Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2010, de 23 de Setembro de 2010

Acórdáo do Supremo Tribunal de Justiça n. 8/2010

Processo n. 6463/07.6 TDLSB. L1 - A. S1

Recurso para fixaçáo de jurisprudência

Relator por vencimento - J. Souto Moura.

O Ministério Público (MP) junto do Tribunal da Relaçáo de Lisboa, ao abrigo do artigo 437., n.os 1 e 4, do Código de Processo Penal (CPP), veio interpor recurso extraordinário de fixaçáo de jurisprudência para o pleno das secçóes criminais do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), com o fundamento que se segue:

No Processo n. 6463/07.6 TDLSB. L1 da 3.ª Secçáo do Tribunal da Relaçáo de Lisboa (acórdáo recorrido), foi proferido a 15 de Julho de 2009, acórdáo, com trânsito em julgado a 3 de Setembro de 2009, em que se decidiu que o limite de € 7500, estabelecido no n. 1 do artigo 105. do Regime Geral das Infracçóes Tributárias (RGIT), na redacçáo dada pela Lei n. 64 -A/2009, de 31 de Dezembro, também devia ser tido em conta, estando em causa o crime de abuso de confiança contra a segurança social.

Exactamente sobre esta questáo de direito, e no domínio da mesma legislaçáo, já se havia pronunciado o Acórdáo de 4 de Março de 2009, proferido no Processo n. 257/03.5TAVIS.Cl, da Secçáo Criminal do Tribunal da Relaçáo de Coimbra (indicado como acórdáo fundamento), que defendeu a soluçáo oposta. Ou seja, a de que a alteraçáo ao artigo 105., n. 1, do RGIT introduzida pelo artigo 113. da Lei n. 64 -A/2008, de 31 de Dezembro, que introduziu aquele limite de € 7500, náo abrangia o crime de abuso de confiança contra a segurança social, o qual mantinha portanto a sua tipificaçáo autónoma e integral na previsáo do artigo 107. do RGIT.

A - O Recurso

No instrumento de interposiçáo de recurso, o MP apresentou as conclusóes que se transcrevem:

1 - No Acórdáo recorrido a questáo jurídica que vinha colocada foi decidida no sentido de que tem aplicaçáo em sede de crime de abuso de confiança contra a segurança social o limite de € 7500 estabelecido no

n. 1 do artigo 105. do RGIT, na redacçáo dada pela Lei n. 64 -A/2009, de 31 de Dezembro.

2 - Sobre a mesma questáo de direito e no âmbito da mesma legislaçáo foi proferido a 4 de Março de 2009, no Processo n. 257/03.5TAVIS.Cl, da Secçáo Criminal do Tribunal da Relaçáo de Coimbra, o acórdáo supra -identificado no artigo 4., que consagrou soluçáo oposta: a alteraçáo ao artigo 105., n. 1, do RGIT introduzida pelo artigo 113. da Lei n. 64 -A/2008, de 31 de Dezembro, náo abrange o crime de abuso de confiança contra a segurança social, que mantém a sua tipificaçáo autónoma e integral na previsáo do artigo 107. do RGIT.

3 - Tendo ambos os acórdáos transitado em julgado, e náo sendo nenhum deles, já, susceptível de recurso ordinário, impóe -se a fixaçáo da jurisprudência; sendo nosso parecer que, no acolhimento da soluçáo consagrada no Acórdáo de 4 de Março de 2009, do Tribunal da Relaçáo de Coimbra, proferido no Processo n. 257/03.5TAVIS.Cl, será de decidir neste último sentido.

O Instituto da segurança social, I. P., demandante civil no processo em que se lavrou o acórdáo recorrido, veio apresentar resposta, corroborando o pedido formulado pelo MP, e concluindo:

1 - No que respeita ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, nos dois acórdáos, transitados em julgado e objecto do recurso do Ministério Público, proferiram -se julgados expressos, náo implícitos, quanto à interpretaçáo e aplicaçáo resultante do n. 1 do artigo 105. do RGIT, na redacçáo dada pela Lei n. 64 -A/2008, de 31 de Dezembro.

2 - Porém tais julgados divergentes, estribam -se em termos de direito, sobre uma base factual pontualmente idêntica, no domínio da mesma legislaçáo - náo se tratando de um caso de irrelevante oposiçáo entre os fundamentos e a decisáo.

3 - Entendemos por isso que estáo reunidos todos os pressupostos e condicionalismos para que seja ordenada a admissibilidade e o respectivo prosseguimento do recurso.

Procedeu -se a exame preliminar, o recurso foi considerado admissível e foi ordenada a subida dos autos a este Supremo Tribunal, onde o procurador -geral -adjunto emitiu parecer «no sentido de que deverá julgar -se verificada a existência de oposiçáo entre os julgados, prosseguindo os autos os seus termos, em conformidade com o disposto nos artigos 440., n.os 3 e 4, e 441. do C. P. Penal».

Procedeu -se à conferência a que alude o artigo 441. do Código de Processo Penal, na sequência do que se lavrou acórdáo, o qual terminou estipulando:

Nestes termos, têm -se por verificados os indicados pressupostos de prosseguimento do presente recurso, pelo que cumpre ordenar o mesmo, nos termos do artigo 441., n. 1, do Código de Processo Penal.

Pelo exposto, julga -se verificada oposiçáo de julgados quanto aos acórdáos proferidos no âmbito dos recursos referidos e, em consequência, ordena -se o prosseguimento dos presentes autos para fixaçáo de jurisprudência.

Teve entáo lugar a apresentaçáo de alegaçóes, aliás doutas, por parte do MP, ao abrigo do artigo 442., n. 1,

4220 do CPP. Formulou a final as conclusóes que se transcrevem:

1 - A Lei n. 64 -A/2008, de 31 de Dezembro, manteve intacta a redacçáo do artigo 107. do RGIT (crime de abuso de confiança contra a segurança social), tendo o legislador silenciado as razóes da descriminalizaçáo do crime previsto e punido no artigo 105. do RGIT (abuso de confiança fiscal), na redacçáo do artigo 113. daquela lei, quando estáo em causa prestaçóes de valor igual ou inferior a € 7500.

2 - A remissáo operada pelo n. 1 do artigo 107. para o n. 1 e para o n. 5 do artigo 105. do RGIT circunscreve-se exclusivamente à pena aplicável, constando todos os elementos subjectivos e objectivos do crime de abuso de confiança à segurança social desse preceito.

3 - Náo obstante algumas semelhanças, os crimes previstos nos artigos 105. e 107. do RGIT sáo autónomos, como sempre o foram, autonomia essa que náo é posta em causa pelo facto de os crimes contra a segurança social haverem sido integrados no mesmo diploma dos crimes fiscais, a partir do Decreto -Lei n. 140/95, de 14 de Julho.

4 - O reforço da autonomia do regime punitivo das infracçóes contra a segurança social funda -se e justifica-se na necessidade premente da defesa da sustentabilidade da segurança social, fortemente ameaçada em Portugal, como na generalidade dos países europeus.

5 - Os tipos penais de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a segurança social protegem bens jurídicos que, embora próximos, náo se confundem, sendo precisamente essa distinçáo que justificou a opçáo do legislador pela autonomizaçáo dos crimes de abuso de confiança contra a segurança social.

6 - A descriminalizaçáo do crime de abuso de confiança contra a segurança social, no caso de náo entrega de contribuiçóes de valor iguais ou inferior a € 7500, viria ao arrepio e seria mesmo paradoxalmente contrária a toda a orientaçáo legislativa seguida nos últimos anos, e, designadamente, a partir de 2001, com vista a assegurar o equilíbrio financeiro do sistema de segurança social.

7 - Atendendo a que o tecido empresarial é constituí do essencialmente por pequenas e médias empresas, que têm ao seu serviço menos de 10 trabalhadores (95,4 % das empresas, em 2007), a tese da descriminalizaçáo do crime de abuso de confiança contra a segurança social, nos casos indicados, conduziria a que fosse abrangida por essa descriminalizaçáo a larga maioria das contribuiçóes em dívida à segurança social, afectando -se assim gravemente o sistema de segurança social e os interesses fundamentais que o mesmo visa proteger, no cumprimento da norma programática do artigo 63., n. 3, da Constituiçáo.

8 - Ao descriminalizar o crime de abuso de confiança fiscal, quando está em causa prestaçáo de valor igual ou inferior a € 7500, o legislador sancionou essa conduta como contra -ordenaçáo, ficando assim ressalvada a luta contra a evasáo fiscal - cf. artigo 114., n. 5, alínea a), do RGIT, na redacçáo dada pela Lei n. 64 -A/2008, de 31 de Dezembro, medida essa que náo se encontrava, nem foi prevista, no caso de falta de entrega das contribuiçóes devidas à segurança social.

9 - Assim, na tese da descriminalizaçáo, ficaria totalmente impune a falta de entrega à segurança social de contribuiçóes de valor igual ou inferior a € 7500, o que se mostraria em flagrante contradiçáo com as

medidas legislativas de combate à fraude e às dívidas à segurança social e, designadamente, com o reforço de criminalizaçáo dos comportamentos de evasáo contributiva, nos últimos anos, por forma que a segurança social continue a realizar um dos mais elementares direitos à sobrevivência e à existência condigna, constitucionalmente garantidos.

10 - O crime de abuso de confiança contra a segurança social, como o próprio crime de abuso de confiança fiscal, náo constitui, na essência, crime contra o património, estando aí em causa a lesáo do interesse público que lhe está subjacente e que transcende o valor da prestaçáo a entregar, para se situar no regular funcionamento do sistema e nos interesses que deve satisfazer.

11 - Do descuido e da má técnica legislativa utilizada, ao manter -se a remissáo do n. 2 do artigo 107. para o n. 6 do artigo 106. do RGIT, revogado pelo artigo 115. da Lei n. 64 -A/2008, de 31 de Dezembro, náo podem extrair -se argumentos no sentido da descriminalizaçáo, quando estáo em causa contribuiçóes à segurança social de valor inferior a € 7500, apontando antes a náo eliminaçáo dessa remissáo no sentido de que o legislador teve a intençáo de manter intacta a configuraçáo do crime de abuso de confiança contra a segurança social.

12 - Sendo distintos os bens jurídicos protegidos pelos crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a segurança social, tal como sáo diferentes a natureza e as finalidades das prestaçóes e das contribuiçóes a que se reportam os artigos 105. e 107. do RGIT, mostra -se justificado um regime penal mais exigente, que confira maior eficácia à protecçáo dos interesses subjacentes aos crimes contra a segurança social, o que, de forma alguma, póe em...

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