Parecer n.º 113/2005, de 05 de Julho de 2006

Parecer n.o 113/2005

Responsabilidade disciplinar - Aposentado - Actos praticados no decurso da aposentaçáo - Vínculo - Funçáo pública - Deveres da conduta privada.

  1. a No actual quadro constitucional, o direito disciplinar público - de que o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administraçáo Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n.o 24/84, de 16 de Janeiro, constitui o paradigma - comporta a existência de deveres de conduta privada.

  2. a A violaçáo de deveres de conduta privada assume relevância disciplinar quando afecte de forma real o funcionamento do serviço ou de modo grave a dignidade e o prestígio da funçáo ou da Administraçáo.

  3. a A relaçáo jurídica de emprego dos funcionários e agentes cessa, por regra, com a desligaçáo do serviço para efeito de aposentaçáo (cf. artigo 28.o, n.o 1, do Decreto-Lei n.o 427/89, de 7 de Dezembro).

  4. a Com a aposentaçáo surge entre o aposentado e a Administraçáo uma nova relaçáo jurídica (de aposentaçáo) de natureza essencialmente assistencial e prestacional.5.a O aposentado tem direito à pensáo de aposentaçáo e conserva os títulos e categoria do cargo que exercia, bem como os direitos e deveres que náo dependem da situaçáo de actividade (cf. artigo 74.o, n.o 1, do Estatuto da Aposentaçáo).

  5. a O aposentado continua sujeito a deveres de conduta privada, traduzidos designadamente na abstençáo da prática de factos integradores de crimes que tenham uma conexáo relevante com as funçóes antes exercidas e que, desse modo, afectem de forma real o funcionamento do serviço ou de modo grave a dignidade e o prestígio da funçáo ou da Administraçáo.

  6. a A conduta da vida privada do funcionário ou agente, no activo ou na aposentaçáo, náo pode ser disciplinarmente sancionada desde que se traduza no exercício de um direito constitucional.

    Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais:

    Excelência:

    1 - Na sequência de processo de inquérito destinado a apurar a relevância disciplinar de «factos que determinaram acçáo penal» contra funcionários da Direcçáo-Geral dos Impostos (DGCI), dignou-se

    V. Ex.a solicitar a emissáo de parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República sobre a questáo da eventual responsabilidade disciplinar «de funcionários [da DGCI] aposentados, por actos praticados no decurso da sua aposentaçáo» (1).

    Para uma melhor delimitaçáo, no plano subjectivo, do objecto da consulta, interessa precisar que a mesma tem como ponto de partida a eventual instauraçáo de procedimento disciplinar contra funcionários da DGCI aposentados, que, após a aposentaçáo, praticaram factos integradores de crimes de abuso de confiança e de corrupçáo activa, por que foram acusados pelo Ministério Público.

    Cumpre emitir parecer. 2 - A Constituiçáo da República Portuguesa dedica à Administraçáo Pública o título IX (artigos 266.o a 272.o) da parte III («Organizaçáo do poder político»). A primeira destas disposiçóes estabelece:

    Artigo 266.o

    Princípios fundamentais

    1 - A Administraçáo Pública visa a prossecuçáo do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadáos.

    2 - Os órgáos e agentes administrativos estáo subordinados à Constituiçáo e à lei e devem actuar, no exercício das suas funçóes, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé.

    O n.o 1 estabelece «dois limites substanciais à actividade administrativa: (a) limite positivo, expresso na obrigatoriedade da prossecuçáo do interesse público; (b) limite negativo, traduzido no respeito pelos direitos e interesses legítimos dos cidadáos».

    O interesse público «é um momento teleológico necessário de qualquer actividade administrativa: as autoridades administrativas, mesmo no uso de poderes discricionários, náo podem prosseguir uma qualquer finalidade, mas apenas a finalidade considerada pela lei ou pela Constituiçáo, que será sempre uma finalidade de interesse público».

    A expressáo direitos e interesses legalmente protegidos é suficientemente ampla para abranger todas as posiçóes jurídicas dos particulares merecedoras de protecçáo, e náo apenas os clássicos direitos subjectivos (2).

    O n.o 2 refere princípios gerais que regem a actividade administrativa, cujo conteúdo é objecto de explicitaçáo na lei ordinária, designadamente no Código do Procedimento Administrativo (3).

    No artigo 269.o, sobre o regime da funçáo pública, a Constituiçáo volta a realçar o interesse público e faz referência ao «processo disciplinar»:

    Artigo 269.o

    Regime da funçáo pública

    1 - No exercício das suas funçóes, os trabalhadores da Administraçáo Pública e demais agentes do Estado e outras entidades públicas estáo exclusivamente ao serviço do interesse público, tal como é definido, nos termos da lei, pelos órgáos competentes da Administraçáo.

    2 - Os trabalhadores da Administraçáo Pública e demais agentes do Estado e outras entidades públicas náo podem ser prejudicados ou beneficiados em virtude do exercício de quaisquer direitos políticos previstos na Constituiçáo, nomeadamente por opçáo partidária.

    3 - Em processo disciplinar sáo garantidas ao arguido a sua audiência e defesa.

    4- ...................................................

    5- ..................................................

    Apesar de o n.o 3 do artigo 269.o - como n.o 10 do artigo 32.o (4)- se referir apenas às garantias de audiência e defesa, entende-se que o processo disciplinar «deve configurar-se como um «processo justo», aplicando-se-lhe, na medida do possível, as regras ou princípios de defesa constitucionalmente estabelecidos para o processo penal, designadamente as garantias de legalidade, o direito à assistência de defensor (CRP, artigo 32.o-3), o princípio do contraditório (artigo 32.o-5), o direito de consulta do processo» (5).

    Ainda no plano constitucional, no domínio da responsabilidade, o n.o 1 do artigo 271.o da Constituiçáo estabelece que os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas «sáo responsáveis civil, criminal e disciplinarmente pelas acçóes ou omissóes praticadas no exercício das suas funçóes e por causa desse exercício de que resulte violaçáo dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadáos, náo dependendo a acçáo ou procedimento, em qualquer fase, de autorizaçáo hierárquica».

    Em anotaçáo a este preceito, Gomes Canotilho e Vital Moreira frisam que a responsabilidade específica do funcionário ou agente público «pressupóe uma conexáo funcional com o serviço, náo estando em causa comportamentos privados dos funcionários, sendo de resto insuficiente uma relaçáo indirecta, ocasional, com o serviço. Pelas acçóes ou omissóes alheias ao exercício de funçóes os funcionários e agentes do Estado respondem uti cives, como qualquer outro cidadáo, sem envolver a responsabilidade solidária do Estado» (6).

    On.o 2 do artigo 266.o,on.o 1 do artigo 269.o eon.o 1 do artigo 271.o da Constituiçáo utilizam a expressáo «no exercício das suas funçóes», com o que inculcam a ideia de que o respeito pelos princípios que regem a actividade administrativa, a prossecuçáo do interesse público e a responsabilizaçáo de funcionários e agentes reportam-se ao exercício de funçóes, isto é, têm a ver com o desenvolvimento funcional de uma relaçáo de serviço.

    O n.o 1 do artigo 271.o é, neste aspecto, a disposiçáo constitucional mais elucidativa, ao estabelecer que os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas sáo responsáveis disciplinarmente «pelas acçóes ou omissóes praticadas no exercício das suas funçóes e por causa desse exercício»(7).

    Refira-se ainda que a definiçáo do regime geral de puniçáo das infracçóes disciplinares - na funçáo pública e no ordenamento laboral - integra a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 165.o, n.o 1, alínea d), da Constituiçáo].

    3 - A disciplina constitui uma exigência de harmonia e adequado funcionamento de um grupo ou organizaçáo, sendo essencial para manter a ordem e para alcançar os fins propostos. O poder disciplinar representa, assim, um pilar fundamental sobre que repousa a organizaçáo de qualquer instituiçáo pública ou privada.

    O ordenado funcionamento da organizaçáo é o bem jurídico protegido pela disciplina, sendo múltiplas as condutas susceptíveis de o perturbar ou alterar.

    O poder disciplinar garante náo só a obrigaçáo básica do desempenho contínuo e diligente de uma dada funçáo ou tarefa como a observância de outras condutas exigíveis pelo facto de a actividade ser desenvolvida no seio de uma organizaçáo. Entre estas condutas, destaca-se, por um lado, o dever de obediência às ordens legítimas de quem detém o poder de mando ou de direcçáo e o respeito e colaboraçáo entre os membros da organizaçáo; por outro, a natureza fiduciária e pessoal da relaçáo de trabalho ou de serviço origina a necessidade de observar uma série de condutas que, pela sua incidência nos objectivos da organizaçáo, devem ser também garantidas disciplinarmente: este tipo de condutas costuma reconduzir-se ao dever de fidelidade, do qual derivam exigências de conteúdo diverso mas que sinteticamente podem resumir-se na obrigaçáo de náo prejudicar os interesses da organizaçáo, podendo mesmo afectar, dentro de certos limites, a vida privada do trabalhador (8).

    Entre nós, já Marcello Caetano, por referência ao direito administrativo, afirmava que o poder disciplinar «tem a sua origem e razáo de ser no interesse e na necessidade de aperfeiçoamento progressivo do serviço público» (9).

    Hoje continua a afirmar-se que a singularidade do poder disciplinar público «reside, em última instância, no interesse público, cuja realizaçáo se comete à organizaçáo administrativa» (10).

    Nos termos da Constituiçáo, a Administraçáo Pública «visa a pros-secuçáo do interesse público» (artigo 266.o, n.o 1), estando os trabalhadores da Administraçáo Pública e demais agentes do Estado e outras entidades públicas, no exercício das suas funçóes, exclusivamente ao serviço do interesse público...

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