Primeira fase: Primeiro Movimento Autonomista, A Livre Administração dos Açores pelos Açorianos

AutorArnaldo Ourique
Cargo do AutorLicenciado, Pós-Graduado e Mestre em Direito , Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Páginas20-60

...vários corpos contínuos juntamente... daí, pela participação insensível das partes mínimas de terra, e das partes mínimas de água, que entram no conjunto, não se afirmará que são distintas, nem contínuas, mas sim um todo contínuo que não é água nem terra, mas lama.

(GIORDANO BRUNO)

5. Primeira fase, Primeiro Movimento Autonomista, A Livre Administração dos Açores pelos Açorianos

I - Razão de ordem

Esta secção do presente estudo, dividimo-la em cinco partes. Na parte II analisaremos em pormenor as leis que regulavam a administração distrital de então, o Código Administrativo de 1896 e as duas leis administrativas de 1892; além das leis, veremos as propostas dos açorianos existentes nesta fase da autonomia administrativa dos Açores.

É que, enquanto os Açores, ou melhor os deputados de S. Miguel,46 lutavam por um diploma que devolvesse a autonomia administrativa criada pelo Código Administrativo de 1896, este vigorava nos distritos, bem como as leis de 1892. São, pois, os antecedentes do Decreto de 2 de Março de 1895. São antecedentes legais e todo um conjunto de propostas que acabaram por não vingar.

Depois dividimos os distritos de Angra do Heroísmo e Ponta Delgada, e o da Horta. A divisão tem uma explicação quase surpreendente: é que, contra muito do quanto se escreve em Portugal sobre o assunto,47-48 o Decreto de 2 de Março de 1895 não é o decreto da autonomia dos Açores, ou dos distritos dos Açores, mas apenas e só o decreto da autonomia administrativa dos distritos de Angra do Heroísmo e de Ponta Delgada. Veremos a seu tempo que durante muitos anos o distrito da Horta foi governado com o sistema existente no continente português. Razão pela qual, na parte dois analisamos o sistema deste distrito, para depois nos dedicarmos aos outros distritos, estes sim, com o famoso Decreto de 2 de Março de 1895.

II - Antecedentes
A) Razão de ordem

Para muitos, a maioria, a história da autonomia dos Açores começa aqui nesta primeira fase, com o primeiro movimento autonómico nos e dos Açores,49 e o Decreto de 2 de Março de 1895.

Mas pelos antecedentes da instituição daquele decreto de 1895, o que verificamos é que o que começou no fim do Século XIX não foi senão um forte sentimento de unidade de ilha e não das ilhas.50 Tudo começou em S. Miguel, nas Furnas, em Agosto de 1891.51

Mas isso não significa, como iremos ver já a seguir, que aqui tenha começado a autonomia dos Açores. Ela, no plano jurídico, teve início muito antes.

A autonomia das ilhas no primeiro período, antes de 1895, era amplíssima e até unitária, abrangendo os Açores num todo, com uma autonomia própria dos capitães do donatário, mais tarde a capitania geral, e foi a revolução liberal no início do Século XIX que veio a provocar a divisão das ilhas. Até 1766 funcionou nas ilhas uma forte autonomia local dentro dum sistema global que era a província com poderes muito amplos. A capitania-geral com sede em Angra do Heroísmo, e contra a forma descentralizada da autonomia até então, foi uma reforma de Marquês de Pombal criada por decreto de 2 de Agosto de 1766.52 Esta forma de auto governo com capitania-geral ao longo dos anos nunca agradou às outras ilhas que, aproveitando as ideias liberais (que curiosamente no início não lhes agradavam), tentaram libertar-se do governo da Ilha Terceira. Assim se manifestaram a Horta e S. Miguel. Já em 1821 esta se encontrava desprendida de Angra do Heroísmo, e, através de uma petição de 21 de Maio, requereu ao Soberano Congresso que dividisse as ilhas em três departamentos,53 tendo a Horta feito o mesmo pedido imediatamente a seguir,54 o que efectivamente aconteceu em Carta de Lei de 2 de Fevereiro de 1822, a divisão das ilhas em três comarcas.

Portanto, a autonomia das ilhas é muito anterior a 1895 e se se quiser pode até afirmar-se que a unidade das ilhas foi colocada em causa a partir da revolução liberal.

Poderíamos então remontar a textos anteriores a 1886, mas, respeitando o objecto no tempo, e até mantendo as coisas como estão ao nível da nossa divisão dos períodos histórico-jurídicos dos Açores, iniciaremos o nosso estudo no antecedente jurídico principal do Decreto de 2 de Março de 1895: o Código Administrativo de 1886. A descrição pormenorizada deste Código pode, à primeira vista, parecer demasiada, mas veremos a seu tempo como não o é.

B) O Código Administrativo de 1886

Quando no seu artº1º o Código Administrativo de 188655 designa por ilhas adjacentes os arquipélagos dos Açores e da Madeira, não fazia qualquer inovação, porque tal expressão vinha já do famoso Código Administrativo de Maio de 1832 de MOUZINHO DA SILVEIRA.

O Código Administrativo de 1886 dividia o território português, para efeitos administrativos, em três circunscrições: "Continente", "Algarves" e "Ilhas Adjacentes", artº1º. Estas, por sua vez, estavam divididas em distritos, concelhos e paróquias, artº1º.56 Interessa-nos unicamente os distritos.57 Os corpos administrativos do distrito eram:

- a junta geral, que era um órgão deliberativo;58

- e a comissão distrital, que era um serviço executivo da junta geral;59

- acrescentamos o governador civil, que era o representante local do governo.60

O Código Administrativo de 1886 não inclui expressamente o governador civil nos corpos administrativos,61 mas ele era o imediato delegado e representante do governo no distrito e com vastas competências, a maioria das quais incidentes em toda a autonomia administrativa. Por isso, não faz parte, é certo, dos corpos administrativos que são por natureza órgãos eleitos pelos eleitores das circunscrições administrativas locais,62 mas deles faz parte por razões que perceberemos mais à frente.

A descentralização administrativa portuguesa de então passava pelo seguinte esquema de hierarquia funcional e de descentralização administrativa:

- governo;

- ministérios governamentais;

- governador civil;

- junta geral;

- câmaras municipais;

- e paróquias.

1 - Junta geral

A junta geral, órgão eleito directamente pelos eleitores, que reunia e funcionava no edifício do governador civil, era composta por 21 a 25 procuradores.63 Em cada ano civil tinha três sessões ordinárias, de duração de um mês cada (Janeiro, Abril e Novembro), prorrogáveis, podendo reunir-se extraordinariamente sempre que «o exigirem as necessidades do serviço público», e as sessões eram abertas e encerradas pelo governador civil em nome do rei.64

A junta geral tinha secretário e vice-secretário, eleitos anualmente de entre os procuradores, tendo também o pessoal administrativo necessário às suas actividades.65 Através do seu presidente, correspondia-se directamente com as autoridades e repartições públicas do distrito, no entanto, qualquer correspondência com o governo ou com repartições superiores, essa era obrigatoriamente entregue ao governador civil que servia de correio.66 Todas as deliberações da eram publicadas nos jornais do distrito ou afixadas na porta do governador civil, sendo entregues um resumo a este representante do governo; e quando o governador civil o exigisse, principalmente aquelas que lhe suscitavam dúvidas relativamente à sua legalidade ou contrárias ao interesse público, a junta geral entregava uma cópia autentica da deliberação.67

Ponto importante era a natureza das deliberações que podiam ser definitivas ou provisórias: as deliberações tornavam-se definitivas se não fossem suspensas através de publicação na folha oficial do governo por ilegalidade ou contrárias ao interesse público dentro do prazo de 60 dias (40 dias para o resto do país), a contar da entrega feita ao governador civil; as deliberações definitivas eram as que se podiam executar imediatamente; as outras, dependiam daquele prazo de 60 dias.68

Nas matérias mais importantes, sendo as deliberações provisórias:

- o governo poderia produzir o efeito de suspensão com efeitos sem prazo legal, ficando o governo apenas obrigado a dar conta da deliberação suspensa nas cortes;69

- embora a junta geral pudesse também substituir a deliberação suspensa declarando-a sem nenhum efeito. Neste caso, se o governo não usasse do poder suspensivo, esta deliberação convertia-se em definitiva.70

A junta geral podia solicitar ao governo que não usasse a faculdade de suspender as suas deliberações,71 e podia, igualmente, o governo, directamente ou por intermédio do governador civil, recomendar à junta geral que reformulasse a deliberação na parte considerada ilegal ou contrária ao interesse público.72

A junta geral tinha, distinguia o Código, atribuições e competências. Dentro das...

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