Acórdão nº 01188/02 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 18 de Junho de 2003

Magistrado ResponsávelSANTOS BOTELHO
Data da Resolução18 de Junho de 2003
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo: 1 - RELATÓRIO 1.1 "A..., SA." E "..., SA", ambas com sede na Via Norte, ..., Maia, recorrem da sentença do TAC do Porto, de 7-3-02, que julgou improcedente a acção que intentaram contra o Estado Português, onde pediam que este fosse condenado a pagar-lhes, a título de indemnização, a quantia que viesse a ser liquidada em execução de sentença, decorrente da prática de vários actos no âmbito da privatização do ...

Nas alegações formulam as seguintes conclusões: "1ª - O Estado sabia que, com a sua participação no processo de reprivatização do ..., a ... não prosseguia objectivos meramente financeiros e antes encarava a compra de acções do ... como meio de implementar determinado programa, endereçado à realização de certo objectivo - alcançar influência nos destinos do ... e assegurar por essa uma ligação entre o A... e um grupo financeiro (resposta ao quesito 12º) - assim como sabia que esse objectivo só seria alcançável se o processo de reprivatização do ... se orientasse por um modelo de dispersão do capital social, com preferência dos accionistas; 2ª - Foi o próprio Estado que, através e diligências insistentes, sugeriu à ... aquele programa (resposta ao quesito 9º), cuja realização garantiu ser possível através das prestações a que se obrigou; 3ª - Por outro lado, os contactos entre o Estado e o GRUPO PORTUGUÊS desembocaram, sem dúvida, na conclusão de "acordos simples", de entendimentos, quando não até na celebração de um contrato verdadeiro e próprio; 4ª - O Estado e o GRUPO PORTUGUÊS (... incluída) entraram numa relação particular, por via da qual aquele pretendeu influenciar as decisões e os planos de vida dos respectivos membros através de "declarações comprometedoras" especificamente endereçadas ao mesmo GRUPO PORTUGUÊS, induzindo-os não só a não alienarem das suas acções do ... como a reforçarem as suas participações no Banco, através da "promessa" de que no processo de privatização do ... seria sempre dada preferência aos accionistas e se prosseguiria um objecto de dispersão do capital social.

5ª - A mesma mensagem foi, de resto "irradiada" por outros actos (incluindo actos legislativos) e declarações que, não tendo o GRUPO PORTUGUÊS como destinatário particular, não deixaram, obviamente, pelo seu carácter público de chegar ao conhecimento da ... e dos demais membros do GRUPO PORTUGUÊS e de serem por estes valorados como confirmação e validação pelas das suas expectativas.

6ª - Não pode seriamente questionar-se que a conduta do Estado tinha objectivamente o significado de uma tomada de posição vinculante em relação aos moldes da reprivatização do ... , e que sobre ele pesavam particulares deveres de cautela e de protecção, designadamente deveres de lealdade, que o obrigavam a não frustrar os objectivos das aquisições prosseguidas pela ..., a não diminuir as vantagens alcançadas por esta, nem obstar à obtenção daquelas a que ela podia razoavelmente aspirar; 7ª - Os termos em que o Estado conformou a última fase do processo de reprivatização do ... consubstanciam uma violação patente, grosseria e injustificada dos seus compromissos e da confiança e dos deveres de cuidado acima referida, como aliás foi reconhecido pela Comissão Parlamentar que investigou exaustivamente o dossier; 8ª - O princípio da boa-fé, na sua vertente de protecção de confiança, constitui um princípio geral da actividade administrativa, que só foi consagrado expressamente através do Dec-Lei nº 6/96, de 31 de Janeiro, e da revisão constitucional e 1997, mas que já era aplicável anteriormente por estar implícito no princípio da justiça e no princípio da imparcialidade; 9ª - Na hipótese em que o comportamento lesivo da boa-fé se materializa ou culmina na emanação de um acto administrativo, há ilegalidade desse acto, nada distinguindo neste plano a boa-fé, enquanto subprincípio concretizador da ideia de justiça, dos demais princípios constitucionais e legais que presidem à actividade administrativa, como a igualdade, a proporcionalidade, a imparcialidade, etc., sendo que, de resto, o acto contido no art. 1º do Dec-Lei nº 20-A/95 também infringe os princípios da proporcionalidade e da protecção de direitos e interesses legítimos; 10ª - No mínimo, a violação da confiança cometida pelo Estado gera responsabilidade civil da Administração Pública perante os particulares, visto que estão presentes in specie todos os pressupostos exigíveis (situação de confiança, justificação para essa situação, investimento de confiança, imputação da situação de confiança); 11ª - Por outra via, o acto administrativo de quo agitur viola o art. 296º da Constituição e diversas regras da Lei-Quadro das Privatizações; 12ª - De facto, a modalidade adoptada para a 4ª fase não é a "venda directa, antes constituindo uma modalidade atípica e híbrida (uma espécie de auto-vinculação pública do Estado a aceitar uma OPA lançada no mercado) o que consubstancia uma violação da regra da taxatividade das modalidades de reprivatização; 13ª - Mesmo que se tratasse de uma verdadeira "venda directa", não estavam verificados os pressupostos legais da sua adopção (pois da acordo com a exigência do nº 1 do art. 13º da LQP, se o Dec-Lei nº 321-A/90 tivesse efectivamente querido acolher essas modalidades de negociação excepcionais, teria de ter previsto expressamente os respectivos fundamentos), e ainda que estes se verificassem, não estariam já, de certo, reflectidos no conteúdo do acto administrativo e do caderno de encargos que lhe vai anexo, nem sequer na fundamentação que em preâmbulo é ensaiada; 14ª - Ainda por outra via, mesmo que aquela especial modalidade adoptada fosse em abstracto permitida, a verdade é que a sua adopção in casu seria sempre contrária à Constituição (alínea a) do art. 296º) e à LQP (art. 6º, nº 2), pois estes normativos estabelecem o recurso preferencial às modalidades regulares, sempre que estas garantam a obtenção de iguais ou melhores resultados, avaliados estes do ponto de visto do Estado; 15ª - Acresce que o quadro jurídico da operação de reprivatização assegurava em abstracto e curou de assegurar em concreto uma posição jurídica e factualmente mais vantajosa aos oferentes iniciais quando comparados com eventuais concorrentes, em flagrante contradição com a garantia constitucional da igualdade de tratamento, como também reconheceu a referida comissão Parlamentar; 16ª - Verifica-se, igualmente, incongruência entre a fundamentação e o conteúdo do acto, pois o Governo invocou a necessidade de garantir a "estabilidade accionista" mas essa não era, na verdade, uma sua autêntica e consistente intenção, pois o conteúdo do acto nada se adequa à prossecução desse objectivo; 17ª - Finalmente, a patente violação do dever de boa administração - que é uma directa emanação do "princípio da prossecução do interesse público, constitucionalmente consagrado" - constitui também fonte de responsabilidade civil da Administração; 18ª - Em matéria de actos jurídicos, o conceito de ilicitude a extrair da interpretação do Dec-Lei nº 48051, de 21 de Novembro tem necessariamente de ser um conceito alargado, face ao disposto no art. 6º desse diploma, justificando-se a presunção de que os actos administrativos ilegais são também actos ilícitos, podendo a presunção ser ilidida apenas se a ilegalidade não gerar invalidade ou se a norma legal violada se orientar clara e exclusivamente para a protecção do interesse geral, sem qualquer refracção nas posições jurídicas dos particulares (direitos subjectivos, interesses legítimos, interesses difusos ou expectativas jurídicas); 19ª - Relativamente ao princípio da boa-fé, na sua vertente de protecção da confiança, é inquestionável que o princípio violado se destina à protecção da esfera jurídica dos particulares, uma vez que a razão de ser do princípio em causa é, precisamente, a de pôr os sujeitos a salvo de condutas lesivas dos seus interesses e, em caso de violação, de lhes conferir meios para reagir adequadamente em defesa desses mesmos interesses; 20ª - O acto de privatização em crise, ao optar pela venda directa, ofende direitos ou interesses legítimos consolidados durante o seu próprio procedimento, quando a Administração foi reduzindo a sua discricionariedade; 21ª - As regras sobre reprivatização não se destinam apenas a proteger o bem comum, o interesse de todos os cidadãos. A sua observância é exigível em nome da tutela dos interesses que já tenham tomado posições no âmbito de um concreto processo de reprivatização. Para além disso, têm de respeitar-se os direitos já constituídos, ao abrigo das fases anteriores ou de acordo conexos.

22ª - A negação da tutela jurisdicional a estas situações subjectivas das Recorrentes - que é o que a sentença do TAC na realidade faz - constitui, aliás, uma violação do direito fundamental de tutela, uma interpretação inconstitucional das regras sobre a privatização em geral e do ... em especial, que, para os devidos efeitos, expressamente aqui se deixa arguida.

23ª - Colocando-nos fora da perspectiva da responsabilidade pré-contratual, para analisarmos o problema na óptica dos vícios do acto (incluindo o que decorre da violação da boa-fé, ou da justiça ou da imparcialidade), e da sua consequência necessária, a da ilegalidade/ilicitude do acto de reprivatização, não há lugar a considerar a questão do dano negativo/dano positivo. Há já que considerar, sim, se o acto de reprivatização provocou prejuízos e, em caso afirmativo, reconhecer o direito à indemnização.

24ª - Sempre que se aplique o regime do Dec-Lei nº 48051, por outras palavras, todos os prejuízos sofridos pelo lesado são indemnizáveis desde que possam ser imputados ao facto lesivo nos termos da doutrina da causalidade adequada; 25ª - De qualquer forma, sempre se dirá que a ideia de limitar a responsabilidade in contrahendo ao chamado interesse negativo vem sendo abandonada pela jurisprudência portuguesa e pela doutrina, maxime para o caso de a conduta...

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