Acórdão nº 00375/04 de Supremo Tribunal Administrativo (Portugal), 02 de Dezembro de 2004 (caso None)
Magistrado Responsável | Maria Cristina Gallego dos Santos |
Data da Resolução | 02 de Dezembro de 2004 |
Emissor | Supremo Tribunal Administrativo (Portugal) |
A Federação Portuguesa de Tiro com Armas de Caça e o Clube de Tiro e Caça do Porto, com os sinais nos autos, inconformados com a sentença proferida pelo Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, dela vêm recorrer concluindo como segue: 1. No ordenamento jurídico português os animais são coisas, nomeadamente coisas móveis, nos termos dos arts. 202 no. l e 205°. n°. l do Código Civil, como é confirmado pelo teor do art°. 212 n°. 3 do C.C.
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Ordenamento jurídico português que, tal como o de outras nações civilizadas, acolheu, na Lei 92/95 de 12/9, a doutrina do bem estar dos animais ou "welfarista", a qual procura harmonizar a protecção dos mesmos com respeito de outros valores tutelados pelos ordenamentos jurídicos nacionais.
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No tiro ao voo ou aos pombos, ocorre a morte dos animais imediatamente ou muito rapidamente e sem sofrimento donde o sofrimento quase nunca ter lugar, muito menos de uma forma cruel no sentido empregue pela Lei n°. 92/95.
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Em vez do "sofrimento" e "lesão" versados no projecto que lhe serviu de base, a versão final da lei aprovada exige o "sofrimento prolongado e cruel" e "graves lesões", num claro sentido de reprovar apenas os casos mais extremos de maus tratos e revelando, de tal modo, uma muito menor exigência do que o projecto de lei n°. 530/VI.
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Por outro lado, a alínea j) do n°. 3 do artigo 1°. do projecto de lei n°. 530/VI, constante do Diário da Assembleia da República de 6 de Abril de 1995, pags. 462 e segs., e que proibia expressamente a organização de provas de tiro a animais vivos foi retirada da versão final.
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Em todas as legislaturas posteriores àquela em que foi aprovada a lei que veio a ser a lei 92/95 foram apresentados projectos de lei na Assembleia da República visando introduzir alterações à dita lei 92/95 consistentes na introdução das célebres quatro alíneas entre as quais está a proibição do tiro ao voo.
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E em todas as legislaturas não surtiu efeito tal objectivo, pelo que é evidente que a vontade do legislador, a Assembleia da República, foi a de manter a licitude da actividade do tiro aos pombos.
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No plano teleológico, dada a finalidade da Lei 92/95, a palavra "necessidade" não pode ser interpretada em sentido puramente económico, impondo-se, por ser a única solução respeitadora da teleologia da lei, uma conveniente articulação e ponderação de valores jurídicos, tutelados a diversos níveis, de modo a que eventuais excepções sejam permitidas pelo facto de a protecção dos animais dever ceder a outros valores hierarquicamente superiores, o que só é possível através da analogia.
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Em relação ao direito de propriedade a Lei n°. 92/95 cria um regime especial quando aquele tenha por objecto animais.
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Se analisarmos as excepções expressamente previstas à Lei n°. 92/95 verificamos que todas elas se fundam em princípios gerais do ordenamento jurídico português, com consagração constitucional, o caso das touradas, caça e arte equestre os artigos 9°. alínea d), 73 e 78 da C.R.P. e no caso da alínea f) do n°. 3 do art°. l da Lei n°. 92/95 o n°. 4 do art°. 73°. da C.R.P.
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As excepções referidas na conclusão anterior derivam do princípio geral do ordenamento jurídico português de "defesa do património cultural" o qual permite inclusive restrições à liberdade de aquisição como sucede por exemplo num leilão quando o Estado exerce um direito de preferência obrigatório, "erga omnes", na aquisição de bens enquadráveis no conceito de "património cultural".
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Ou seja, o princípio da "defesa do património cultural" se dá origem a restrições ao nível do regime geral do direito fundamental à propriedade privada (o qual constitui a regra em relação à qual a Lei n°. 92/95 cria uma especialidade) por maioria de razão poderá restringir o regime especial do direito de propriedade, estabelecido em nome da protecção dos animais.
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No art°. l da Lei n°. 92/95 não se verifica uma enumeração taxativa de excepções entre outras razões dada a utilização do termo "necessidade" e não de expressões do tipo de "salvos os casos previstos por lei".
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Mais do que "extensão analógica", existe total semelhança entre-a actividade do tiro ao voo ou aos pombos e as denominadas largadas, efectuadas durante todo o ano nos denominados caça" ao abrigo dos art°s. 2° alinea 1) da Lei de Bases Gerais da Caça (Lei n°. 173/99 de 21 de Setembro) e artigos 2° alínea s) e 51 ° do respectivo Regulamento (dec-lei n°.227-B/2000 de 15 de Setembro).
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A defesa do "património cultural" é o único requisito ou fundamento constante em todas excepções consagradas de forma expressa na Lei n°. 92/95 pelo que há que operar uma extensão analógica do conceito de "necessidade" referido na lei, extensão analógica essa que é a única conforme à ratio legis.
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Tiro aos pombos desde há muito que existe em Portugal podendo considerar-se parte integrante do nosso património cultural, praticado há cerca de cento e cinquenta anos em clubes de Norte a Sul do País.
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A actividade do "tiro aos pombos" é semelhante à da Pesca Desportiva, que também faz parte do património cultural do nosso País sendo que nesta até existe sofrimento cruel e prolongado do peixe que fica a debater-se na rocha ou no cesto do pescador, por um período prolongadíssimo, até morrer fora do seu meio ambiente, por não poder respirar ao ar livre, o que não sucede com o pombo que quando é atingido morre imediatamente e sem sofrimento.
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Acresce que a actividade do tiro ao voo não é substituível pelo tiro aos pratos, a hélices ou qualquer outro, dadas as suas características próprias e autónomas, que dela fazem uma modalidade de tiro insubstituível por qualquer outra.
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Um outro argumento decisivo é o de a Recorrente Federação Portuguesa de Tiro com Armas de Caça ser uma pessoa colectiva de utilidade pública (Despacho do Primeiro Ministro de 15 de Junho de 1978 in D.R., II Série, n°. 139 de 20 JUN 78) e utilidade pública desportiva (despacho n°. 14/94 do Primeiro Ministro de 18 de Março de 1994 in D.R., II Série, n°. 78 de 4 de Abril) a quem cabe, de acordo com o disposto nos art°s. 7° e 8° n° l do DL 144/93 de 26 de Abril a organização e direcção superior do tiro ao voo (vide, também, declaração junta aos autos da Secretaria de Estado do Desporto - Instituto Nacional do Desporto).
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No quadro legal do exposto na conclusão anterior não teria sentido que o legislador, que não pode desconhecer quais são os parceiros credenciados do Estado, no sector desportivo ou outro, depois de ter expressamente previsto a proibição daquela modalidade tivesse remetido para princípios genéricos do n° l do art° lº. da Lei 92/95 a Regulamentação, em termos negativos, dessa mesma actividade.
* A Sociedade Protectora dos Animais contra-alegou., como segue: 1. Os denominados "direitos dos animais" surgem hoje como um sector importantíssimo do Direito Ambiental.
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lei 92/95, de 12 de Setembro, traduz-se numa lei quadro, consagrando, em termos genéricos, a protecção da vida e integridade física dos animais.
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É a expressão organizada dos valores de protecção animal dominantes na comunidade internacional e europeia, positivados na "Declaração Universal dos Direitos do Animais, na "Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia", publicada em 13 de Novembro de 1987", na "Convenção Europeia sobre a Protecção dos Animais em Transporte Internacional", publicada em 13 de Dezembro de 1968, na "Convenção Europeia sobre a Protecção dos Animais de bate de 10 de Maio de 1979", convenções essas que foram ratificadas pelo Estado Português pelo Decreto-Lei 13/93, de 13 de Abril, pelo Decreto-Lei n.° 33/82, de 11 de Março, e pelo Decreto Lei 9/81, de 29 de Julho, respectivamente, e ainda na transposição de várias directivas emanadas da União Europeia para a ordem jurídica interna, como seja a referente à "Protecção dos Animais utilizados para Fins Experimentais e Científicos", através do Decreto-Lei 129/92, de 6 de Julho, entre outras.
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Com a entrada em vigor da Lei 92/95, os animais passaram a ser considerados seres vivos que o ordenamento jurídico entende serem merecedores de protecção, tendo-lhes sido atribuído um determinado valor- a sua dignidade autónoma proibindo-se consequentemente a sua morte e o seu sofrimento desnecessários.
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Ao admitir-se que os animais podem servir como alvo por isso trazer para o atirador um acréscimo de dificuldade e de divertimento pessoal, está-se por outras palavras a recusar aos animais qualquer espécie de protecção ou valor próprio.
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O art. 1° da Lei 92/95 aponta como regra geral a proibição de todas as violências injustificadas contra animais, pelo que o conceito de "necessidade" tem que ser aferido face à ratio da própria lei em questão e face ao escopo que ela visa alcançar.
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A necessidade, que se consubstancia na permissão de violar o bem autónomo que é a protecção dos direitos dos animais, implica, antes de mais, que haja uma utilidade válida na protecção de um bem jurídico superior, para o homem ou para a sociedade.
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Da penetração do chumbo de espingarda num animal, com as características do pombo, decorrerá directa e consequentemente graves lesões no animal ou a sua morte, encontrando-se assim plenamente preenchida com a prática aqui em crise - e em mais que uma vertente- a dimensão material da conduta humana considerada antijurídica pela Lei 92/95, de 12 de Setembro.
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A actividade desportiva em apreço provoca inevitavelmente a morte ou graves lesões nos animais, pois dada a escassa robustez física dos mesmos em comparação com os aparelhos de disparo que contra eles são utilizados, tudo se convola, e a breve trecho, em situações de morte dessas mesmas aves, sendo raras as vezes que um pombo escapa ileso ou com apenas lesões insignificante.
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Resultou provado que da realização das provas que os Recorrentes tinham organizado resultaria a morte de cerca de 5000 (cinco mil ) animais, numa média de 2.500 (dois mil e quinhentos) por dia.
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No tiro ao voo os animais servem de mero objecto-alvo, cujas funções são facilmente...
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