respeitar os requisitos da interconexão de dados, previstos no artigo 9.°, n.° 2, da Lei 67/98, o que implicaria violação desta norma.

VIII - O Tribunal, porém, recusou abertamente tal fundamento, afirmando estarem preenchidos os mencionados requisitos e dando razão à recorrente: segundo o Tribunal, a CNPD violou, efectivamente o artigo 9° n.° 2.

IX - Sendo este, confessadamente, o fundamento decisivo da deliberação da autoridade administrativa e tendo o Tribunal concluído que tal fundamento é improcedente, com a inerente violação, por parte daquela autoridade, do artigo 9.°, n.° 2, a única decisão jurisdicional consequente seria a de conceder provimento ao recurso interposto pela ANF.

X - Não o fazendo, há aqui uma contradição valorativa, que implica, ela própria, violação, por parte do Tribunal, da norma em causa, isto é, do artigo 9°, n.° 2.

XI - O tratamento de dados em apreço só podia - e só pode - ser apreciado no âmbito do n.° 4 do artigo 7.° da Lei 67/98, e não ao abrigo do n.° 2 do mesmo preceito legal.

O Tribunal, ao admitir - ainda que só implicitamente, pois não fornece qualquer explicação ou justificação - que o referido tratamento também pode ser apreciado no quadro da segunda norma, violou aquele primeiro preceito, isto é, o n.° 4 do artigo 7.°.

XII - O Tribunal não aceitou nenhum dos fundamentos invocados pela CNPD para recusar autorização ao tratamento de dados requerido, com base no n.° 4 do artigo 7.°. Descobre, todavia, um fundamento novo - o de o tratamento não ser necessário para os efeitos indicados.

XIII - Em momento algum a CNPD contestou ou pôs minimamente em causa a necessidade do referido tratamento para os efeitos indicados, aparecendo agora o Tribunal a substituir-se à autoridade recorrida, tomando ele próprio, enquanto órgão jurisdicional, uma decisão materialmente administrativa, com a consequente violação da lei.

XIV - Discutindo e apreciando a "necessidade" ou "desnecessidade" do SIFARMA 2000 para os efeitos em causa, o Tribunal vem, por este meio, refazer e refundar o acto da autoridade administrativa, o que lhe está de todo vedado.

XV - Para além disso, mesmo que se admitisse, sem conceder, a possibilidade de o Tribunal apreciar a "necessidade" do tratamento de dados em causa, a verdade é que uma simples consulta dos diversos elementos constantes dos autos não deixa a mais pequena dúvida de que tal tratamento é necessário para os efeitos indicados.

XVI - Acresce que o acórdão faz uma leitura errada da norma em análise, pressupondo que existe uma outra figura jurídica, que designa por "eventuais interessados" no sistema, aos quais competiria legalmente ajuizar da subsunção da sua própria situação à previsão legal do n.°4 do artigo 7.° Ora, o tratamento de dados em causa é concretizado e actuado pela ANF e pelas farmácias, no âmbito da sua própria actividade e na prossecução dos seus próprios fins, como agentes de saúde, integrados no sistema global de saúde, e não por um qualquer "organismo" do Serviço Nacional de Saúde, agora imaginado pelo Tribunal.

XVII - O facto de o SIFARMA 2000 ter efeitos favoráveis relativamente à prossecução de fins públicos, nomeadamente no âmbito global do Serviço Nacional de Saúde, não faz dele um sistema de um qualquer organismo público, afectado à prossecução dos seus próprios fins. Trata-se de um sistema cujo "responsável pelo tratamento", no sentido da alínea d) do artigo 3.° da Lei 67/98, é a ANF, a ser concretizado por esta associação e pelas farmácias.

XVIII - Por tudo isto, bem como ao dizer - ainda a propósito da "necessidade" - que é precisa uma lei concreta que venha reconhecer legitimação à ANF para o tratamento de dados em causa, o acórdão viola frontalmente a lei que já existe e tem à sua frente - isto é, o n.°4 do artigo 7.° da Lei 67/98.

XIX - O acórdão recorrido, embora mencione de passagem a "notificação à CNPD", não retira daí quaisquer consequências jurídicas relativamente à deliberação da CNPD, a qual se apoia exclusivamente no requisito da "autorização", não aplicável ao caso em análise, por este não integrar nenhuma das hipóteses previstas no artigo 28.°, n.° 1.

XX - Deste modo, também por esta via o acórdão viola o artigo 7°, n.° 4, que apenas exige a notificação do tratamento de dados, bem como, tendo em conta a conexão material que liga os dois preceitos, o artigo 27.°, n.° 1, norma que regula a obrigação de notificação à CNPD.

XXI - Ainda que se devesse considerar aplicável o n.° 2 do artigo 7.°, sem conceder, a decisão do Tribunal deveria ser diversa, pois o tratamento de dados em análise obedece a todos os requisitos exigidos por tal norma. Ao decidir de maneira diferente, o acórdão recorrido violou aquele preceito legal.

XXII - Com efeito, face à extraordinária evolução da informática verificada nos últimos tempos, o tratamento de dados referentes à saúde agora proposto é hoje indispensável ao adequado exercício das atribuições legais e estatutárias da ANF e das farmácias, XXIII - Ainda no contexto do n.° 2 do artigo 7º, o Tribunal vem invocar um novo fundamento para tentar sustentar a deliberação da CNPD, fundamento que esta entidade nem sequer equaciona, dando ao invés por assente, na sua lógica argumentativa, que o "problema" agora suscitado pelo Tribunal não faz sentido para a apreciação do SIFARMA 2000. Segundo o Tribunal, quando a norma citada fala de consentimento do titular dos dados, a autorização da CNPD tem de ser posterior ao consentimento.

XXIV - Nada disto se aplica ao SIFARMA 2000, pois este sistema, mesmo partindo do consentimento do titular dos dados, encontra a sua fonte legal de legitimidade noutra norma, concretamente no n.° 4 do artigo 7.°. Todavia, mesmo que se aplicasse, a verdade é que a interpretação dada pelo acórdão à mencionada referência legal não faz qualquer sentido.

XXV - Com efeito, a norma em análise não exige, contra o que pretende o Tribunal, que, nos sistemas baseados, por definição, numa aplicação futura a uma pluralidade de pessoas ainda não determinadas, essas pessoas sejam antecipadamente identificadas: se assim fosse, estaríamos caídos na...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT