Acórdão n.º 226/2008, de 22 de Julho de 2008

Acórdáo n. 226/2008

Processo n. 170/08

I - Relatório. - 1 - O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n. 1 do artigo 70. da Lei n. 28/82, de 15 de Novembro, do despacho (proferido em audiência de julgamento do processo comum, com intervençáo do Tribunal Colectivo que, sob o n. 81/07.6GCFAR, corre termos pelo 2. Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Faro) constante da acta de 26 de Novembro de 2007, que desaplicou, com fundamento em inconstitucionalidade, a norma do artigo 359. do Código de Processo Penal, na redacçáo da Lei n. 48/2007, de 29 de Agosto.

2 - O despacho recorrido é do seguinte teor:

O arguido Jean Halin Viegas está acusado, entre o mais, da prática de factos susceptíveis de integrar a prática, pelo mesmo, de um crime de furto, previsto e punível pelo artigo 203., n. 1 do Código Penal (conjunto de factos identificados na acusaçáo sob n. 1205/06. 6PBFAR).

Do depoimento da testemunha Fábio Colaço resultam indícios de que o arguido, para furtar o motociclo, arrancou o canháo da fechadura da garagem comum do prédio identificado na acusaçáo e descarnou os fios da fechadura eléctrica, tendo após, acedido ao interior da garagem e de lá retirado e levado consigo o motociclo.

Esta nova factualidade consubstancia a prática de um crime de furto qualificado, previsto e punível pelo pelas disposiçóes conjugadas dos artigos 203., n. 1, 204., n. 2, alínea e) e 202., alínea d) todos do Código Penal.

Este crime é punível com uma penalidade mais gravosa nos seus limites mínimo e máximo do que a penalidade prevista para o crime de furto de que o arguido está acusado.

Como tal, a alteraçáo de factos anunciada consiste numa alteraçáo substancial dos factos.

Assim, comunica -se ao arguido a falada alteraçáo para que o mesmo diga se se opóe à mesma ou se autoriza a que o Tribunal conheça dos novos factos.

Coloca -se, porém, uma questáo prévia.

Dispunha o artigo 359. do Código de Processo Penal na sua redacçáo originária que

1 - Uma alteraçáo substancial dos factos descritos na acusaçáo ou na pronúncia, se a houver, náo pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenaçáo no processo em curso; mas a comunicaçáo da alteraçáo ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos.

2 - Ressalvam -se do disposto no número anterior os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuaçáo do julgamento pelos novos factos, se estes náo determinarem a incompetência do tribunal.

3 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparaçáo da defesa náo superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.

32462 O regime legal assim estabelecido visava conseguidamente evitar que o Tribunal, unilateralmente, pudesse alterar o objecto do processo, passando a conhecer de factos que náo tinham sido levados à acusaçáo ou à pronúncia e que conduziam à condenaçáo do arguido por crime punível com pena mais gravosa. Perante uma situaçáo destas, uma de duas: ou os sujeitos processuais da instância criminal autorizavam a que o Tribunal conhecesse da nova factualidade no mesmo processo - e este prosseguiria tendo em conta a nova factualidade indiciada; ou os mesmos sujeitos processuais náo manifestavam o acordo no sentido de o Tribunal poder conhecer da nova factualidade e iniciar -se -ia um novo processo, já que a comunicaçáo da alteraçáo substancial dos factos equivalia a denúncia pelos mesmos.

Dispóe o artigo 359. do Código de Processo Penal na redacçáo que lhe foi dada pela [Lei n.] 48/2007

1 - Uma alteraçáo substancial dos factos descritos na acusaçáo ou na pronúncia náo pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenaçáo no processo em curso, nem implica a extinçáo da instância.

2 - A comunicaçáo da alteraçáo substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relaçáo ao objecto do processo.

3 - Ressalvam -se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuaçáo do julgamento pelos novos factos, se estes náo determinarem a incompetência do tribunal.

O novo texto do inciso legal que se acaba de reproduzir introduz uma importante alteraçáo em relaçáo ao texto originário. No caso de a nova factualidade náo ser autonomizável em relaçáo ao objecto do processo e uma vez que a instância náo pode ser extinta nem dela o Tribunal pode conhecer (salvo acordo do MP, arguido e assistente), deixa a conduta indiciada e provada de ser punível.

Vejamos, pois, como proceder nestes casos, isto é, nos casos de alteraçáo substancial de factos náo autonomizáveis em que o arguido náo dê o seu acordo a que o Tribunal conheça dos factos no próprio processo.

Assim, se alguém está acusado de factos que consubstanciam um crime de furto previsto no artigo 203., n. 1, do Código Penal e se vem a demonstrar, para além dos factos já imputados ao arguido que ele usou, como meio de conseguir o seu intuito, uma arma de fogo (o que consubstancia um crime de roubo agravado), náo pode o Tribunal apreciar a sua conduta nem nesse processo nem em processo autónomo.

O mesmo se pode passar relativamente a crimes de outra natureza, tais como o crime de ofensa à integridade física e homicídio; entre homicídio privilegiado e qualificado, etc.

Nestes casos, os direitos, liberdades e garantias fundamentais das pessoas deixam de ter tutela, náo porque assim é opçáo do legislador (rectius: da lei), mas sim por meras contingências processuais que náo sáo controláveis e que se podem ficar a dever a mero lapso.

Ao nível dos direitos liberdades e garantias, tal como o direito à vida, o texto constitucional vincula o próprio Estado a náo produzir normas que os desprotejam, incluindo no âmbito do Direito Penal.

Cremos que ninguém ousaria, nos dias de hoje, defender que a revogaçáo pura e simples das normas que tipificam criminalmente os crimes de homicídio é aceitável do ponto de vista constitucional: a norma revogatória violaria o disposto no artigo 24. da CRP, o artigo 18. do mesmo diploma e ainda o princípio do Estado de direito democrático. Com efeito, a par de muita legislaçáo que vise proteger a vida humana, a puniçáo do homicídio impóe -se por exigência constitucional já que traduz uma reacçáo do Estado ao comportamento daquele que conhecendo a proibiçáo, a viola, lesando direitos fundamentais que estáo já reconhecidos na constituiçáo.

O mesmo se passa, mutatis mutandis, relativamente a outros direitos, liberdades e garantias fundamentais, tais como a integridade pessoal e outros previstos nos artigos 25° e seguinte da CRP.

De entre as obrigaçóes do Estado de proibir e reagir criminalmente contra quem atente contra direitos fundamentais se conta, por força do que se dispóe no artigo 17. e 18. da CRP ao direito de propriedade privada, previsto no artigo 62. da CRP, o qual contempla o direito de ninguém ser privado do direito de propriedade sobre as suas coisas.

Cumpre, pois, ao Estado legislador o dever de produzir normas que regulem o direito de propriedade em conformidade com a constituiçáo e de promover, também pela via legislativa, o dever de impor erga omnes o respeito pela propriedade alheia sob pena de, pelo menos nos comportamentos mais gravosos, serem perseguidos criminalmente.

É o que ocorre, claramente, nos comportamentos que a própria lei define como sendo altamente censuráveis e que revelam um grande carácter anti -jurídico, como é o caso dos crimes de furto qualificado, previstos e puníveis pelos artigos 203., n. 1, e 204., n. 2, alínea e), do Código Penal.

O Código Penal cumpre, na perspectiva que se vem referindo, a sua missáo.

Todavia, tal missáo é fortemente atropelada pelo Código de Processo Penal: uma circunstância processual incontrolável (lapso do Ministério Público, ignorância de um determinado meio de prova, falha momentânea de uma testemunha ou OPC) pode determinar que uma pessoa seja acusada de um crime, quando, na verdade se vem a apurar que cometeu, naquelas circunstâncias de tempo, lugar e no âmbito do mesmo fenómeno histórico, um crime mais grave. Neste caso, a conduta do agente nunca poderá ser perseguida criminalmente, apesar de, no julgamento se ter provado o crime mais grave e de serem dadas ao arguido todas as garantias de defesa.

A recusa do Estado em punir uma conduta que está obrigado a perseguir criminalmente através de um mecanismo processual que náo tem qualquer justificaçáo náo pode deixar de traduzir uma violaçáo dos supra citados preceitos constitucionais.

A questáo da inconstitucionalidade da norma em causa náo se queda por aqui.

Resulta ele ainda da circunstância de a qualificaçáo de um dado comportamento criminoso ficar dependente de uma decisáo unilateral de um órgáo do Estado (o Ministério Público) ou, o que é particular-mente grave, do mero acaso. Fazendo -se do acaso um legislador e julgador, o Código de Processo Penal náo observa o que a CRP impóe ao Estado, já que apenas permite que o direito à vida, à integridade física, à reserva da vida privada, à propriedade privada sejam tutelados criminalmente se.. assim calhar.

Náo é tutela suficiente dos direitos fundamentais.

O absurdo da soluçáo que se pretendeu introduzir com o novo texto legal vai mais longe: obriga os Tribunais a condenarem o arguido pelos factos de que já estava acusado. Uma eventual circunstância especial agravante ou um novo facto típico passam a poder ser considerados na sentença apenas com o valor de circunstância geral agravante.

Esta soluçáo pode conduzir a soluçóes chocantes.

Tal como acima se referiu, um furto, punível com pena de prisáo até 3 anos ou multa, pode "transformar -se" num roubo agravado, punível com pena mínima de 3 anos de prisáo e máxima até 15 anos de prisáo, bastando que na subtracçáo da coisa alheia o agente use uma arma.

Em casos...

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