Parecer n.º 6/2019

Data de publicação18 Fevereiro 2019
SeçãoParte D - Tribunais e Ministério Público
ÓrgãoMinistério Público - Procuradoria-Geral da República

Parecer n.º 6/2019

Greve - Greve Sectorial - Greve Rotativa - Greve Self-Service - Greve de Maior Prejuízo - Greve Ilícita - Pré-Aviso de Greve - Crowdfunding - Fundo de Greve - Perda Salarial - Prestação de Serviços Mínimos - Direito à Saúde - Falta Injustificada - Responsabilidade Disciplinar - Responsabilidade Civil Extracontratual.

1.ª A Constituição, assim como a lei ordinária, optaram por não definir o conceito de greve, apontando a doutrina, consensualmente, como característica essencial desta figura, a abstenção temporária da prestação de trabalho, inserida numa ação coletiva e concertada dos trabalhadores, a qual pode assumir as mais variadas formas, tempos e modos de execução, visando exercer uma pressão sobre a entidade patronal no sentido da obtenção de um objetivo comum.

2.ª Adotou-se uma noção aberta de greve que acolhe o caráter dinâmico desta forma de luta dos trabalhadores, a qual pode assumir um amplo leque de modalidades de execução, desde que não deixem de estar presentes os elementos identitários desta forma de luta laboral.

3.ª Dos dados fornecidos pela entidade consulente resulta que a greve dos enfermeiros decretada pela Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros e o Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal e que teve início no dia 22 de novembro de 2018 e termo no dia 31 de dezembro do mesmo ano, denominada como greve cirúrgica pelos dirigentes daquelas organizações sindicais, decorreu nos Centros Hospitalares Universitário de S. João, Universitário do Porto, Universitário de Coimbra, Universitário Lisboa Norte e de Setúbal, tendo-se registado a ausência de enfermeiros, com justificação no exercício do direito de greve, no serviço prestado nos blocos operatórios daquelas unidades hospitalares, o que determinou o adiamento de milhares de cirurgias cuja realização se encontrava programada para aquele período.

4.ª Essas ausências não foram contínuas durante todo o período de greve, tendo cada um dos enfermeiros que aderiu à greve não comparecido ao serviço de forma intermitente, em dias interpolados, e, em algumas situações, até em turnos interpolados, de forma que o número mínimo de enfermeiros necessários à realização das intervenções cirúrgicas não estivesse presente, o que determinou o adiamento das cirurgias marcadas.

5.ª A greve na sua execução revelou-se uma greve parcial setorial, uma vez que as abstenções ao trabalho, com fundamento no exercício do direito de greve, se concentraram num setor específico das unidades hospitalares abrangidas pelo aviso prévio de greve.

6.ª Noutra perspetiva, a greve inclui-se na área das denominadas greves rotativas ou articuladas, não porque tenha ocorrido uma alternância do setor da empresa afetado pela paralisação dos trabalhadores em greve, como sucede nas greves rotativas tradicionais, uma vez que neste caso foi sempre o mesmo setor o atingido pela greve, mas sim porque, sendo necessário para a operacionalidade desse setor, o trabalho em equipa, os elementos que a compunham faltaram alternadamente, inviabilizando assim o funcionamento da equipa e, consequentemente, a operacionalidade da atividade por ela desenvolvida.

7.ª Nestas situações, apesar de se considerar lícita esta modalidade de greve, não deve ser admitida a desproporção entre os prejuízos causados à entidade patronal e as perdas salariais sofridas pelos trabalhadores em greve, pelo que os descontos salariais devem ter em conta não só o período efetivo em que cada trabalhador se encontrou na situação de aderente à greve, mas também os restantes períodos que, em resultado daquela ação concertada, os serviços estiveram paralisados, desde que se encontre demonstrada a inutilidade da sua aparente disponibilidade nos períodos de não adesão formal à greve.

8.ª Nas greves setoriais deve constar do aviso prévio a identificação dos setores que vão ser atingidos e nas greves rotativas o modo como se irá processar essa rotatividade.

9.ª Só assim o aviso prévio de greve cumprirá a sua função e alcançará as suas finalidades, pelo que a ausência de qualquer indicação sobre o tempo e o modo como a greve se vai desenrolar ou uma indicação errada destes elementos resulta num incumprimento daquele dever de informação que tem como consequência a ilicitude da greve.

10.ª É precisamente esta a situação que se verifica na greve realizada pelos enfermeiros entre os dias 22 de novembro e 31 de dezembro de 2018, em que a modalidade que a mesma assumiu não constava do aviso prévio emitido pelos sindicatos que a decretaram, pelo que essa greve, pela surpresa que constituiu a forma como ocorreu, face ao conteúdo do aviso prévio, foi ilícita.

11.ª Nesta greve, conforme resulta dos elementos fornecidos pela entidade consulente, os grevistas foram apoiados financeiramente através do recurso a uma operação de crowdfunding na plataforma eletrónica PPL-Crowdfunding Portugal que os compensou das perdas salariais resultantes da adesão à greve.

12.ª Foram promotores desta iniciativa e gestores do fundo de greve um «grupo de enfermeiros da prática».

13.ª A constituição de fundos de greve em Portugal não se encontra legalmente prevista nem regulamentada, surgindo apenas estipulada na maioria dos estatutos das organizações sindicais.

14.ª Apesar de a greve ser um direito dos trabalhadores, tendo em consideração que a mesma pressupõe uma atuação concertada destes, o seu decretamento compete em regra às associações sindicais.

15.ª Este quase monopólio sindical da greve estende-se também à sua gestão, uma vez que os trabalhadores em greve, sejam ou não sindicalizados, no exercício deste direito, são representados pelas associações sindicais que decretaram a greve.

16.ª No âmbito da representação dos trabalhadores durante a greve, compete exclusivamente a estas entidades a prática dos atos relacionados com a realização da greve, o que inclui, além de outros, a constituição e utilização de fundos de greve destinados a compensar os trabalhadores que aderiram à greve da perda dos respetivos salários, uma vez que têm direta influência na capacidade de mobilização dos trabalhadores em aderirem a esta forma de luta e, consequentemente, na dimensão e força que ela assume.

17.ª Por esta razão, não é admissível que os trabalhadores aderentes a uma greve vejam compensados os salários que perderam como resultado dessa adesão, através da utilização de um fundo de greve que não foi constituído, nem é gerido pelos sindicatos que decretaram a greve.

18.ª Essa situação constitui uma ingerência inadmissível na atividade de gestão da greve, que incumbe exclusivamente às associações sindicais que a decretaram, o que constitui uma violação do disposto no artigo 532.º, n.º 1, do Código de Trabalho, que pode determinar a ilicitude da greve realizada com utilização daqueles fundos, caso se demonstre que essa utilização foi um elemento determinante dos termos em que a greve se desenrolou.

19.ª Os limites ao financiamento das organizações sindicais estabelecidos no artigo 405.º, n.º 1, do Código do Trabalho, também abrangem a constituição dos fundos de greve.

20.ª Nas operações de crowdfunding, os titulares das plataformas de financiamento estão obrigados a preservar a confidencialidade dos dados fornecidos pelos investidores, designadamente a sua identidade, pelo que não abdicando estes do anonimato, os beneficiários da operação não têm possibilidade de conhecer a sua identidade, o que não lhes permite controlar a origem dos donativos.

21.ª Não existindo regras no nosso sistema jurídico que regulem a concessão de donativos às associações sindicais e a constituição de fundos de greve, pode vir a apurar-se a existência de donativos que são ilícitos, por violarem o disposto no artigo 405.º, n.º 1, do Código do Trabalho, ou outras normas ou princípios que vigoram no nosso ordenamento jurídico.

22.ª A ilicitude desses donativos poderá provocar a ilicitude da greve caso se demonstre que estes, pela sua dimensão, foram determinantes dos termos em que a greve se desenrolou.

23.ª O artigo 541.º, n.º 1, do Código do Trabalho, aplicável ex vi do artigo 4.º, n.º 1, m), da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, dispõe que a ausência de trabalhador por motivo de adesão a greve declarada ou executada de forma contrária à lei considera-se falta injustificada.

24.ª A falta injustificada, além do desconto do tempo de greve na retribuição e na antiguidade, determina a qualificação da ausência como infração disciplinar, com a inerente possibilidade de aplicação de uma sanção, a qual variará consoante o número de dias de falta e outras circunstâncias que influam na gravidade do comportamento do trabalhador, podendo ser ponderado o eventual desconhecimento desculpável pelo trabalhador do caráter ilícito da greve como fundamento para a não aplicação de qualquer sanção.

25.ª Além da responsabilidade disciplinar, a adesão a uma greve ilegítima também poderá fazer incorrer o trabalhador aderente em responsabilidade civil extracontratual, nos termos do artigo 483.º do Código Civil, caso se verifiquem os pressupostos deste instituto, relativamente a danos resultantes da falta do trabalhador, podendo também, nesta temática, ser considerado, no domínio da culpa, o desconhecimento pelo trabalhador do caráter ilícito da greve.

26.ª As organizações sindicais que decretaram e geriram essa greve, também poderão ser civilmente responsabilizadas pelos prejuízos causados por uma greve ilicitamente decretada ou executada, desde que a sua conduta preencha os pressupostos exigidos pelo artigo 483.º do Código Civil.

27.ª Quando a ilicitude da greve resulta do facto de esta ter sido executada numa modalidade que não constava do aviso prévio de greve, os danos a considerar serão apenas aqueles que resultaram exclusivamente da ausência dessa informação.

Senhora Ministra da Saúde

Excelência:

1 - A consulta complementar

Solicita Vossa Excelência que o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, com urgência, emita parecer complementar ao Parecer n.º 35/2018, nos termos do artigo 37.º, a), do...

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