Acórdão nº 1101/12.8TBMAI-A.P1 de Court of Appeal of Porto (Portugal), 21 de Fevereiro de 2013

Magistrado ResponsávelJOSÉ AMARAL
Data da Resolução21 de Fevereiro de 2013
EmissorCourt of Appeal of Porto (Portugal)

Apelação nº. 1101/12.8TBMAI-A.P1 Relator: -José Fernando Cardoso Amaral (nº. 49) Adjuntos: -Des. Dr. Fernando Manuel Pinto de Almeida -Des. Dr. Trajano Amador Seabra Teles de Menezes e Melo.

Acordam os Juízes da 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto: I. RELATÓRIO O Autor B… propôs, no 4º Juízo Cível da Comarca da Maia, acção declarativa de condenação com processo comum e sob a forma ordinária contra os Réus C… e Companhia de Seguros D…, SA.

Nela pediu a condenação destes a pagarem-lhe a quantia de 65.756,51€, com juros desde a citação.

Invocou como causa de pedir: incumprimento da obrigação de indemnizar por danos consequentes a acidente de viação dolosamente provocado.

Fundamentando, alegou, em síntese, na petição inicial, que, na madrugada de 05-12-2002, na …, na sequência de desentendimentos com indivíduos desconhecidos tidos pelo réu numa Discoteca, este, conduzindo o veículo automóvel ligeiro de passageiros, Peugeot …, matrícula XJ-..-.., agindo deliberada, voluntária, livre e conscientemente, apontou-o, seguindo a mais de 80 km/h, na direcção de um grupo de pessoas que se encontravam na via pública, mas fora da faixa de rodagem, galgou e invadiu o passeio e, sem travar nem sequer reduzir a velocidade, prosseguindo sempre animado daquela intenção de matar todos aqueles peões, fez embater o veículo no referido grupo, em que se encontrava o Autor. Prosseguindo a sua marcha, acabou por invertê-la mais adiante e, retornando, do mesmo modo e com iguais intentos, voltou a atingir com o automóvel, no mesmo sítio, o dito grupo, fugindo de seguida precipitadamente, até que veio a ser detido pela Polícia, horas mais tarde, no Porto. Em consequência de tal conduta dolosa, o Autor sofreu diversas lesões no seu corpo causadoras de diversos danos patrimoniais e não patrimoniais de que pretende ser ressarcido e por que respondem o Réu C… e a Ré Seguradora – para a qual aquele havia contratualmente transferido a sua responsabilidade civil por danos emergentes da circulação da referida viatura causados a terceiros por contrato de seguro obrigatório – sendo que a conduta daquele já foi criminalmente punida com a pena única de catorze anos de prisão (um crime de homicídio e seis crimes de homicídio tentado) e a própria seguradora já foi condenada a indemnizar vários lesados.

A Ré, na sua contestação, aceitando a sua qualidade de seguradora, a vigência do contrato de seguro, a descrição do evento e o desígnio criminoso do Réu, mas excepcionando, alegou, em síntese, que o veículo automóvel foi utilizado como arma ou instrumento de prática do crime projectado e, por isso, nem a ocorrência constituiu um “acidente de viação propriamente dito” nem ela está constituída no dever de indemnizar. Com efeito, o acontecimento não se reveste de características involuntárias e “acidentais” antes resulta de típica conduta objectiva e subjectivamente criminosa a que nenhum contrato pode conferir cobertura, por tal esvaziar a própria noção de contrato de seguro e contrariar as regras de responsabilidade civil. Da circunstância de os artºs 8º, nº 2, e 19º, alínea a), do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, preverem o direito de regresso contra o condutor que cause dolosamente o acidente não se pode inferir que está aí abrangida a hipótese de dolo directo, mas somente a de dolo eventual. Tal contraria princípios de ordem pública.

Em réplica, o autor refutou a pretensão e argumentos aduzidos pela ré a tal respeito.

Saneando os autos, sobre essa questão decidiu assim o tribunal apelado: «Apreciando.

Nos presentes autos está já assente, por acordo, que o acidente em causa se ficou a dever a uma conduta dolosa por parte do 1.º réu.

A questão que se nos coloca é, pois, a de saber se, tendo o acidente ocorrido em consequência de um acto voluntário do 1.º réu tal afastará a responsabilização da 2.ª ré a ressarcir o autor dos danos por ele sofridos.

Ora, em nosso entender a resposta a essa questão não pode deixar de ser negativa.

Seguindo de perto o que maioritariamente tem vindo a ser defendido pela nossa jurisprudência e, concretamente é referido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6/7/2011, processo 3126/07.6TVPRT.P1.S1, disponível via internet no endereço www.dgsi.pt dizemos que a expressão «acidente de viação» “não é utilizada, no ordenamento jurídico nacional, no sentido tradicional, mas antes na acepção mais geral de fenómeno ou acontecimento estradal, anormal, fortuito e casual, decorrente da circulação de um veículo, que, manifestamente, comporta o acidente, dolosamente, provocado, porquanto, em ambos os casos, é idêntico o interesse que a lei quer tutelar, isto é, o interesse do lesado na indemnização pelos danos sofridos.

Assim, o contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, face ao condicionamento imposto pela Lei do Seguro Obrigatório, reveste a natureza de garantia social ou de contrato a favor de terceiro lesado que assume o papel de parte para poder exigir, directamente, da seguradora a concretização do seu direito à reparação ou à indemnização.” Do atrás exposto resulta que “ a exclusão da previsão dos acidentes que, envolvendo a circulação de veículos, constituam a prática de crimes, esvaziaria o conteúdo da norma do artigo 8º, nº 2, do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro, ou, actualmente, do artigo 27º, nº 1, a), do DL nº 291/2007, de 21 de Agosto, reduzindo-a às situações factuais em que ocorresse o dano meramente culposo.” Considera, portanto, este tribunal que, não obstante estar já assente que o acidente em causa nos autos foi provocado dolosamente pelo 1.º réu, tal não determina a desresponsabilização da 2.ª ré.

Aliás, sempre se acrescente que na proposição teleológica do regime do seguro obrigatório a perspectiva está centrada na garantia dos lesados, terceiros estranhos à utilização ou condução do veículo do veículo causador de danos, e não tanto, no plano do acontecimento.

Ora, do ponto de vista do lesado, um facto exterior do qual resultem consequências lesivas constitui um acidente, no sentido de acontecimento que, involuntariamente, suporta, que lhe é estranho, que não prevê, que não condiciona e que escapa à sua capacidade de influência ou domínio.

A noção de “acidente” ou “sinistro”, no sentido pressuposto pelo regime do seguro obrigatório tem, pois, de ser considerada e integrada pelo ponto de vista do lesado.

Com efeito, para o lesado, todo o acontecimento resultante da circulação de um veículo com motor que lhe cause danos pessoais ou materiais, e a cuja génese ou domínio foi estranho, constitui um acidente («acidente de viação»), no sentido de ocorrência exógena, quer tal acontecimento tenha sido causado por negligência ou por dolo.

Deste ponto de vista, que é a perspectiva de que parte o regime da garantia de seguro obrigatório (protecção e centralidade do lesado), a ocorrência voluntariamente provocada pelo condutor de um veículo, em circulação ou em condições de circulação, na via pública, em movimento, em condições aparentemente típicas de circulação, constitui, neste sentido, um «acidente», na expressão da lei, «dolosamente provocado».

Há, nesta matéria, que ter sempre presentes os direitos e as garantias da pessoa lesada, e o princípio de que a garantia do seguro obrigatório não significa, em certos casos, sempre transferência de responsabilidade, nem exonera a pessoa responsável pelo acidente, sendo certo que a seguradora poderá exercer o direito de regresso contra o lesante.

Do atrás exposto, resulta que consideramos que não existe qualquer razão para se considerar que, tendo o acidente sido dolosamente provocado pelo 1.º réu, existe...

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