Acórdão nº 035735 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 30 de Janeiro de 2002

Magistrado ResponsávelJ SIMÕES DE OLIVEIRA
Data da Resolução30 de Janeiro de 2002
EmissorSupremo Tribunal Administrativo (Portugal)

Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, 3ª Subsecção:- I -A....

, com sede em Lisboa, recorre contenciosamente do despacho do Secretário de Estado da Administração Local e do Ordenamento do Território, de 17.6.94, rectificado por despachos de 29 e 30 de Junho seguinte, que considerou parcialmente incompatível com as regras do Plano Regional de Ordenamento do Território do Algarve (PROTALI) o alvará de loteamento e de obras de urbanização nº 19/88.

Alega a recorrente ser titular do alvará de loteamento e de obras de urbanização emitido pela Câmara Municipal de Lagos, tendo aquelas obras sido totalmente executadas e prestes a serem definitivamente recebidas.

Por força da publicação do Dec-Lei nº 351/93, de 7.10, a recorrente teve de requerer, a posteriori, a confirmação da compatibilidade do seu alvará com o PROTAL, entretanto aprovado pelo Dec. Reg. nº 11/91, de 21.3, o que fez em 4.2.94.

No entanto, pelo despacho recorrido foi declarada a incompatibilidade do referido alvará com o PROTAL, "na área de loteamento a nascente do existente Bairro SAAL" e a compatibilidade da zona remanescente.

Este acto é ilegal, por "impossibilidade do respectivo objecto ou falta absoluta de base legal", geradora do vício de violação de lei, que resulta das seguintes violações da Constituição pelo Dec-Lei nº 351/93: a) É organicamente inconstitucional, pois vem restringir e eliminar a faculdade de dispor dos lotes de terreno para neles se edificar, que faz parte do seu direito de propriedade. Dado que este é um direito fundamental análogo aos direitos, liberdades e garantias, existia reserva relativa de competência da Assembleia da República, mas o Dec-Lei nº 351/93 não foi aprovado pelo Governo ao abrigo de autorização legislativa parlamentar (art. 168º, nº 1, al. b) da C.R.P.).

  1. Outra inconstitucionalidade orgânica resulta de o diploma dispor em matéria de tutela administrativa sobre as autarquias locais, pois o respectivo estatuto integra a reserva relativa de competência da Assembleia da República e não foi aprovado ao abrigo de autorização legislativa parlamentar (art. 168º, nº 1, al. s), da Constituição).

  2. O referido diploma atribuiu eficácia retroactiva às normas que aprovaram os 4 planos regionais de ordenamento do território até hoje conhecidos, em matéria de direitos, liberdades e garantias, ofendendo o preceito do nº 3 do art. 18º da Constituição, que proíbe que as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias tenham eficácia retroactiva.

  3. Ao determinar a reapreciação dos actos de licenciamento válidos, praticados pelos órgãos competentes e no respeito pelas leis em vigor, à luz de normas posteriores por si próprio editadas, o Governo infringiu o princípio da protecção da confiança, corolário do Estado de Direito Democrático consagrado no art. 2º da Constituição.

  4. Ofende o mesmo diploma, além disso, o princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidas dos cidadãos, reconhecido pelo nº 1 do art. 266º da C.R.P..

  5. Viola também o princípio da proporcionalidade (art. 266º, nº 2), porquanto não faz qualquer distinção em função do suposto grau de desconformidade entre o alvará de loteamento e o plano, permitindo a declaração de não compatibilidade mesmo em caso de divergências de reduzida monta, em vez de possibilitar a imposição ao interessado de ajustamentos, solução que consubstanciaria a menor lesão ou agressão possíveis.

  6. O Dec-Lei em questão vem criar uma forma de tutela revogatória, ao permitir que um membro do Governo revogue um acto da autoria de um órgão autárquico, isto quando pela Constituição (art. 243º, nº 1) a tutela do Estado sobre as autarquias é de legalidade (inspectiva, segundo o disposto nos arts. 3º e 4º da Lei nº 87/89, de 9.9). Na medida em que só a legalidade contemporânea do acto é verdadeira e própria legalidade, envolvendo a legalidade posterior, por natureza, um juízo de mérito, o diploma ofende o disposto no art. 243º, nº 1, da Constituição.

  7. Simultaneamente, é violado o princípio da descentralização administrativa (art. 239º), face ao cariz centralizador do mecanismo introduzido, que transfere para o Governo competências em matéria urbanística tradicionalmente confiadas às autarquias locais.

    Várias são, por conseguinte, as inconstitucionalidades materiais de que enferma.

    Especificamente quanto ao acto impugnado, invocou a recorrente os seguintes vícios próprios: i) Erro nos pressupostos, com ofensa do disposto no art. 1º, nº 4, do Dec-Lei nº 351/93, pois não é verdade que, como o acto recorrido afirma, não estivessem realizadas quaisquer infraestruturas. As infraestruturas haviam sido completamente executadas e recebidas provisoriamente pela C. M. de Lagos em Julho de 1992, sendo que aquando da vistoria realizada em 6.12.93 com vista à sua recepção definitiva apenas foram declaradas em falta as ligações á futura Via V11 (mas apenas quando a via for executada) e a entrega dos globos dos candeeiros de iluminação pública.

  8. Violação de lei por infracção do disposto no art. 140º, nº 1, al. b), do CPA, na medida em que se pretendeu operar a revogação de um acto constitutivo de direitos validamente praticado.

  9. Duplo vício de forma, pois o acto recorrido foi praticado com preterição da audiência prévia, prevista no art. 100º do CPA, e sem qualquer justificação para a não realização dessa diligência; e não se encontra suficientemente fundamentado de facto, sendo impossível reconstituir o iter cognoscitivo da decisão - não bastava alegar que não se encontravam acauteladas as "condições de segurança e comodidade para a circulação de pessoas e bens" e que a urbanização prevista resultaria "inadequada, desinserida e com aspectos negativos para a actividade turística que se desenvolva na zona", devendo além disso ser patenteados os motivos de facto que levaram a que assim se entendesse. Há violação do disposto nos artigos 124º, nº 1, alíneas a) e c), e 125º, nº 1, do CPA.

    Na resposta ao recurso, a entidade recorrida pugnou pela rejeição do recurso contencioso e defendeu a legalidade do acto, dizendo em substância o seguinte: O acto não é susceptível de recurso contencioso, por ser um acto "meramente declarativo", um simples "certificado". É no PROTAL que reside o verdadeiro acto administrativo, quando dispõe que em certas zonas não podem ser autorizados empreendimentos que não acautelem "condições de segurança e comodidade para a circulação de pessoas e bens", ou sejam "inadequados, desinseridos ou revelem aspectos negativos para a actividade turística que se desenvolva na zona". O acto recorrido somente veio confirmar este acto definitivo e executório, sem nada acrescentar ou alterar ao respectivo conteúdo.

    As leis estabeleces restrições ao direito de propriedade (casos da RAN e da REN) fazendo caducar actos de licenciamento de obras particulares e de loteamento. Se por força da lei certos actos administrativos deixaram de produzir efeitos, eles não foram revogados, antes caducaram ope legis.

    As confirmações de compatibilidade previstas no Dec-Lei nº 351/93 mais não fazem do que atestar se a situação material dos prédios está em conforme com as regras de uso e ocupação dos solos.

    Quanto às inconstitucionalidades, a Administração não pode deixar de aplicar uma lei com fundamento na sua inconstitucionalidade. Mas essa inconstitucionalidade nem sequer existe.

    É tarefa do Estado valorizar o património cultural, defender o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do território - arts. 9º, al., e) e 66º, nº 2, al. b) da C.R.P. Os planos regionais de ordenamento do território são instrumentos essenciais ao serviço desses fins próprios do Estado. E não colidem com as competências municipais, pois são feitos numa visão global e integrada da região a que respeitam, enquanto a administração autárquica apenas tem a visão territorial (logo parcial e restritiva) do seu município, desconhecendo o que se passa no vizinho.

    A liberdade de construir é hoje apenas potencial, porque só pode desenvolver-se no quadro das normas que a disciplinam, e o direito de lotear não é absoluto, mas um direito enfraquecido face aos regulamentos que expressam o ordenamento do território.

    Relativamente aos vícios próprios do acto: A recorrente apenas construiu infra-estruturas referentes a uns quantos lotes da propriedade (de habitação lotes 1, 3 e 5, 6 a 18, 20 a 24 e 26 a 51, de equipamentos, comércio e serviços lotes 2, 4, 19, 25, 52, 53 e 54). Tudo isto na parte situada a poente do Bairro 1º de Maio, ou Bairro SAAL. A nascente nada fez, limitando-se a efectuar umas terraplanagens para um parqueamento em terra batida. Perante o facto de grande parte das infra-estruturas estar realizada e a outra não, o despacho recorrido apenas considerou incompatível a parte nascente do alvará de loteamento, ou seja, a nascente do dito bairro. E quando refere que não foram realizadas quaisquer infra-estruturas apenas se reporta a essa área e não a todo o terreno.

    Aliás, a Câmara Municipal de Lagos, ao aprovar os lotes situados naquela área de terreno violou o Plano Parcial da Meia Praia, aprovado pela Portaria nº 99/86, de 24.3, ainda em vigor á data da aprovação do loteamento da recorrente, já que permitiu que uma faixa de terreno aí destinada a zona de passeio e equipamentos de apoio à praia fosse transformada em área de grande índice de construção.

    Finalmente, o despacho recorrido não pretendeu operar a revogação de acto constitutivo de direitos.

    Com a resposta, o Secretário de Estado recorrido juntou um parecer do Prof. Jorge Miranda.

    A recorrente produziu alegações, enunciando no final as seguintes conclusões: A. O acto recorrido padece de violação de lei por falta de base legal, visto o Decreto-Lei nº 351/93, em cujo regime se baseia, ser inconstitucional, orgânica e materialmente; B. Com efeito, e quanto à inconstitucionalidade orgânica, o referido diploma veio dispor sobre o direito de propriedade - matéria que...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT