Parecer n.º 35/2017

Data de publicação29 Abril 2019
SeçãoParte D - Tribunais e Ministério Público
ÓrgãoMinistério Público - Procuradoria-Geral da República

Parecer n.º 35/2017

Direito a Férias - Interrupção - Processo Disciplinar - Procedimento Urgente - Diligências Processuais - Produção de Prova - Dever de Colaboração - Dever de Prossecução do Interesse Público - Juízo de Proporcionalidade e de Necessidade.

1.ª O direito a férias periódicas e pagas visa assegurar o repouso do trabalhador e a sua recuperação física e psíquica, bem como a sua disponibilidade pessoal, a integração na vida familiar e a participação social e cultural, mas não confere um direito absoluto a gozar férias num período determinado, nem à inalterabilidade do período marcado.

2.ª Apesar de, nos termos do artigo 90.º do ECD, o docente em férias não dever ser chamado a realizar «quaisquer tarefas», isso não deve obstar a que, perante uma situação de imperiosa necessidade ligada ao funcionamento do estabelecimento de ensino, o docente possa ser convocado, nos termos, nas condições e com as contrapartidas previstas no artigo 243.º do Código do Trabalho.

3.ª Tal situação não se confunde, contudo, com a participação do docente em processo disciplinar, que releva do dever de colaboração com a realização da justiça disciplinar, decorrente, quer do dever geral de prossecução do interesse público, quer dos deveres especiais para com a escola a que os docentes estão sujeitos.

4.ª A justiça disciplinar assenta no primado da verdade material e reclama a comparência, quer do arguido, quer das testemunhas e de outros participantes devidamente convocados e, sem prejuízo da possibilidade de justificação da falta por motivos ponderosos - designadamente associados ao modo concreto do gozo de férias - o decurso destas não constitui só por si fundamento para não comparência ao ato processual.

5.ª A impossibilidade de o instrutor realizar diligências sempre que o arguido ou o participante processual se encontrasse de férias inviabilizaria o cumprimento de muitos dos prazos fixados pelo legislador e, em última análise, poderia mesmo levar à prescrição do procedimento previsto no n.º 5 do artigo 178.º da LGTFP, obstando à realização da ação disciplinar.

6.ª Aliás, o único fundamento de suspensão do referido prazo de prescrição do procedimento consiste em situações em que «por força da decisão ou de apreciação judicial de qualquer questão, a marcha do correspondente processo não possa começar ou continuar a ter lugar» (n.º 6 do artigo 178.º).

7.ª Não obstante as conclusões anteriores, deve o instrutor dispor de uma margem de apreciação e decisão, formulando um juízo de proporcionalidade e de necessidade, face às circunstâncias do caso, em especial, aos prazos a observar, para avaliar se se impõe a convocação de docente em férias.

8.ª Dada a importância que assume o gozo de férias, em particular, o gozo consecutivo de um período mínimo de dias, no quadro legal do direito a férias, se não houver, no caso, razões de interesse público que a imponham, deve ser evitada a convocação do docente para comparecer em ato processual durante esse período.

Senhor Ministro da Educação

Excelência:

I

Dignou-se Vossa Excelência solicitar parecer desde corpo consultivo acerca da «legitimidade da convocatória por parte de instrutor de processo disciplinar, de um trabalhador em férias (em mapas de férias previamente aprovados) para comparecer na escola para realização de qualquer diligência processual»(1).

A questão fora suscitada perante a Inspeção-Geral da Educação e Ciência pelo departamento jurídico de um sindicato de professores e as dúvidas relevam da circunstância de, por um lado, o direito a férias ser considerado como um direito inalienável, com proteção constitucional, determinando o Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário (ECD), no artigo 90.º, que o pessoal docente não deve ser convocado para realização de quaisquer tarefas durante o período de férias mas, por outro lado, permitindo o artigo 243.º do Código do Trabalho a interrupção de férias «por exigências imperiosas do funcionamento da empresa».

Pretender-se-á, face às dúvidas suscitadas, elaborar uma circular interpretativa para valer como orientação para as escolas.

Cumpre, pois, emitir parecer.

II

O direito a férias periódicas e pagas assume uma dimensão universal estando consagrado em diversos instrumentos de direito internacional (artigo 24.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; artigo 7.º, d), do Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais/PIDESC; artigo 158.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia; artigo 31.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; artigo 2.º da Carta Social Europeia; em Convenções da OIT/n.º 52 e n.º 132)(2).

Entre nós, só na década de 60 do século passado, com a aprovação da LCT de 1966 e da LCT de 1969, esse direito se generalizou e passou a «associar-se à mera qualidade de trabalhador subordinado»(3).

A Constituição da República Portuguesa de 1976 consagrou, na categoria dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, os "Direitos dos trabalhadores", a que todos têm direito, sem distinção de idade, sexo, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, incluindo, no respetivo elenco, o direito «ao repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas» (artigo 59.º, n.º 1, d)).

Em anotação a esta norma escrevem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA(4):

«O direito ao repouso e outros direitos com ele conexionados devem ser contados, por um lado, entre os direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias (cf. art.17.º) e, por outro lado, entre os direitos fundamentais derivados [...], de tal modo que, uma vez obtido um determinado grau de concretização, esta não possa ser reduzida (a não ser nas condições do artigo 18.º(5), impondo-se diretamente a entidades públicas e privadas. Neste âmbito há que ter em conta igualmente as convenções internacionais da OIT sobre a matéria.

O direito ao limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas são alguns dos marcos da lenta emancipação dos trabalhadores desde o século XIX. Trata-se também de garantias do direito dos trabalhadores ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º-1) e à saúde (artigo 64.º), pelo que se pode colocar o problema de saber se não serão irrenunciáveis, pelo menos quanto a um mínimo essencial indispensável à proteção destes direitos. Por outro lado, os referidos direitos não incluem um direito dos trabalhadores de escolherem o turno diário, nem o dia de descanso semanal, nem o período de férias anual. [...].»

Também JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS(6), em anotação ao mesmo preceito constitucional, evidenciam a autonomização expressa do direito a férias periódicas pagas e referem que «cabe à lei - ou a outros instrumentos normativos - concretizar, no respeito pelas vinculações jurídico-constitucionais que se extraem da Constituição, o direito a férias periódicas pagas, estabelecendo o regime jurídico correspondente». Citando jurisprudência do Tribunal Constitucional, evidenciam que «vinculado o legislador ordinário a estabelecer o direito a férias remuneradas, está ele livre de optar, antes do mais, pela fixação de um momento temporário em que esse direito se vence, desde que, por via dessa opção, o direito ao descanso periódico permaneça intocado» e acrescentam que o mesmo se aplica em relação à duração do período de férias, à sua marcação e alteração, à remuneração durante as férias, à renunciabilidade do direito a férias, etc.

Deste modo, segundo estes AUTORES, «o direito dos trabalhadores a férias periódicas pagas não envolve um direito dos trabalhadores à marcação de um período de férias».

No mesmo sentido se pronunciou o Tribunal Constitucional, por Acórdão n.º 64/91, de 4 de abril: «A ideia de indispensabilidade de períodos de autodisponibilidade do trabalhador, que possibilitem a realização pessoal, a integração na vida familiar e a participação social e cultural, aponta para que o trabalhador possa, na medida do possível, ter uma palavra na escolha dos seus períodos de férias». Acrescenta, contudo, que «a garantia constitucional do repouso e dos lazeres do trabalhador, concretizada no direito a férias periódicas pagas, não confere um direito absoluto a gozar férias numa época determinada, nem um direito à inalterabilidade do período de gozo de férias».

Segundo MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO(7), «Na sua configuração originária, o direito a férias tinha subjacente a ideia de prémio ou recompensa do trabalhador [...]. Atualmente, é um direito reconhecido a todas as categorias de trabalhadores, que prossegue o objetivo essencial de assegurar o repouso do trabalhador e possibilitar a sua plena recuperação física para um ano de trabalho, bem como garantir condições de disponibilidade pessoal e integração familiar do trabalhador. Este objetivo - que se retira atualmente do artigo 237.º n.º 4 do Código do Trabalho, em consonância com o artigo 59.º n.º 1 d) da CRP - é o que preside ao reconhecimento do direito a um período mínimo de férias legalmente garantido, uma vez que este período é independente da assiduidade do trabalhador e da efetividade do trabalho (artigo 237.º n.º 2 do CT)».

2 - Vejamos, então, como se concretiza o direito a férias na legislação ordinária aplicável, no caso, e em primeiro lugar, no ECD e, a título subsidiário, na legislação geral aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas e ainda, por dupla e sucessiva remissão, no Código do Trabalho.

2.1 - O Estatuto da Carreira dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário (doravante ECD), aprovado pela Lei n.º 139-A/90, de 28 de abril, com sucessivas alterações(8), aplica-se «aos docentes, qualquer que seja o nível, ciclo de ensino, grupo de recrutamento ou área de formação, que exerçam funções nas diversas modalidades do sistema de educação e ensino não superior, e no âmbito dos estabelecimentos públicos de educação pré-escolar e dos ensinos básico e...

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