Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 15/2009, de 23 de Novembro de 2009

Acórdáo do Supremo Tribunal de Justiça n. 15/2009

Recurso n. 574/09

Fixaçáo de jurisprudência

Acordam no pleno das secçóes criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

O Ministério Público, representado pelo Ex.mo Procurador --Geral -Adjunto junto do Tribunal da Relaçáo de Coimbra, interpôs recurso extraordinário, para fixaçáo de jurisprudência, do acórdáo proferido naquela Relaçáo em 19 de Novembro de 2008, no recurso n. 192/04, que decidiu náo ser de conhecimento oficioso, nem a requerimento do Ministério Público, após o trânsito em julgado da condenaçáo, a aplicaçáo de nova lei penal de conteúdo mais favorável, concretamente o n. 5 do artigo 50. do Código Penal, na redacçáo dada pela Lei n. 59/2007, de 4 de Setembro, que faz coincidir o período de suspensáo da execuçáo da pena de prisáo à pena de prisáo determinada na sentença, aplicaçáo que deverá ter lugar, apenas a pedido do condenado, com reabertura da audiência, nos termos do artigo 371. -A do Código de Processo Penal, suposta a vigência da pena (1).

Em sentido oposto indicou o Acórdáo da mesma Relaçáo de 22 de Outubro de 2008, proferido no recurso n. 61/05, o qual decidiu ser de conhecimento oficioso e sem necessidade de reabertura da audiência a aplicaçáo de nova lei penal de conteúdo mais favorável, concretamente o n. 5 do artigo 50. do Código Penal, na redacçáo introduzida pela Lei n. 59/2007, de 4 de Setembro, a arguido condenado com trânsito em julgado, enquanto a pena se náo extinguir.

Em conferência, concluiu -se pela admissibilidade do recurso, face à oposiçáo de soluçóes relativamente à mesma questáo de direito no domínio da mesma legislaçáo, tendo-se ordenado o seu prosseguimento.

O Ex.mo Procurador -Geral -Adjunto nas alegaçóes que apresentou formulou as seguintes conclusóes:

1 - As alteraçóes introduzidas pela Lei n. 59/2007, de 4 de Setembro, em matéria de aplicaçáo da lei no tempo, visaram reforçar a aplicaçáo retroactiva da lei mais favorável, em cumprimento do disposto no n. 4 do artigo 29. da Constituiçáo da República e ultrapassar, assim, o juízo de inconstitucionalidade imputado à ressalva do caso julgado, inserta no n. 4 do artigo 2. do Código Penal, na anterior versáo.

2 - Da nova redacçáo do n. 4 do artigo 2. do Código Penal resulta clara a opçáo do legislador no sentido da aplicaçáo retroactiva da lei penal mais favorável, haja ou náo condenaçáo com trânsito em julgado.

3 - Como se refere no Acórdáo do Tribunal Constitucional n. 164/08, para as hipóteses de ter havido condenaçáo, transitada em julgado, o legislador estabeleceu um sistema dual:

  1. Aplicaçáo oficiosa da lei mais favorável, nas situaçóes a que alude o n. 4, parte final, do artigo 2. do Código Penal, na redacçáo da Lei n. 59/2007, cessando a execuçáo e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontra cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior;

  2. Reabertura da audiência, nos termos do artigo 371. -A do Código de Processo Penal (introduzido pela Lei n. 48/2007, de 29 de Agosto), para efeitos de aplicaçáo da lei penal de conteúdo mais favorável, quando o arguido ainda náo tenha cumprido o limite máximo da pena de prisáo aplicável ao crime em causa.

    4 - Em caso de suspensáo da execuçáo da pena de prisáo, aplicada por sentença transitada em julgado, atingida a duraçáo da pena de prisáo substituída (n. 5 do artigo 50. do Código Penal, na redacçáo da Lei n. 59/2007), deverá o juiz, oficiosamente, e sem necessidade de reabertura da audiência, determinar extinta a pena, caso náo se verifiquem fundamentos que determinem a revogaçáo da suspensáo.

    5 - Nos restantes casos, ou seja fora das situaçóes que cabem na parte final do n. 4 do artigo 2. do Código Penal, na redacçáo da Lei n. 59/2007, mostra -se afastada a aplicaçáo oficiosa do disposto no n. 5 do artigo 50. do Código Penal, na sua nova redacçáo.

    6 - Em tais casos, poderá haver lugar a reabertura da audiência, nos termos do artigo 371. -A do Código de Processo Penal, para efeitos da aplicaçáo da lei penal de conteúdo mais favorável, tendo a lei conferido legitimidade para requerer tal reabertura apenas ao próprio condenado.

    7 - Termos em que:

    O conflito que se suscita haverá de ser resolvido, fixando-se jurisprudência, no sentido que a seguir se propóe:

  3. Em caso de suspensáo da execuçáo da pena de prisáo, aplicada por sentença transitada em julgado, atingida a duraçáo da pena de prisáo substituída, deverá o juiz, oficiosamente, determinar extinta a pena, por força do disposto nos artigos 2., n. 4, parte final, e 50., n. 5, do Código Penal, ambos na redacçáo da Lei n. 59/2007, de 4 de Setembro, caso náo se verifiquem fundamentos que determinem a revogaçáo da suspensáo;

  4. Alterando -se, em conformidade, o acórdáo recorrido.

    O recorrido náo apresentou alegaçóes.

    Após julgamento em conferência, cumpre decidir. Como se reconheceu no acórdáo interlocutório, verifica-se oposiçáo de julgados.

    A questáo ora submetida à apreciaçáo do pleno das secçóes criminais deste Supremo Tribunal consiste em saber se a aplicaçáo de lei nova de conteúdo mais favorável a condenado em pena de suspensáo da prisáo com trânsito em julgado, cuja execuçáo se mantém suspensa, concretamente a aplicaçáo do regime instituído pelo n. 5 do artigo 50. do Código Penal, na redacçáo da Lei n. 59/2007, de 4 de Setembro, pode ter lugar oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, sem necessidade de reabertura da audiência ou, ao invés, apenas poderá ser operada a pedido do condenado, com reabertura de audiência, nos termos do artigo 371. -A do Código de Processo Penal.

    Antes de entrar na análise e apreciaçáo da questáo objecto do recurso, cumpre abordar e conhecer outra que a montante daquela se situa, de natureza prévia.

    Trata -se de verificar se a modificaçáo de decisáo condenatória transitada em julgado, tendo em vista a aplicaçáo de lei posterior de conteúdo mais favorável ao condenado, à revelia de processo de revisáo (2), se compatibiliza com o princípio constitucional non bis in idem.

    Perante dois valores jurídicos com dignidade constitucional, de um lado o princípio da aplicaçáo retroactiva

    8458 de lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido (3), do outro o princípio non bis in idem na sua dupla dimensáo (4) - direito subjectivo do arguido a náo ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto e princípio objectivo consagrador do caso julgado material -, há que averiguar se a efectivaçáo de um náo atinge e pospóe o outro, ou seja, se a aplicaçáo retroactiva de lei mais favorável ao arguido entra ou náo em rota de colisáo com o princípio non bis in idem.

    Em matéria de conflito entre direitos constitucionais, vem -se entendendo que ocorre verdadeira colisáo sempre que a Constituiçáo proteja simultaneamente dois direitos em contradiçáo concreta, isto é, quando a esfera de protecçáo de um certo direito é constitucionalmente protegida em termos de intersectar a esfera de outro direito constitucionalmente tutelado ou de colidir com uma norma ou princípio constitucional (5).

    A colisáo tanto pode ocorrer entre direitos, como entre um direito e um bem ou valor jurídico constitucionalmente consagrados ou entre dois bens ou valores constitucionalmente protegidos, sejam individuais, comunitários ou do Estado.

    Curemos, pois, de saber se a aplicaçáo retroactiva de lei de conteúdo mais favorável ao arguido colide com o princípio non bis in idem.

    Consabido que a aplicaçáo retroactiva de lei de conteúdo mais favorável ao arguido é susceptível de conduzir à modificaçáo de decisáo condenatória transitada em julgado, sendo certo que o caso julgado material tem por primordial efeito a intangibilidade da decisáo, com força obrigatória universal, dúvidas náo restam de que no caso vertente estamos perante um conflito de valores constitucionais.

    Certo é, porém, que nem todos os conflitos de direitos ou valores constitucionais conduzem a situaçóes de violaçáo (relevante) de um dos direitos ou valores, ou seja, nem todos os conflitos afectam irremediavelmente o direito ou valor atingido.

    Só assim será quando o conteúdo essencial do direito ou valor atingido for afectado, conteúdo expresso na norma constitucional que o consagra (6), o qual se afere e estabelece, por um lado, a partir do núcleo fundamental, determinável em abstracto, próprio de cada direito ou valor, ou seja, do «coraçáo do direito», por outro lado, através do quantum da compressáo/restriçáo a que o direito ou valor atingido é submetido, compressáo/restriçáo que se terá de conter no mínimo necessário, tendo ainda em consideraçáo os respectivos motivos ou fundamentos, posto que a compressáo/restriçáo só é admissível pela necessidade de proteger ou promover um bem constitucionalmente valioso (artigo 18., n. 2, da Constituiçáo da República) e só na proporçáo dessa necessidade.

    Vejamos, pois, se a aplicaçáo retroactiva de lei penal de conteúdo mais favorável ao arguido afecta o núcleo essencial do princípio non bis in idem.

    O caso julgado material mostra -se constitucionalmente tutelado através da consagraçáo do princípio non bis in idem, constituindo, como já se deixou consignado, a dimensáo objectiva daquele princípio. Nesta dimensáo sáo a segurança e a certeza da decisáo judicial, a intangibilidade do definitivamente decidido pelo tribunal, que se visam proteger. Estáo aqui subjacentes valores atinentes à imagem e credibilidade dos tribunais e ao interesse dos sujeitos processuais e da própria comunidade, designadamente o interesse na tutela estável dos bens jurídicos, mediante a imutabilidade da decisáo, essencial às legítimas expecta-

    tivas dos sujeitos processuais e à confiança do cidadáo e da comunidade na justiça e nos tribunais.

    Na sua dimensáo subjectiva, porém, o princípio non bis in idem, enquanto garante da posiçáo do arguido, integrado num processo penal justo e equitativo, tem prevalentemente em vista a protecçáo do condenado, defendendo -o contra a possibilidade de ser julgado por mais de uma vez pelo mesmo facto, ou seja, a possibilidade de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT