Concorrência de empresas de telecomunicações

AutorAda Pellegrini Grinover
CargoProfessora Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - Brasil
A consulta

Honram-me os eminentes advogados Drs. Caio Mário da Silva Pereira Neto, Luis Gustavo Haddad e Fábio Floriano Melo Martins encaminhando consulta, acompanhada de documentos e com pedido de parecer, em nome de BRASIL TELECOM S.A., relativamente a averiguação preliminar instaurada perante a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (autos n. 08012.001851/2004-84).

O procedimento foi instaurado a partir de representação formulada pela EMBRATEL Empresa Brasileira de Telecomunicações, tendo como representadas as empresas BRASIL TELECOM S.A., TELE NORTE LESTE PARTICIPAÇÕES S.A. e TELECOMUNICAÇÕES DE SÃO PAULO S.A. TELESP. Objetiva, em síntese: apurar supostas ações conjuntas das representadas para (a) impedir a concorrência em suas regiões de concessão no Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC) local e de longa distância intra-regional; (b) impedir a concorrência no STFC de longa distância inter-regional e internacional; (c) dividir mercado de concorrências públicas para a contratação de STFC e do serviço de transmissão de dados; e (d) dividir o mercado na prestação de serviços de comunicações de dados e acesso ao backbone internet.

Interessa especialmente à consulta a circunstância de que foram trazidos aos autos da referida averiguação preliminar documentos apreendidos por meio de medida cautelar de busca e apreensão criminal, realizada na sede do Grupo Telefônica de São Paulo, do qual faz parte a representada TELESP. Tais documentos foram inicialmente remetidos à SDE pela autoridade policial encarregada da execução da apontada medida, para análise e auxílio nas investigações, inclusive com a designação de técnicos da Secretaria, especialmente para sua "triagem" e seleção daqueles que contêm indícios de infração à Lei 8.884/94 (Lei Brasileira de Defesa da Concorrência).

Importa observar que, em virtude de decisão judicial, a documentação mencionada fora mantida em "apartados confidenciais", até que, em ofício de 24 de janeiro de 2005, o M. Juízo de Direito do Departamento de Inquéritos Policiais (DIPO) de São Paulo, comunicou ter sido cassada liminar concedida em mandado de segurança, não persistindo, em conseqüência, o sigilo judicial sobre os documentos apreendidos.

Considerando que os documentos eram de propriedade da TELESP também representada e foram apreendidos na sede da empresa na referida diligência de busca e apreensão, a Sra. Diretora do DPDE houve por bem determinar que a referida empresa se manifestasse sobre o tratamento confidencial, justificando o pedido, bem como demonstrando os possíveis prejuízos que viesse a ter com sua publicidade (fls. 2099 dos autos).

Diante disso, a representada TELESP, em petição de 28 de dezembro de 2005, alegou que questiona judicialmente a legalidade da busca e apreensão dos documentos mantidos em apartados confidenciais, uma vez que eles nada têm que ver com a matéria que se investiga no inquérito policial e, menos ainda, com o conteúdo do mandado que lastreou a referida diligência.

Ademais, segundo a manifestação da TELESP, tais documentos tratam de matérias de alta relevância, muitas vezes estratégica, da empresa, de sua situação econômico-financeira, de seus segredos etc., pelo que juntá-los, pura e simplesmente, aos autos principais da averiguação, da qual participam seus concorrentes diretos, equivaleria a colocá-la em situação de evidente e injusta desigualdade, em detrimento de seu direito ao sigilo no que toca às informações que dizem respeito à sua ordinária, usual e, conseqüentemente, confidencial, administração. Por tudo isso, requereu que, sem prejuízo das averiguações, fosse mantido o sigilo (fls. 2107-2109).

Sobre esse pedido da TELESP, a autoridade administrativa entendeu inicialmente que ele não poderia prosperar, nos termos do solicitado, uma vez que a empresa não trouxe, detalhadamente, o porquê da manutenção do sigilo em relação a cada um dos documentos. Determinou, então, que a empresa justificasse o pedido, documento por documento, demonstrando os possíveis prejuízos que poderiam ocorrer com a publicidade (fls. 2125-2127).

Após manifestações da TELESP fls. 2133-2134 e 2138-2142 , a Sra. Coordenadora Geral da SDE determinou o traslado de cópias dos documentos em referência para apartados confidenciais, "com vistas exclusivamente às empresas representadas, para cada uma das infrações" (fls. 2202-2208).

Inconformada com essa última decisão, a representada TELESP pediu reconsideração, salientando que as demais representadas, que são suas concorrentes, teriam acesso a documentos relacionados com estratégias e segredos de negócio da empresa, além do que a sua divulgação para terceiros, em especial para concorrentes, poderia caracterizar a violação da imagem da TELESP.

Em face desse último pedido, a autoridade administrativa decidiu, finalmente, atender em parte à postulação da TELESP, nos termos de parecer em que são analisados de forma pormenorizada os documentos discutidos, concluindo-se por disponibilizar às demais representadas somente aquelas informações que guardem "estrita relação" com o objeto da acusação; assim, determinou que "serão tarjadas as informações consideradas desnecessárias, mantendo-se, entretanto, toda a estrutura do documento". Arremata então o parecer encampado pela Sra. Secretária de Direito Econômico: "a versão integral deve compor apartado confidencial com vistas somente ao SBDC e à empresa TELESP" (fls. 2224-2231, especialmente fls. 2227).

Diante dessa situação processual, apresentam os consulentes os quesitos seguintes:

Quesitos
  1. Quais são os requisitos para aceitar-se a prova emprestada no processo administrativo?

  2. Na situação descrita na consulta, foi legítima a produção, no processo administrativo, de prova documental obtida em inquérito policial instaurado para investigar condutas atribuídas a terceiros?

  3. No mesmo caso, são admissíveis no processo administrativo documentos cuja licitude está sendo contestada judicialmente, em face do excesso ocorrido na diligência de busca e apreensão? Há, na situação examinada, elementos para concluir-se pela ilicitude da prova?

  4. Pode a autoridade determinar o sigilo, para as próprias partes, sobre o conteúdo de documentos juntados aos autos do processo administrativo?

  5. Na situação examinada, foi regular a decretação do sigilo sobre o conteúdo de documentos em relação a algumas das partes, mantendo-se a versão integral apenas para o SBDC e para a TELESP?

  6. Ainda no mesmo caso, foi regular a supressão parcial do texto de documentos, excluindo-se o que não tivesse "estrita relação com a acusação", sem ouvir previamente as partes?

  7. Diante das respostas anteriores, quais as conseqüências processuais que devem ser extraídas das eventuais irregularidades existentes?

Bem examinadas as questões ventiladas pela consulta e a documentação encaminhada, passo a emitir o meu parecer.

Parecer
A) A administração e a ordem constitucional
1) A Administração e o devido processo legal

A análise histórica das garantias do devido processo legal demonstra que elas nasceram e foram cunhadas para o processo penal, onde se fazia sentir com mais urgência a preocupação com os direitos do acusado. Mas, a partir do art. 39 da Magna Carta de 1215, um longo caminho evolutivo levou, primeiro, ao reconhecimento da aplicabilidade das garantias ao processo civil1 e, posteriormente, ao processo administrativo punitivo2. Este último passo foi dado graças à generosa tendência rumo à denominada "jurisdicionalização do processo administrativo", expressão relevante do aperfeiçoamento do Estado de Direito, correspondendo ao princípio da legalidade a que está submetida a administração pública e aos princípios do contraditório e da ampla defesa, que devem preceder toda e qualquer imposição de pena3.

A essa evolução não ficou alheio o Brasil. As garantias expressas pelas Constituições para o processo penal foram sendo estendidas ao processo civil até a consagração da aplicabilidade, a este, da cláusula do "devido processo legal", na interpretação do princípio da proteção judiciária, solenemente explicitado pela Constituição de 1946 (art. 141, § 4°) e mantido pelas Cartas de 1967 e 19694. E, sobretudo a partir de 1946, a recepção de princípios e regras do processo jurisdicional pelo processo administrativo punitivo levou ao reconhecimento, neste, do direito de defesa, pela interpretação dada ao § 15° do art. 141, argumentando-se, ainda, com a isonomia: em qualquer processo em que haja acusado, deve haver ampla defesa5. A jurisprudência não se afastou desse entendimento6.

O coroamento desse caminho evolutivo ocorreu, entre nós, com a Constituição de 1988, que, no...

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