"Princípio da precaução" e proteção ao consumidor

AutorRoberto Grassi Neto
CargoProfessor Doutor e Coordenador do Núcleo Departamental da Faculdade Autônoma de Direito (FADISP); Mestre e Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP)
01) O problemático emprego da tecnologia transgênica: panacéia segura contra pragas das lavouras ou solução inconseqüente que expõe consumidor e meio ambiente a riscos desnecessários?

O surgimento de novas tecnologias, especialmente no âmbito da agricultura, tem ensejado acalorados debates, tanto por parte de ambientalistas como de entidades de consumidores, com relação à formação de cultivares1 a partir do emprego de sementes que teriam sido geneticamente modificadas a fim de reduzir ou eliminar a utilização de agrotóxicos.

As sementes transgênicas atualmente comercializadas são produzidas em função de dois escopos diversos. O primeiro deles é permitir a substituição de toda uma gama de pesticidas por um único agrotóxico, o glifosato. Mencionada técnica interventiva é denominada Roundup Ready (RR), sendo adotada em cerca de 75% da produção mundial de transgênicos. A segunda modalidade operacional, denominada "Bt", é empregada em 17% dos transgênicos produzidos, e pretende a redução do uso de agrotóxicos pela produção de "plantas inseticidas". Os restantes 8% das plantas transgênicas empregam uma combinação dos dois sistemas.

A denominação decorre do fato das plantas, após o recebimento dos genes de uma bactéria do solo mediante emprego de engenharia genética, passarem a produzir toxinas que causam a morte por envenenamento dos insetos que delas se alimentem.

Mencionados benefícios são largamente contestados tanto por ambientalistas, como pelos próprios agricultores.

No âmbito do consumo alimentar há a preocupação de que os genes de bactérias introduzidos nos transgênicos possam ser prejudiciais à saúde humana2.

Do ponto de vista ambiental, tem-se associado a necessidade de maior uso de herbicida ao surgimento de ervas daninhas tolerantes ao glifosato, fenômeno presente nos cultivos convencionais de soja e que é potencializado nas lavouras transgênicas. Igualmente preocupantes são a constatação da inveracidade das afirmações no sentido de que o glifosato seria biodegradável3 e a possibilidade de ocorrência do chamado fluxo gênico, fenômeno pelo qual os genes introduzidos em transgênicos se espalham, contaminando outros organismos pela alteração de sua herança genética.

Sob o prisma dos agricultores que empregam sementes transgênicas, a maior crítica consiste no fato de ficarem à mercê de empresas detentoras da tecnologia empregada, como Monsanto e Syngenta4. Para os demais produtores, que utilizam sementes convencionais, os perigos são a contaminação e a possibilidade de serem obrigados ao pagamento de royalties quando a safra não é segregada ou quando há erros nos testes de transgenia5.

Em meio à preocupante conjuntura acima descrita, vem ganhando força a noção de "precaução", erigida a princípio jurídico cuja relevância é de tal ordem que tem sido objeto de estudos, especialmente no âmbito da preservação do meio ambiente e da proteção ao consumidor.

02) Noção de Princípios de Direito

A abordagem da noção e do alcance do denominado "princípio da precaução", bem como de sua correlação com a produção de alimentos geneticamente modificados, não poderia ser efetuada a contento sem que, antes, fosse procedida à análise da problemática dos Princípios de Direito, magnificamente sintetizada por Norberto BOBBIO em torno de três questões, cujas respostas assumirão contornos completamente diversos, consoante a escola de pensamento a que se filie o intérprete da lei: 1.a.os princípios gerais são normas jurídicas? 2.aoriginam-se dentro ou fora do sistema? 3.aqual a autoridade de que são investidos diante das outras normas do sistema?6

Pela ótica Jusnaturalista, princípios de direito não são normas. Tendo sua origem no Direito Natural, estariam eles situados em um plano superior, fora do sistema normativo, sendo passíveis de aplicação meramente supletiva, na medida em que houvesse omissão legislativa7.

A doutrina Positivista, por sua vez, assevera que princípios de direito são normas. Tendo sua origem no sistema, diferenciar-se-iam das demais normas - denominadas regras - pela sua natureza mais genérica e indefinida, bem como por seu caráter diretivo8.

Consoante a Escola Pós-positivista, por fim, os princípios não são normas; embora integrem a estrutura do sistema normativo, conferindo-lhe coesão, os princípios não se confundiriam com as normas, dado o fato de sua natureza jurídica ser diversa, desempenhando, consoante a elegante terminologia de Larenz9, a função de "pautas diretivas de normação jurídica".

No Brasil despontam sob o prisma pós-positivista conceitos de princípios como o proposto por TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR, que afasta, de imediato, sua natureza normativa: "tratam-se não de normas, mas de princípios. Ou seja, não são elementos do repertório do sistema, mas fazem parte de suas regras estruturais, dizem respeito à relação entre as normas no sistema, ao qual conferem coesão"10.

Não menos precisa, a apurada proposição de CELSO A. BANDEIRA DE MELLO considera o princípio de direito como sendo o "mandamento nuclear de um sistema, verda-deiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que confere a tônica e lhe dá sentido harmônico" 11.

A diversidade dos enfoques de cada corrente é de tal ordem que, mesmo em análise meramente superficial, é possível constatar ter sido a previsão contida no art. 4° da LICC elaborada em obediência à concepção jusnaturalista de Direito - predominante em 1942, mas atualmente considerada ultrapassada -, segundo a qual os princípios de direito são concebidos enquanto fonte meramente supletiva ao legislador, a incidir tão somente se o intérprete não encontrar a solução para determinada situação dentro do sistema.

A partir de meados do século XX, com efeito, passou a prevalecer de modo geral a visão positivista, segundo a qual os princípios são normas diretivas fundamentais de caráter cogente, genérico, indefinido e indireto, que desempenham papel de primazia sobre as demais. Atualmente mencionada concepção vem dando lugar ao pensamento dito pós-positivista, segundo o qual mais adequado seria dizer-se simplesmente que os princípios desempenham papel de primazia sobre as normas - e não sobre outras normas -, dada sua natureza não normativa, de elemento aglutinador que apenas formalmente integra o sistema.

03) Princípios de Direito do Consumidor

No Brasil, as relações de consumo vêm reguladas basicamente na Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990, denominado "Código de Defesa do Consumidor", que "dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências". Considerado no mundo todo como verdadeiro paradigma em sua área, o C.D.C. brasileiro é diploma legal dos mais modernos, cujo texto - ao contrário do ocorrido com outros existentes na legislação comparada, como o Code de la Consommmation francês, mera compilação de textos legais procedida por determinação da então Ministra do Consumo - decorre de vontade expressa manifestada pela Assembléia Nacional Constituinte no sentido de ser realizado efetivo trabalho de codificação dispondo de modo abrangente sobre a matéria.

A proteção ao consumidor é abordada sob enfoques diversos pela Constituição Federal Brasileira em três passagens distintas: na primeira delas, a proteção ao consumidor vem relacionada em meio a vasto rol de direitos fundamentais (art. 5°, XXXII, da C.F. de 1988). É ela igualmente considerada como sendo um dos princípios gerais da atividade econômica, constantes do capítulo I, do Título VII, que trata da ordem econômica e financeira (art. 170, V, da Constituição Federal). O tema foi, por fim, objeto do artigo 48 das Disposições Transitórias, no qual ficou previsto que o Congresso, no prazo de cento e vinte dias contados da promulgação da Constituição, elaboraria um Código de Defesa do Consumidor.

É por tal razão que a melhor doutrina tem considerado a "defesa do consumidor" como sendo "Princípio Normativo Fundamental Expresso na Constituição", ou simplesmente "Princípio Fundamental Expresso na Constituição", se adotarmos a visão pós-positivista.

A proteção ao consumidor é princípio "fundamental" na medida em que, por um lado, não está lastreado em outros princípios ou normas de caráter axiológico que lhe sejam superiores; o adjetivo, por outro lado, decorre do fato de que se prestam, ao mesmo tempo, a direcionar, inspirar e servir de fundamento axiológico para as normas que integram o sistema12.

Seu caráter "expresso", por sua vez, advém da circunstância de vir formulado explicitamente em dispositivo constitucional, podendo ser obtido mediante emprego de simples hermenêutica13. Observe-se, outrossim, ser irrelevante o fato de vir ou não sob a rubrica formal de "Princípio de Direito" para ser como tal considerado, bastando, para tanto, que possa ser encontrado em dispositivo específico do corpo normativo.

Com fundamento em mencionado "Princípio Fundamental de Defesa do Consumidor", inúmeros outros princípios são passíveis de serem extraídos do sistema normativo infraconstitucional. São os denominados "princípios decorrentes", "princípios derivados" ou "princípios imanentes", na medida em que se destinam à implementação de dito princípio...

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