Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2008, de 14 de Novembro de 2008

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2008 Processo n.º 3965/07 -- 1.ª Secção Uniformização de jurisprudência Acordam no Plenário das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça: I -- Banco Mais, S. A., instaurou, em Janeiro de 2001, na 1.ª Vara Cível de Lisboa, acção executiva contra Maria de Fátima Moura dos Reis Corte, para cobrança coerciva da quantia de 3 696 973$, acrescida de juros vincendos e encargos, referentes a mútuo para aquisição de veículo au- tomóvel, indicando à penhora, entre outros bens, o veículo objecto do contrato.

Penhorado este e constatando que sobre esse veículo incidia reserva de propriedade a favor do exequente, o juiz a quo convidou -o a fazer prova da renúncia a tal reserva, convite que o mesmo não aceitou (não obstante afirmar expressamente essa renúncia), pelo que foi decretada a suspensão da execução quanto a esse bem, até se mostrar cancelado o registo da reserva de propriedade.

Inconformado, agravou o exequente concluindo, em síntese, pela falta de fundamento da decretada suspen- são, tendo a Relação de Lisboa confirmado a decisão da 1.ª instância.

De novo inconformado, o exequente interpôs da re- ferida decisão novo recurso de agravo, nos termos dos artigos 754.º, n.º 2, 762.º, n.º 3, e 732.º -A e 732.º -B do Código de Processo Civil.

O agravante conclui, em síntese, as suas alegações do seguinte modo: 1 -- Nos autos em que sob o presente recurso foi logo de início requerida a penhora sobre o veículo automóvel com a matrícula n.º 42 -42 -HS, penhora que foi ordenada pelo juiz em 1.ª instância, e que foi devidamente registada. 2 -- Não é por existir uma reserva de propriedade so- bre o veículo dos autos em nome do ora recorrente que, para efeitos da execução prosseguir, é necessário que este requeira o cancelamento da dita reserva. 3 -- O facto de a reserva de propriedade estar regis- tada não impede o prosseguimento da execução, pois de acordo com o disposto nos artigos 824.º do Código Civil e 888.º do Código de Processo Civil, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam. 4 -- No caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, deve agir -se de acordo com o que se prescreve no artigo 119.º do Código do Registo Predial, caso a penhora tenha sido realizada. 5 -- Tendo a ora recorrente optado pelo pagamento coercivo da dívida em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre o qual a mesma incide -- o que, como referido, seria, neste caso, ilegítimo; tendo a exequente renunciado ao «domínio» sobre o bem -- pois desde o início afirmou que o mesmo pertencia à recorrida; tendo, como dos autos ressalta, a reserva de propriedade sido constituída apenas como mera garantia, e para os efeitos antes referidos; prevendo -se nos artigos 824.º do Código Civil e 888.º do Código de Processo Civil, que aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam; e não se prevendo no artigo 119.º do Código do Registo Predial que se notifique o detentor da reserva de propriedade para que requeira o seu cancelamento, é manifesto que o acórdão recorrido, ao sancionar o decidido em 1.ª instância, errou e decidiu incorrectamente. 6 -- Caso, assim, não se entendesse, sempre se dirá, que deveria o exequente titular da reserva de propriedade -- ter sido notificado nos termos do disposto no artigo 119.º, n.º 1, do Código do Registo Predial. 7 -- O acórdão recorrido, ao confirmar o decidido em 1.ª instância violou, pois, e erradamente interpretou e apli- cou o disposto no artigo 888.º do Código de Processo Civil, violou também o disposto nos artigos 5.º, n.º 1, alínea

b), e 29.º do Decreto -Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, os arti- gos 7.º e 119.º do Código do Registo Predial e 408.º, 409.º, n.º 1, 601.º e 879.º, alínea

a), todos do Código Civil. 8 -- Impõe -se pois, a procedência do presente recurso e a substituição do acórdão recorrido por outro que reco- nheça e decida que o facto de existir registo de reserva de propriedade em favor do exequente em autos de execução em que o veículo foi penhorado e a penhora registada, para efeitos da execução prosseguir não é necessário que o exequente proceda ao cancelamento do mesmo, aliás, a ordenar sempre posteriormente, nos termos do artigo 888.º do Código de Processo Civil, desta forma se uniformizando jurisprudência.

Não houve contra -alegações.

O Senhor Presidente deste Tribunal determinou o jul- gamento alargado do recurso e o Ministério Público foi de parecer que o conflito fosse resolvido no sentido de que: «Verificando -se que sobre veículo automóvel que fora penhorado incide registo de reserva de propriedade a favor do próprio exequente, a acção executiva não pode prosseguir sem que previamente tal averbamento se mostre cancelado, designadamente através de renún- cia do exequente ao direito registado.» Por entender indispensável ao esclarecimento das ques- tões em debate, o Relator notificou o recorrente para apre- sentar certidão da petição inicial e dos documentos que a acompanharam, da decisão que constitui título executivo, bem como do documento que serviu de base ao registo de reserva de propriedade.

Dos documentos apresentados, para além de se ter es- clarecido qual a matéria de facto fixada pelas instâncias, constatou -se que, no requerimento -declaração para registo de propriedade, a TÉCNICRÉDITO assina como vende- dora do veículo e que, no contrato de mútuo, se identifica o veículo financiado e o respectivo fornecedor (não refe- rido como vendedor) não se referindo aí, no campo das garantias, a reserva de propriedade.

Cabe apreciar e decidir.

II -- Fundamentação. -- De Facto: II -A -- A factualidade relevante é a alegada na petição inicial e provada documentalmente, uma vez que a ré não contestou.

Em síntese: O A. Banco Mais, tinha anteriormente a designação de TÉCNICRÉDITO -- Financiamento de Aquisições a Crédito, S. A., e era uma sociedade financeira para aquisi- ções a crédito, tendo por objecto exclusivo o exercício das actividades referidas nos artigos 1.º e 2.º do Decreto -Lei n.º 206/95, de 14 de Agosto; No exercício da sua actividade comercial e com destino à aquisição do um veículo automóvel concedeu à R. crédito directo, sob a forma de um contrato de mútuo, no montante de 2 000 000$; Nos termos do aludido contrato o empréstimo vencia juros à taxa nominal de 16,99 % ao ano, devendo a impor- tância do empréstimo e os juros respectivos, bem como o prémio do seguro de vida, serem pagos, em 60 prestações, mensais e sucessivas, no valor de 50 840$, vencendo -se a primeira em 10 de Novembro de 1999 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes; A importância de cada uma das referidas prestações deveria ser paga, conforme ordem irrevogável logo dada pela referida R. para o seu Banco, por transferência ban- cária a efectuar, aquando do vencimento de cada uma das referidas prestações; A falta de pagamento de qualquer das referidas presta- ções na data do respectivo vencimento implicava o venci- mento imediato de todas as demais prestações; Em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada, acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 20,99 %; Das prestações referidas, a R. não pagou a 7.ª e seguin- tes, vencida a primeira em 10 de Maio de 2000, vencendo- -se então todas.

II -B -- De Direito: II -B.1 -- Atento o teor da decisão recorrida e das con- clusões do recorrente apenas está em questão saber se: Verificando -se que sobre veículo automóvel que fora penhorado incide registo de reserva de propriedade a favor do próprio exequente, pode a execução prosseguir, para as fases de concurso de credores e venda, sem que este, previamente, inscreva no registo a extinção da referida reserva? II -B.2 -- A resposta à questão colocada pressupõe os seguintes patamares de análise: 1 -- Contradição de acórdãos sobre as mesmas questões fundamentais de direito; 2 -- Perspectiva da doutrina e da jurisprudência sobre as questões; 3 -- Apreciação crítica das teses em confronto na sua aplicação ao caso concreto.

II -B.3 -- A primeira questão a resolver nos recursos ampliados para efeitos de uniformização de jurisprudên- cia é a de saber se existe ou não oposição entre a decisão recorrida e o acórdão fundamento sobre a mesma questão fundamental de direito.

Ocorre a identidade da questão, se à aplicação normativa está subjacente uma situação de facto substancialmente idêntica.

No caso vertente está em discussão se a execução pode prosseguir em bem com registo de reserva de propriedade a favor do exequente, sem que este inscreva no registo a extinção do direito registado.

O conflito terá de se colocar entre a decisão proferida nestes autos e o acórdão invocado como fundamento.

O acórdão invocado como fundamento é o proferido em 17 de Maio de 2007, no processo n.º 3450/2007, da 6.ª Secção, do Tribunal da Relação de Lisboa, no qual se decidiu não haver fundamento para impor ao exequente, a favor do qual se encontra registada a reserva de proprie- dade sobre um veículo, que renuncie ao direito registado nem para a suspensão da execução, enquanto tal renúncia não ocorrer, considerando -se haver lugar ao cancelamento oficioso desse registo.

Tanto basta que para que estejam reunidos os pressu- postos para a uniformização de jurisprudência pretendida, sendo certo que a delimitação de uniformização deve pautar- -se pelos próprios limites da divergência que são estes: vinculação ou não do exequente ao cancelamento do registo da reserva de propriedade, inscrita a seu favor sobre o bem designado à penhora.

Adite -se ainda que, também neste tribunal, se verifica a divergência jurisprudencial apontada.

Assim, no sentido do acórdão recorrido, se...

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