Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2010, de 16 de Dezembro de 2010

Acórdáo do Supremo Tribunal de Justiça n. 10/2010

Processo n. 40/10.1YFLSB - 3.ª Secçáo

Relator: Eduardo Maia Costa.

Acordam no pleno das secçóes criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

I - Relatório

Rios e Oceanos, Sociedade de Gestáo e Exploraçáo Turística, S. A., interpôs recurso extraordinário para fixaçáo de jurisprudência, ao abrigo do artigo 437. do Código de Processo Penal (CPP), do Acórdáo do Tribunal da Relaçáo de Évora de 26 de Novembro de 2009, proferido no processo n. 867/08, por se encontrar, em seu entender, em oposiçáo com o acórdáo proferido pela mesma Relaçáo em 15 de Janeiro de 2008, no processo n. 2345/07.

Por Acórdáo proferido nestes autos em 15 de Abril de 2010, foi decidido verificarem -se todos os pressupostos de admissibilidade do recurso, nomeadamente a oposiçáo de julgados sobre a mesma questáo de direito, que foi definida da seguinte forma: em processo por crime de desobediência, havendo interesse, por parte de um particular, no cumprimento da ordem violada, poderá ele constituir -se assistente nos autos?

Foram as partes notificadas para alegar, nos termos do artigo 442. do CPP.

Alegaram a recorrente e o Ministério Público (MP). A recorrente concluiu assim as suas alegaçóes:

1 - Tanto no acórdáo recorrido como no acórdáo fundamento se decide a questáo de saber se um particular também ofendido por um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348. do CP, tem legitimidade para, relativamente a esse ilícito, se constituir assistente em processo crime nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n. 1 do artigo 68. do CP.

2 - Porém, no domínio da mesma legislaçáo, relativamente à mesma questáo de direito, assentam em soluçóes diametralmente opostas: enquanto o acórdáo recorrido adoptou um conceito restrito de ofendido e uma concepçáo estritamente monolítica e formal de bem jurídico, o acórdáo fundamento adoptou um conceito amplo de ofendido e, bem assim, uma concepçáo poliédrica de bem jurídico tutelado pela norma incriminadora.

3 - A aferiçáo da legitimidade da ora recorrente para se constituir assistente pressupóe, em primeiro lugar, apurar se na previsáo da alínea a) do n. 1 do artigo 68. do CPP apenas se integra o titular dos bens exclusivamente protegidos pela norma ou se, ao invés,

integra também o titular de interesse tutelado de forma particular pela norma incriminadora, e, num segundo momento, a elucidaçáo, em concreto e perante a norma incriminadora em causa, do(s) bem(ns) jurídico(s) por ela protegido(s) e da respectiva titularidade.

4 - Em relaçáo à primeira questáo, náo obstante originariamente a doutrina maioritária, na qual se incluem Cavaleiro de Ferreira e Germano Marques da Silva, entender que ofendido é somente o titular do interesse que constitui objecto imediato e directo da tutela jurídica da concreta norma incriminadora, tal entendimento tem sido questionado e refutado pela doutrina mais recente.

5 - A este respeito, acompanhando Augusto Silva Dias, a tese restritiva do conceito de ofendido náo é hoje aceitável à luz dos estudos vitimológicos, da dogmática do bem jurídico e do modelo processual penal vigente, estando desfasada dos progressos científicos e da experiência normativa dos dias de hoje.

6 - De facto, a título sumário, tal tese náo se coaduna com o surgimento de uma nova forma de titularidade dos bens jurídicos, caracterizada pela intersubjectividade e pela indivisibilidade, a que corresponde a noçáo de interesse difuso, nem táo pouco com o alargamento do estatuto do assistente consagrado pelo próprio ordenamento jurídico, a pessoas que náo sáo, de todo, titulares dos interesses imediatamente protegidos pelas normas incriminadoras ou, por último, com um sistema processual que consagra uma fase de instruçáo, náo obrigatória, que visa o controlo da actuaçáo do Ministério Público durante o inquérito, reduzindo, aliás como sucedeu no presente caso, drasticamente as possibilidades do dito controlo.

7 - Como reconheceu o Tribunal Constitucional no Acórdáo n. 76/02, de 26 de Fevereiro, crimes há, como o de falsificaçáo, o de denegaçáo de justiça e, acrescente-se, o de descaminho de objecto colocado sob o poder público, que 'visam indirectamente proteger também interesses de particulares', isto é, cuja área de tutela abrange concomitantemente (e náo reflexamente, ao contrário do que sustenta a douta decisáo recorrida) um bem jurídico materializado num portador individual, que por via da adopçáo de um conceito restrito de ofendido, veria injustamente negada a faculdade de se constituir assistente.

8 - A este propósito importa trazer à colaçáo o douto Acórdáo do STJ n. 1/2003, que fixou jurisprudência no sentido de admitir a constituiçáo de assistente em processo por crime de falsificaçáo, e o Acórdáo do STJ

n. 8/2006, que fixou jurisprudência no sentido de admitir a constituiçáo de assistente em processo por crime de denúncia caluniosa, onde se diz que "o vocábulo 'especialmente' usado pela lei, significa, pois, de modo especial, num sentido de 'particular' como se referiu, e náo exclusivo" e, consequentemente, 'caso a incriminaçáo proteja uma pluralidade de bens jurídicos de nada releva na matéria equacionar a importância relativa de cada um desses bens, pois condiçáo necessária e suficiente à constituiçáo do ofendido como assistente é que a ofensa daquele ponha em causa um dos bens jurídicos que a incriminaçáo pretende salvaguardar'.

9 - Por outro lado, no que respeita à concepçáo do bem jurídico protegido pelas normas incriminadoras, náo obstante originariamente o acento tónico residir na limitaçáo do ofendido ao próprio titular do interesse imediatamente protegido pela norma incriminadora, acompanhada de uma interpretaçáo cada vez mais restritiva ou simplificadora do 'bem jurídico', tal tese foi recentemente superada, com a consequente admissáo de uma estrutura poliédrica do bem jurídico, na qual podem caber, ao lado de bens jurídicos colectivos ou públicos - e ainda que em posiçáo subordinada - , bens jurídicos pessoais de particulares, o que permitirá a respectiva constituiçáo como assistente.

10 - Com efeito, conforme ensinam Figueiredo Dias e Anabela Rodrigues, o conceito de ofendido náo pode ser deduzido pela distinçáo tradicional entre incriminaçáo que protege um bem jurídico individual ou que protege um bem jurídico supra -individual, mas deve derivar da susceptibilidade de o bem jurídico poder ou náo ser corporizado num concreto portador individual.

11 - Mais, o facto de o bem jurídico protegido revestir natureza pública náo exclui necessariamente a legitimidade de constituiçáo como assistente, pois, como destacam Teresa Pizarro Beleza e Frederico Lacerda da Costa Pinto, o que interessa é saber se o dano no bem jurídico público tem igualmente repercussóes numa esfera jurídica individual e se, dessa forma, a norma incriminadora visa tutelar, ainda que mediatamente, bens jurídicos pessoais.

12 - Esta recente tendência tem sido igualmente seguida pela jurisprudência, sendo de destacar os já mencionados Acórdáos do STJ n.os 1/2003 e 8/2006, onde se pode ler que: 'a circunstância de ser aí protegido um interesse de ordem pública náo afastou, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, aquele cujo prejuízo o agente visava, assim se afirmando a legitimi-dade material do ofendido para se constituir assistente', entendimento corroborado pelo STJ no Acórdáo proferido em 12 de Julho de 2005, em relaçáo ao crime de falsidade de depoimento.

13 - Especificamente em matéria de desobediência, decidiu o Tribunal da Relaçáo de Lisboa no Acórdáo proferido em 20 de Novembro de 2007, que 'se existe esse interesse do Estado de fazer respeitar uma decisáo judicial proferida num processo especial (providência cautelar), também existe o interesse particular de quem recorre a juízo através dessa providência, que pressupóe violaçáo de um direito que carece de urgente reparaçáo, como forma de evitar o periculum in mora, concluindo que 'um particular, ofendido pelo crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348. do Código Penal, por referência ao artigo 391. do Código de Processo Civil - crime decorrente do náo acatamento de uma providência cautelar que, a requerimento seu, foi

judicialmente decretada -, tem legitimidade para se constituir assistente'.

14 - Estes desenvolvimentos doutrinais e jurisprudenciais acarretaram, ultimamente, uma maior abertura à admissibilidade da constituiçáo de assistente em processo penal, que passou a incluir crimes em que marcam a sua presença - e até em posiçáo primacial - interesses de carácter público ou colectivo, reconhecendo -se que, ao lado do interesse público subjacente à infracçáo, a norma incriminadora protege o particular titular de um interesse jurídico pessoal.

15 - Conclusóes estas que se mostram material e teleologicamente fundadas, uma vez que sáo congruentes com as finalidades vitimológicas, de pacificaçáo social e de contribuiçáo para a descoberta da verdade e realizaçáo da justiça que explicam e legitimam o instituto do assistente em processo penal.

16 - Admitidos, em tese, o conceito amplo de ofendida e a estrutura poliédrica do bem jurídico protegido, impóe -se interpretar a concreta norma incriminadora, por forma a determinar os interesses especialmente protegidos e a respectiva titularidade, pois 'poderá um só tipo legal proteger especialmente, mais do que um bem jurídico, questáo a dilucidar, perante cada tipo e cada acçáo dele violadora' (cf. Acórdáo do STJ n. 1/2003).

17 - O náo acatamento de decisáo respeitante a providência cautelar constitui, nos termos expressamente previstos no artigo 391. do CPC, um crime de desobediência qualificada Previsto e punido no artigo 348. do CP.

18 - Sem embargo de a norma incriminadora visar a protecçáo de interesses públicos, importa ponderar o fim específico da mesma para efeitos de determinaçáo do bem jurídico concretamente...

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