A natureza jurídica

AutorLuís Poças
Páginas113-132

A generalidade da doutrina - com particular destaque para a italiana, que mais se tem debruçado sobre esta problemática - tem vindo a delinear diferentes perspectivas quanto à natureza jurídica da antecipação bancária. Desde logo, alguns autores negam que a mesma constitua uma nova figura contratual382. Por outro lado, enquanto duas correntes colocam o enfoque na relação de crédito, reconduzindo a natureza do contrato ao mútuo ou à abertura de crédito, uma terceira centra-se no pólo oposto, ou seja, na relação de garantia, defendendo que o contrato tem a natureza de um tipo especial de penhor bancário. Outras correntes enfatizam a função ou a estrutura do contrato, correspondendo esta última a uma perspectiva de síntese, que sublinha o carácter complexo da fattispecie antecipação bancária. Importa, pois, analisarmos e confrontarmos as mencionadas perspectivas.

VIII 1 - A relação de crédito em evidência: a) mútuo

Como refere Giacomo Molle, a antecipação bancária foi configurada ao longo dos tempos como uma subespécie do mútuo pignoratício383, conservando ainda essa natureza na prática dos bancos não italianos384. Na verdade, uma posição tradicional em Itália, e decorrente ainda ao contexto anterior ao Código Civil vigente, reconduz a antecipação bancária à estrutura do mútuo coligado com a constituição de uma garantia real mobiliária acessória385.

Esta posição assenta no pressuposto de que a antecipação bancária é um contrato real quoad constitutionem386, o que afastaria a possibilidade de o antecipado fazer vários levantamentos do montante disponibilizado. Ora, objecta parte da doutrina que nada impediria que houvesse uma antecipação em conta-corrente (as próprias práticas bancárias italianas vão nesse sentido), mediante a colocação à disposição de uma quantia sem a entrega efectiva da mesma.

Por seu turno, replica a doutrina tradicional que a antecipação em conta-corrente não se harmoniza com a possibilidade de desvinculação parcial do devedor (levantamento de parte dos bens dados em garantia por reembolso parcial da dívida) consagrada no artigo 1849.º do Código Civil italiano, já que o devedor poderia sempre reutilizar a disponibilidade até ao plafond contratado, sem que então o valor utilizado estivesse proporcionalmente garantido. Contra este argumento, defende Antonio Serra que a antecipação em conta-corrente não objectaria ao regime da antecipação bancária na medida em que a desvinculação parcial da garantia fosse acompanhada de uma redução parcial do plafond disponibilizado387.

Entre nós, como vimos, o facto de o diploma regulador do empréstimo sobre penhor ter passado a denominá-lo por mútuo garantido por penhor poderia indiciar ser essa, na ver- dade, a natureza jurídica do contrato. Porém, a alteração da designação legal esteve longe de constituir uma alteração substancial de regime, ou uma descaracterização do tipo legal contratual.

Desta forma, o contrato em causa não pode, do nosso ponto de vista, ser reconduzido à natureza de um contrato de mútuo, o que representaria uma sobrevalorização da relação de crédito relativamente à de garantia. Na verdade, esta constitui um elemento fundamental do tipo, mantendo, de resto, uma interdependência estreita com a relação de crédito, ao invés de se apresentar com o carácter acessório que reconhecemos no mútuo pignoratício. Pensamos ser este o argumento decisivo contra a perspectiva em referência, no duplo contexto português e italiano.

VIII 2 - A relação de crédito em evidência: b) abertura de crédito

A possibilidade legal, face ao Direito italiano (na interpretação de alguma doutrina), de a anticipazione ser efectuada em conta-corrente - configuração que, na prática bancária, antecede em muito o actual regime do Código Civil388 - implicando a colocação à dispo- sição de uma determinada quantia que o antecipado pode utilizar quando e na medida em que queira, veio causar alguma perturbação doutrinária sobre a matéria, pondo em causa a até então dominante perspectiva da natureza de mútuo.

Neste contexto, Messineo veio defender que a antecipação tem a natureza de abertura de crédito com garantia real mobiliária (penhor)389, conforme resulta, na opinião do autor, do respectivo regime jurídico, traduzido nas normas bancárias e no Código Civil390. Tratar-se-ia, assim, de um caso especial de abertura de crédito garantida por um penhor de títulos ou mercadorias (garantia real mobiliária), e caracterizada igualmente pelo facto de o antecipado poder utilizar o crédito sem estar vinculado, quer quanto à obrigatoriedade de utilização, quer quanto ao momento ou ao modo de utilização391.

Neste sentido, a relação conceptual entre as duas figuras seria uma relação de género (abertura de crédito) e espécie (antecipação)392. Em consequência, segundo o autor, seriam directamente aplicáveis à anticipazione as normas dos artigos 1842.º ss. do Código Civil italiano (respeitantes à abertura de crédito), enquanto as daquela operação poderiam ser analogicamente aplicáveis a esta (verificada a analogia)393.

Ao argumento de que a antecipação bancária se caracteriza pela constante proporcionalidade do scarto, consagrada no artigo 1850.º do Código Civil italiano, o que não encontraria reflexo no regime da abertura de crédito, contrapõe Messineo que a constância do scarto é assegurada pelo artigo 1844.º do mesmo Código. Para o autor, as diferenças entre os dois artigos seriam insignificantes - traduzindo uma duplicação resultante de uma falha de coordenação no processo legislativo - e, portanto, insusceptíveis de estabelecer uma diversidade de naturezas jurídicas.

Porém, Giacomo Molle chama a atenção para uma contradição insuperável de regimes entre o artigo 1844.º e o 1850.º do Código Civil italiano, acentuando os diversos aspectos de divergência entre ambos394. O primeiro (aplicável à abertura de crédito) prevê que, se a garantia se tornar insuficiente e o devedor não a reforçar, o banco pode reduzir o crédito proporcionalmente ou resolver o contrato; por seu turno, o segundo (aplicável à anticipazione bancaria) prevê que, se o valor da garantia diminuir em, pelo menos, um décimo relativamente ao seu valor no início do contrato, o banco pode exigir ao devedor um suplemento de garantia, e, se este não for satisfeito, pode vender os títulos ou mercadorias dados em penhor. Assim, perante o regime do Código Civil italiano, a posição de Messineo levaria, segundo Molle, a uma sobreposição contraditória de regimes entre o artigo 1844.º e o artigo 1850.º.

Por seu turno, Spinelli extrai do artigo 1849.º do Código Civil italiano - que permite ao antecipado resgatar parte das coisas empenhadas mas apenas mediante a restituição proporcional de parte da quantia antecipada e desde que o crédito não ficasse sub-garantido, isto é, desde que se verificasse uma redução proporcional da dívida - o carácter real (quoad constitutionem) da antecipação bancária, inconciliável, portanto, com o regime da abertura de crédito com garantia consagrado no artigo 1844.º395.

Por outro lado, na opinião de Giacomo Molle, seria anti-económico que, em virtude do regime do artigo 1846.º, parte final, do Código Civil italiano, ficasse na disponibilidade do banco uma garantia de valor muito superior ao de um crédito em conta-corrente que o cliente poderia nem sequer utilizar396.

De resto, segundo Pavone la Rosa, enquanto a antecipação bancária é um instrumento de financiamento de uma operação comercial, a abertura de crédito garantida por penhor constitui, em regra, um instrumento de financiamento de uma actividade económica397.

Finalmente, os defensores italianos da antecipação bancária como modalidade especial da abertura de crédito nunca conseguiram explicar a autonomização dos regimes das duas figuras no Código Civil italiano398. O argumento poderá não parecer consistente, não só porque assenta em aspectos formais, como porque a inserção sistemática, no Código Civil italiano, da antecipação bancária entre a abertura de crédito e a conta-corrente induzirá precisamente a sustentar que as modalidades se encontram ligadas entre si. Porém, como demonstra Spinelli399, os partidários da antecipação bancária com natureza de abertura de crédito em conta-corrente formularam esta posição a partir dos usos bancários que largamente antecederam o regime legal (e que prevalecem, de resto, nas práticas contratuais italianas), e não a partir do regime legalmente típico do contrato. A prevalência das posições doutrinárias depara-se, assim, com dificuldades, nunca inteiramente ultrapassadas, de inter- pretação e conjugação de regimes400.

Entre a doutrina nacional, Calvão da Silva filia expressamente a antecipação bancária entre as modalidades de abertura de crédito, reconduzindo-a, mais concretamente, à abertura de crédito garantida, caucionada ou coberta, no âmbito da qual o crédito traduziria a ante- cipação do valor da coisa dada em garantia. Segundo o autor, «o elemento fundamental da antecipação bancária sobre penhor reside na relação ou rácio entre a soma adiantada e o valor do penhor, a poder qualificar a figura como modalidade de abertura de crédito»401.

Perante esta posição, importa, de novo, distanciarmo-nos da ideia de antecipação (pré-realização) do valor de um penhor cuja venda em hasta pública será, em regra, um fim indesejado, quer pelo empenhador, quer pelo banco. A função económica, social e jurídica (objectiva) do tipo contratual em causa, bem como os fins (subjectivos) das partes orientam-se para a relação de crédito...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT