A Sumariedade dos processos urgentes

AutorIsabel Celeste M. Fonseca
Páginas241-268

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Como apontámos nas considerações anteriores, a lei processual administrativa integra um conjunto de processos que seguem a mesma forma processual, desempenham uma mesma função e são estruturalmente concebidos em termos simplificados e abreviados. E, com efeito, no contexto dessa função, tais processos concretizam normalmente diferentes técnicas processuais. A técnica da sumariedade procedimental e a técnica da sumariedade da cognição vêm acrescer às técnicas de acessoriedade-instrumentalidade, provisoriedade e antecipação, sendo que, ao contrário de todas as outras, a técnica da sumariedade procedimental é obrigatoriamente concretizada em todos os processos de urgência.

Como tivemos ocasião de perceber, o processo pode definir-se como sumário quando se desenvolve segundo formas e termos simplificados e abreviados por contraste com os previstos para os processos ordinários ou comuns, quer esta simplificação resulte directa e imediatamente da lei, quer decorra da actuação de determinação estrutural desempenhada pelo sujeito-jurisdicional-da-urgência, de acordo com os parâmetros delineados, a priori, de forma mais ou menos precisa, pelo sujeito-legislativo. E como tivemos ocasião de apurar também, o processo pode dizer-se sumário de cognição sumária quando, para além de possuir especificidades de matriz procedimental, possuir especificidades que modificam o seu procedimento instrutório.

Enfim, cumpre, pois, verificar que a lei processual administrativa consagra um modelo de processos especiais, simplificados e abreviados, que foram especialmente desenhados para realizar o direito ao processo efectivo e temporalmente justo, sendo que tal modelo tem a sua disciplina prevista tanto no título IV como no título V do CPTA (1.).

Depois, cumprirá perceber que os processos especiais previstos no título IV e no título V do CPTA não são somente processos especiais de trâmite urgente e processos sumários quanto ao modus procedendi. Para além dos instrumentos de aceleração e do tratamento prioritário e, fundamentalmente, para além de a sua configuração pontual pressupor simplificação e abreviação estruturais, apraz verificar que alguns deles concretizam instrumentos da técnica da cognição sumária, sendo que tais processos sumários de cognição sumária são acolhidos tanto no título IV como no título V do CPTA. Na realidade, Parte-se da análise dos contornos do modelo instrutório ordinário ou modelo ordinário de plena cognitio - scilicet um modelo cujo procedimento instrutório obedece aos princípios e normas que incluem o direito probatório material comum e o direito probatório formal regra - e verifica-se que esse regime-regra (que disciplina o modelo de plena cognitio e que é sobretudo moldado segundo as normas e os princípios de matriz civilista) sofre desvios e verdadeiras excepções quando adoptado nos processos de cognição sumária (2.).

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Enfim, depois, só pode concluir-se que, em relação a certos processos, é a lei que prevê princípios e normas especiais quanto à forma procedimental de aquisição do material probatório, sobre o qual deverá formar-se a convicção do juiz e é a lei que estabelece princípios de julgamento de prova especiais, sendo que, nestes processos, tanto está legitimada a não realização do contraditório como está legitimada a desobediência às «formalidades essenciais do contraditório». E, de facto, em certos processos sumários, o sujeito-legislativo veio concretizar, designadamente, a técnica da inversão do contencioso ou técnica da cognição unilateral e a técnica da prova prima-facie, id est, género de prova que se opõe à plena probatio e só pode ser identificada com o de prova restrita, prova imediatamente disponível e prova líquida, não devendo ser identificada com prova menos forte ou prova menos convincente. De resto, tais processos pressupõem uma redução da cognição do thema decidendum, atingindo logo, a montante, a produção de prova (3.).

1

Quanto às modalidades de concretização da simplificação e abreviação por determinação legal, cumpre verificar o modus procedendi dos processos previstos no título IV, a começar pelo contencioso eleitoral e pelo processo pré-contratual.

1.1

Eles caracterizam-se da seguinte forma. Integram um número reduzido de articulados, um número reduzido de fases do processo e prevêem o encurtamento de prazos, quer para a propositura da acção quer para a prática dos actos processuais.

Assim, e sem prejuízo da aplicação do regime previsto para a AAE, especialmente do disposto na secção I do capítulo II do titulo III, o processo pré-contratual deve ser accionado no prazo de um mês (e não de quinze dias, como era estabelecido no sistema anterior), a contar da notificação dos interessados ou, não havendo lugar à notificação, da data do conhecimento do acto. E o encurtamento dos prazos decorre também do facto de se prever que o prazo para apresentação de contestação e alegações (quando estas tenham lugar) é de vinte dias, correndo em simultâneo para a entidade demandada e para contra-interessados, sendo de dez dias o prazo para a prolação de decisão do juiz ou do relator (ou para este submeter a julgamento) e sendo reduzido o prazo para cinco dias nos restantes casos.

E integra ainda um modus procedendi com abreviação de fases, sendo que a possibilidade de abreviação das fases do processo surge delegada na figura do juiz. Assim, quanto à primeira possibilidade, ela decorre do facto de neste processo só haver lugar a alegações, se não for requerida ou produzida prova com a contestação, sendo que deve ter-se em conta que, o facto de a entidade demandada estar obrigada a remeter ao tribunal o processo administrativo (nos termos do art. 84.º ex vi do art. 102.º, n.º 1), tal não pode serPage 243 entendido no sentido de produção de prova, pelo que, neste caso, não devem ser apresentadas alegações finais se a entidade demandada apenas juntar o processo e documentos a que o demandante pudesse ter tido acesso. Depois, quanto à segunda, muito mais significativa, ela resulta do facto de o legislador permitir que, por iniciativa das partes ou por iniciativa do tribunal, e, tendo por razão o mais rápido esclarecimento da questão, seja realizada uma audiência pública, onde deve ser possível produzir prova (designadamente testemunhal e pericial) e onde se procede à discussão da matéria de facto, bem como à discussão da matéria de direito, sendo assim, possível apresentar de forma oral as alegações finais. No final da audiência é suposto ser ditada a sentença.

1.2

Aliás, a condensação da tramitação do processo em audiência pública para melhor esclarecimento da questão de facto e de direito, constitui apenas uma das várias possibilidades de o juiz configurar a estrutura do processo e o objecto da própria acção. Assim, em primeiro lugar, o modus procedendi deste processo pode alterar-se por se alterar o seu objecto próprio, e por este se alargar para satisfazer duas pretensões relativas a duas situações supervenientes, isto é, situações que podem ocorrer durante a pendência deste processo especial. Com efeito, nos termos do art. 102.º, n.º 4, o objecto do processo pode ser ampliado, quando, na pendência do processo, o contrato vier a ser celebrado, sendo neste caso impugnado o próprio contrato, segundo os termos do artigo 63.º do CPTA. E a lei processual administrativa prevê igualmente que o tribunal possa deixar de proferir a sentença requerida (isto é, possa deixar de emitir uma sentença com efeitos constitutivos ou declarativos correspondentes aos pedidos formulados), e, em vez disso, possa fixar uma indemnização quando, no caso concreto e durante o desenrolar do processo, se tiver consolidado uma situação de facto e de direito - uma «situação de impossibilidade absoluta» (e não uma situação em que a Administração considere que a execução da sentença ocasionaria um grave prejuízo para o interesse público) - que seja susceptível de obstar à satisfação dos interesses do autor (nos termos do art. 102.º, n.º 4 e n.º 5)124.

Configuradas as modificações objectivas da instância, segue-se a alteração estrutural do modus procedendi. Neste último caso, o juiz deve convidar as partes para, no prazo de 20 dias, acordarem o montante do valor da indemnização a que o autor tem direito, devendo seguir-se os trâmites previstos no artigo 45.º, n.º 1. Ora, como, no caso de não haver acordo, o autor pode requerer ao tribunal a fixação do montante da indemnização devida (nos termos do art. 45.º, n.º 4), neste caso, o tribunal poderá proceder à alteração dosPage 244 trâmites, ordenando as diligências instrutórias que considere necessárias. E o mesmo acontece quando a modificação da instância resulta do facto de ter sido celebrado o contrato, devendo neste caso o tribunal ter acesso à prova deste novo facto, cabendo à Administração esse ónus. Enfim, sendo líquido que o tribunal pode conhecer de um objecto mais alargado do que o inicialmente previsto, e sendo assim possível que o juiz da urgência aplique poderes condenatórios a título de reparação por danos a par dos poderes de anular ou declarar nulo um contrato, a estrutura do processo é por ele próprio adaptada e determinada, em função desta nova configuração objectiva da instância, sendo que, em qualquer destas situações supervenientes, a situação de urgência deixa de existir e assim, não obstante o processo continuar a possuir natureza sumária, essa sumariedade decorre do carácter simplificado e abreviado que é determinado pelo legislador e pelo juiz.

Em segundo lugar, a conformação da atipicidade da estrutura do processo pré-contratual resulta do facto de o juiz poder, quando o considere aconselhável ao mais rápido esclarecimento da questão, optar pela realização de uma audiência pública que tanto versará sobre a matéria de facto como sobre a matéria de direito. Podendo a produção de prova ser...

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