Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2010, de 14 de Maio de 2010

Acórdáo do Supremo Tribunal de Justiça n. 5/2010

I - Relatório. - 1 - A magistrada do Ministério Público junto do Tribunal da Relaçáo de Lisboa veio, ao abrigo do disposto no artigo 437. do Código de Processo Penal (CPP), interpor recurso extraordinário para fixaçáo de jurisprudência do acórdáo da referida Relaçáo de 6 de Janeiro de 2009, proferido no processo n. 6085 -08, da

  1. Secçáo, com fundamento em estar ele em oposiçáo com o Acórdáo de 24 de Setembro de 2008, proferido no processo n. 6650/08, da 3.ª Secçáo da mesma Relaçáo, transitados ambos em julgado, tendo tais acórdáos sido proferidos no domínio da mesma legislaçáo.

    Para tanto concluiu a respectiva motivaçáo do seguinte modo:

    1 - No acórdáo recorrido a questáo jurídica que vinha colocada foi decidida no sentido de que, mostrando-se verificados os pressupostos de que depende a susceptibilidade de prorrogaçáo do prazo de adiamento de acesso aos autos, tal adiamento nunca poderá, porém, ser superior a três meses.

    2 - Sobre a mesma questáo de direito e no âmbito da mesma legislaçáo foi proferido, em 24 de Setembro de 2008, no processo n. 6650/08 - 3.ª Secçáo deste Tribunal da Relaçáo de Lisboa, o acórdáo a que supra se aludiu, no ponto V, que consagrou soluçáo oposta: em tais circunstâncias, a prorrogaçáo do adiamento do acesso aos autos náo está sujeita ao limite de três meses nem a qualquer outro limite máximo preestabelecido na lei.

    3 - Tendo ambos os acórdáos transitado em julgado e náo sendo já nenhum deles susceptível de recurso ordinário, impóe -se a fixaçáo de jurisprudência, pronunciando -nos no sentido de que, no acolhimento da soluçáo consagrada no citado acórdáo proferido no processo n. 6650/08 - 3.ª Secçáo deste Tribunal da Relaçáo de Lisboa, será de decidir náo se encontrar sujeita a qualquer limite temporal a prorrogaçáo do prazo de adiamento do acesso aos autos a que alude o

    2. segmento do n. 6 do artigo 89. do CPP.

    2 - Foram juntas certidóes dos acórdáos recorrido e fundamento, com nota do respectivo trânsito em julgado.

    3 - Admitido o recurso, os autos subiram a este Supremo Tribunal, tendo o Ministério Público, na vista a que se refere o artigo 440., n. 1, do CPP, emitido parecer no sentido de ocorrerem os pressupostos legais para o pros-seguimento dos autos como recurso extraordinário para fixaçáo de jurisprudência.

    4 - Proferido despacho liminar e colhidos os necessários vistos, teve lugar a conferência a que se refere o artigo 441. do CPP, na qual foi decidido, por acórdáo, ocorrer oposiçáo de julgados entre o acórdáo recorrido e o acórdáo fundamento.

    5 - Notificado nos termos do artigo 442., n. 1, do CPP, veio o MP apresentar as suas alegaçóes, que, devido à sua extensáo, praticamente reproduzindo todo o articulado da motivaçáo, aqui se resumem ao essencial:

    Depois de caracterizar o regime de segredo de justiça no regime vigente antes das alteraçóes ao Código de Processo Penal (CPP) introduzidas pela Lei n. 48/2007, de 29 de Agosto, a Sr.ª Procuradora -Geral -Adjunta enuncia as modificaçóes que vinham sendo postuladas a tal regime

    para sublinhar que elas náo colocavam em causa «o paradigma da exclusáo da publicidade na fase de inquérito», visto que:

    Sublinhava -se a necessidade de reduçáo do segredo de justiça à fase de investigaçáo;

    Reconhecia -se a necessidade de revisáo do segredo de justiça, em ordem à obtençáo da 'concordância prática entre a necessidade de preservar a investigaçáo e as garantias de defesa';

    Salientava -se, ainda, a necessidade de articulaçáo entre os 'limites temporais do segredo de justiça e os prazos do inquérito'.

    Refere que esta perspectiva foi acolhida na proposta de lei n. 109/X.

    Particularmente no que dizia respeito à articulaçáo entre os limites temporais do segredo de justiça e os prazos do inquérito, na parte em que se previa que, esgotados os prazos de duraçáo máxima do inquérito, o arguido, o assistente e o ofendido passariam a poder consultar todos os elementos do processo, salvo se o juiz de instruçáo determinasse, a requerimento do Ministério Público, o adiamento do acesso aos autos por um período máximo de três meses, aquela magistrada salienta as críticas que foram tecidas a tal soluçáo e a chamada de atençáo de alguns críticos para outras soluçóes tidas como mais adequadas, nomeadamente «a acolhida no Código de Processo Penal italiano, que, fazendo 'coincidir o prazo do inquérito com o segredo de justiça, permite que, justificando o Minis-tério Público perante o juiz de instruçáo as dificuldades de obtençáo da prova e a necessidade de continuaçáo do inquérito, este prorrogue os referidos prazos pelo tempo justificado e considerado necessário'».

    Críticas que náo teráo deixado de ser ponderadas aquando da discussáo e votaçáo da proposta de substituiçáo do n. 6 do artigo 89.

    A seguir, a Sr.ª Procuradora -Geral -Adjunta faz -se eco de várias críticas que foram feitas ao novo sistema que foi implantado, quer no que diz respeito ao segredo de justiça propriamente dito, configurando «uma alteraçáo radical de um modelo de processo que expressamente se afirmou querer manter e respeitar», quer no que toca ao acesso aos autos, uma vez terminados os prazos do inquérito - soluçáo na qual muitos vêem uma inaceitável pressáo sobre o Ministério Público e outros, «uma forma de demonstrar que existem reflexos concretos sobre o desenrolar do processo, os quais estáo ao serviço do reforço das garantias de defesa do arguido e, ergo, da máxima acusatoriedade possível do processo, em estrito cumprimento da Lei de Autorizaçáo Legislativa, ao abrigo da qual o actual CPP foi aprovado».

    Relativamente à interpretaçáo do n. 6 do artigo 89. do CPP, sobre o qual incide directamente o presente conflito de jurisprudência, expende a referida magistrada que, do ponto de vista literal, sáo possíveis as duas interpretaçóes em causa. Todavia, a que se afigura mais adequada e a que encontra «suporte mais consistente na letra da lei» é a que dela faz o acórdáo fundamento, ou seja, que a prorrogaçáo a que alude a última parte do n. 6 do artigo 89., sendo por tempo objectivamente indispensável à conclusáo da investigaçáo, há -de ter em conta o tempo efectivamente necessário a tal objectivo, sem dependência do prazo rígido de três meses, previsto na primeira parte do preceito. Um período dessa forma rígido tornar -se -ia incongruente por ser esse «um período objectivamente incompatível, por insuficiente para a conclusáo do

    1658 inquérito em muitos dos casos de 'terrorismo', 'criminalidade violenta', 'criminalidade especialmente violenta' e 'criminalidade altamente organizada', a exigir investigaçáo muito complexa e dependente, com frequência, de diligências ou actos a realizar por terceiros, que náo o Ministério Público ou os órgáos de polícia criminal, por vezes, exigindo mesmo o cumprimento de cartas rogatórias». Sendo o prazo rígido de três meses manifestamente escasso numa grande parte dos casos à conclusáo do inquérito, o legislador, se pretendesse a estatuiçáo de tal prazo rígido, tê -lo -ia explicitado, sendo claramente previsível, ao estabelecer -se a prorrogaçáo, que se colocasse a dúvida.

    Apesar da alteraçáo do anterior paradigma em matéria de segredo de justiça, «a consideraçáo da especificidade do inquérito, com o inerente reconhecimento do forte interesse público de que seja assegurada a eficiência da investigaçáo criminal e um correcto exercício da acçáo penal, náo pôde deixar de ser tida em conta pelas alteraçóes introduzidas pela Lei n. 48/2007, de 29 de Agosto, ainda que naturalmente compatibilizada com a dos outros direitos e interesses, nomeadamente do arguido e da vítima, em consonância com a injunçáo ao legislador ordinário da adequada protecçáo ao segredo de justiça, erigida constitucionalmente como garantia institucional no artigo 20., n. 3, da Constituiçáo da República Portuguesa».

    O recurso ao elemento sistemático inculca isso mesmo.

    Por exemplo, no caso das limitaçóes previstas ao direito de informaçáo no primeiro interrogatório judicial de arguido detido - artigo 144., alínea d) - e também aquando da fundamentaçáo do despacho de aplicaçáo de medidas de coacçáo e sua comunicaçáo - artigo 194., n.os 4, alínea b), 5 e 6. Isto, náo obstante estarem em causa «relevantíssimos direitos do arguido».

    Do mesmo modo, quanto ao conhecimento a dar a determinadas pessoas do conteúdo de acto ou de documento em segredo de justiça, por se afigurar conveniente ao esclarecimento da verdade ou indispensável ao exercício de certos direitos, tal ministraçáo de conhecimento está dependente de náo pôr em causa a investigaçáo (artigo 86., n. 9). Sucede igualmente no caso de se tornar necessário ao esclarecimento da verdade a prestaçáo de esclarecimentos públicos a pedido de pessoa publicamente posta em causa ou para garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade pública (artigo 86., n. 13).

    Igual demonstraçáo de prevalência do interesse da investigaçáo, no confronto com direitos e interesses dos sujeitos e participantes processuais, encontra -se no próprio artigo 89., n.os 1 e 6, relativamente ao adiamento do acesso aos autos.

    Recorrendo à ratio legis, adianta a Sr.ª Procuradora -Geral-Adjunta que esta se surpreende na particular relevância do interesse público na investigaçáo eficaz da criminalidade referida na última parte do n. 6 do artigo 89. do CPP, altamente lesiva de interesses fundamentais da sociedade, e no consequente julgamento dos respectivos agentes. Esse tipo de investigaçáo prima frequentemente pelo recurso a meios que, além de complexos, náo dependem do Ministério Público, nem dos órgáos de polícia criminal, e às vezes dependem mesmo de instâncias internacionais, que tardam na resposta, pelo que o prazo normal previsto para a realizaçáo do inquérito, ainda que acrescido do prazo de três meses, é manifestamente exíguo.

    A protecçáo conferida pela Constituiçáo ao segredo de justiça, em nome do interesse público implicado na investigaçáo, náo pode deixar de conter uma injunçáo ao legisla-

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