Princípio dispositivo

AutorHelder Martins Leitão
Cargo do AutorAdvogado
Páginas26-35

    «Et bien souvent, par cautèle subtile, tort bien mené, rend bon droit inutile».

Marot

Page 26

Gnese

O princípio dispositivo entronca as suas raízes no antigo Direito Romano.

É uma emanação da tríade «ius utendi, fruendi et abutendi». 26 Quem é dono absoluto de um direito subjectivo tem à sua mão a possibilidade (disposição) do mesmo dispôr extra ou judicialmente.

É um verdadeiro direito real, que maugrado ser disciplina substantiva, se projecta no elenco adjectivo.

É bem compreensível que através dos tempos, este princípio processual, que, aliás, foi dos primeiros a nascer, se tenha mantido incólume, não fora a sua raíz economicista, reconhecedor da propriedade privada. 27

Como que, se marca o estado de evolução do direito pela inserção e manutenção do princípio dispositivo nos vários diplomas adjectivos. Daí que mesmo em regimes onde a propriedade privada se desprestigia, o poder dispositivo das partes permaneça. 28

Paradoxalmente, tem sido em sistemas socialistas que o princípio é derrogado ou, pelo menos, sofre turbação.

Repare-se que mesmo no caso de políticas legislativas, conhecidas por «socialização do processo civil», ainda aqui, não tem sido costume pôr em causa o princípio de que estamos a tratar. Com efeito, as reformas legislativas iniciadas na Áustria em 1895 e secundadas noutros países europeus, 29 todas elas deixaram intocado o princípio dispositivo, ainda que outros, como a oralidade e a livre valoração da prova, tenham sido afectados.

Conceito

Na definição de Grunsky, o princípio dispositivo constitui um poder de disposição sobre o exercício da acção e o objecto do processo.

Neste entendimento, o processo civil abriga-se no princípio dispositivo, subjacente a três notas essenciais:

- as partes em litígio são donas do direito material que se discute na acção e daí, poderem 30 como que manipular o direito de acção, ostentar a plena titularidade do mesmo;

- na sequência são também donas absolutas da pretensão e do prosseguimento ou não da respectiva tramitação;

- as pretensões das partes vinculam a actividade do juiz.

Dispôr, donde parte o étimo do princípio que focalizamos, provém do latim, disponere, cujo significado se espraia entre os sinónimos «dispor», «decidir», «ordenar», «formar uma linha de batalha», «estabelecer postos».

Porque os direitos e os interesses jurídicos, discutíveis no processo civil, se arregimentam no domínio absoluto dos particulares, ninguém jamais poderá ser impedido de se abrigar à sua tutela jurisdicional ou de os exercitar, em prol da sua defesa, perante os tribunais.

Existem mesmo brocardos axiomáticos que mais não são do que consequências directas do princípio dispositivo: «ne precedat iudex ex officio» ou « wo Kein Kläger, da Kein Richter». 31

O princípio dispositivo é antecedido de um outro de «oportunidade» do exercício do direito que assiste a todos os particulares: as partes é que «sentirão» o momento da instauração da acção, os meios de que para tanto se socorrerão, o que pretendem carrear para osPage 27 autos e a altura exacta em que suspenderão ou extinguirão a instância. Aliás, aquele princípio de oportunidade, surge mesmo, amplo que é, no espaço e no tempo, antes de qualquer tomada de posição perante um tribunal. É o particular que também decide qual a via que adopta para dirimência do seu conflito: a extra-judicial ou a judicial. E em ambas as vertentes está-se-lhe presente o princípio dispositivo. Se fora do tribunal não se terá de preocupar com a forma, quando na via jurisdicional há regras a que tem de obedecer, ainda que nunca perdendo a possibilidade da condução do processo.

O princípio dispositivo, também chamado princípio do pedido, tem o seu contrapolo no princípio do inquisitório, ou oficialidade, que no seu clímax admite o início do processo sem qualquer actividade, ou mesmo existência do peticionante. Como que se elege o predomínio do interesse público, derivado do facto da sociedade ter que ser defendida perante factos demasiado importantes que não podem ser postos em causa: antes de mais, atente-se na arguição da nulidade, que é ex officio.

Mas a verdade é que nos processos civis informados pelo princípio dispositivo, as partes não são apenas donas do exercício da acção, 32 mas também da pretensão e mesmo do processo, em toda a sua extensão. É afinal o «ius utendi, fruendi et abutendi». E se se é dono, então, pode-se «dispor», usando dos actos e diligências que a lei processual permite, desde a renúncia, à desistência, à caducidade, à transacção, etc..

O princípio dispositivo «obriga» o juiz a conformar-se, a cingir-se, ao delineado pelas partes, seja, o estricto respeito do «ne eat iudex ultra petita partium».

A este propósito, assinale-se o art. 264.º do C.P.C., que fixa a iniciativa e o impulso processual na esfera das partes, condimentado, no entanto, com o poder inquisitório do juiz, para o caso de ordenamento de diligências quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.

E só lhe é lícito conhecer os que se encontrem no âmbito do que foi articulado pelas partes. É de tal importância o que, se afirma, que na condenação, não pode a sentença decidir nem em quantidade superior, nem em objecto diferente daquele que tiver sido pedido. 33

Se o juiz não está sujeito às alegações das partes no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, tal decorrendo do art. 664.º, já o mesmo não sucede quanto à factualidade de que pode lançar mão, pois salvo o disposto nos arts. 514.º e 665.º, só pode servir-se dos factos articulados pelas partes.Page 28

Finalize-se esta incursão pela vinculação do órgão jurisdicional às pretensões das partes, alertando para o facto de que o dever de congruência do aresto em relação ao «disposto» nos autos, perdura mesmo no tribunal «ad quem». Este não pode julgar para além da pretensão das partes trazida ao tribunal «a quo». 34

Confluindo, diríamos, que em obediência ao princípio dispositivo, nunca uma decisão pode outorgar mais do que o solicitado pelo peticionante, menos do que o referido pelo demandado ou omitir pronunciar-se sobre todas as pretensões das partes: a sentença não pode ser «supra petita», «contra petita» ou «extra petita».

Veja-se, a propósito, a seguinte jurisprudência:

Ac. Rel. Lisboa, de 10/11/94: 35

I - Se um facto concreto, submetido a julgamento, for dado como não provado, não é admissível, posteriormente, considerá-lo como provado, com base em meras presunções, ou na extrapolação de factos.

II - Não se verifica a nulidade prevista na segunda parte da alínea e) do n.º 1 do art. 668.º do Cód. Proc....

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