Acórdão n.º 224/2005, de 19 de Julho de 2006

Acórdáo n.o 224/2005

Processo n.o 68/2005

Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:

I-1-A fls. 363 e seguintes, foi proferida decisáo sumária que náo tomou conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por Maria Rosa Ribeiro Mendonça, pelos seguintes fundamentos:

[...]

Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.o 1 do artigo 70.o da Lei do Tribunal Constitucional, deve o seu objecto ser constituído por uma norma, a apreciar pelo Tribunal Constitucional sob o ponto de vista da sua conformidade constitucional.

Sucede, porém, que a recorrente pretende a apreciaçáo de uma cláusula constante de um acordo colectivo de trabalho. Deverá tal cláusula ser qualificada como uma norma, para efeitos da alínea b) do n.o 1 do artigo 70.o da Lei do Tribunal Constitucional?

A esta pergunta tem o Tribunal Constitucional dado resposta negativa.

Na verdade, constitui orientaçáo maioritária do Tribunal Constitucional a de que as normas das convençóes colectivas de trabalho náo estáo sujeitas à fiscalizaçáo concreta da constitucionalidade a cargo deste Tribunal, pois que náo integram o conceito de norma utilizado na alínea b) do n.o 1 do artigo 280.o da Constituiçáo [e, consequentemente, na alínea b) do n.o 1 do artigo 70.o da Lei do Tribunal Constitucional].

Tal orientaçáo foi nomeadamente perfilhada pelo Tribunal Constitucional nos Acórdáos n.os 172/93, de 10 de Fevereiro (publicado no a p. 6454), 250/97, de 18 de Março, 637/98, de 4 de Novembro, 697/98, de 15 de Dezembro, 284/99, de 5 de Maio, 492/2000, de 22 de Novembro, 10/2003, de 15 de Janeiro, e 92/2003, de 14 de Fevereiro (estes disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

No primeiro dos acórdáos referenciados - em que estava em causa a apreciaçáo da inconstitucionalidade, por violaçáo do princípio da igualdade, da norma constante da cláusula 5.a do anexo I

do contrato colectivo de trabalho entre a Associaçáo Portuguesa das Empresas Industriais de Produtos Químicos e Outras e a Federaçáo dos Sindicatos dos Trabalhadores das Indústrias Químicas e Farmacêuticas de Portugal e Outros (in Boletim do Trabalho e Emprego, 1.a série, n.o 16, de 29 de Abril de 1983), quando inter-pretada no sentido de impedir que uma empresa, depois de entrar no grupo A, possa alguma vez baixar de grupo, ainda que baixe a sua facturaçáo anual, devendo, em consequência, continuar a remunerar sempre os seus trabalhadores de acordo com as tabelas em vigor para o referido grupo A -, disse o Tribunal Constitucional o seguinte:

[...]

Com base na fundamentaçáo transcrita, o Tribunal Constitucional decidiu, no mencionado Acórdáo n.o 172/93, náo tomar conhecimento do recurso.

É esta a jurisprudência que agora também se perfilha e para a qual se remete.

Náo pretendendo a recorrente a apreciaçáo da conformidade constitucional de uma norma, no sentido em que este conceito é utilizado na alínea b) do n.o 1 do artigo 70.o da Lei do Tribunal Constitucional, conclui-se que náo está preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso, náo sendo consequentemente possível conhecer do respectivo objecto.

[...]

2 - Notificada desta decisáo, Maria Rosa Ribeiro Mendonça veio reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78.o-A, n.o 3, da

Lei do Tribunal Constitucional, através do requerimento a fls. 389 e seguintes, em que concluiu do seguinte modo:

[...] 1 - Através da douta decisáo sumária ora reclamada, que pelas razóes constantes dos Acórdáos, deste mesmo Tribunal, com os n.os 172/93, 250/97, 637/98 e 697/98, entre outros citados, entendeu náo ser possível tomar conhecimento do recurso interposto pelo ora reclamante, defende-se a ideia de que tudo o que respeita a acordos e convençóes colectivas de trabalho náo está sujeito a controlo de constitucionalidade.

2 - A posiçáo acima expressa decorre do facto de o Tribunal Constitucional, ainda que por maioria, ter vindo a entender que 'as normas das convençóes colectivas de trabalho náo estáo sujeitas à fiscalizaçáo concreta da constitucionalidade a cargo deste Tribunal, pois que náo integram o conceito de norma utilizado na alínea b) do n.o 1 do artigo 280.o da Constituiçáo e consequentemente na alínea b) do n.o 1 do artigo 70.o da Lei do Tribunal Constitucional'.

3 - Mais tem vindo a defender o Tribunal Constitucional, e citando o Acórdáo n.o 172/93, que '[. . .] como as normas das convençóes colectivas de trabalho náo provêm de entidades investidas em poderes de autoridade, e muito menos provêm de poderes públicos, entáo náo estáo sujeitas à fiscalizaçáo concreta de constitucionalidade que incumbe a este Tribunal exercer, nos termos do artigo 280.o,n.o 1, alínea b), da Constituiçáo'.

4 - Tal posiçáo, igualmente expressa na decisáo ora reclamada, náo pode merecer, como é óbvio, a concordância da recorrente e ora reclamante.

5 - Na verdade, encontrando-nos no domínio do direito do trabalho, começaremos por dizer, com recurso aos Professores Vital Moreira e Gomes Canotilho, que se trata de um verdadeiro direito fundamental dos cidadáos, um direito positivo dos cidadáos perante o Estado (Constituiçáo da República Portuguesa Anotada, 1978, anotaçáo ao artigo 51.o, II).

6 - Por outro lado, qualquer instrumento de regulamentaçáo colectiva de trabalho, como sucede, in concreto, com o ACTV para o sector bancário, para além de fonte de direito de trabalho, é, ao mesmo tempo, um acto normativo (neste sentido, conselheiro Mário de Brito, in separata ao BMJ, "Direito do trabalho", p. 136), podendo também ele ver-se afectado de inconstitucionalidade quer em termos formais quer em termos materiais.

7 - Náo admira, pois, que, a esse propósito, tenha Carnelutti afirmado que a convençáo colectiva tem o corpo do contrato e a alma da lei.

8 - E a concepçáo do mundo laboral e da negociaçáo colectiva que se intui através do recurso a estes ilustres juristas corresponde, ao fim e ao cabo, a uma parte de grande importância na vida das nossas sociedades, dada a sua íntima ligaçáo às vertentes sociais, económicas, políticas, et pour cause, jurídicas.

9 - Como afirma o Professor Monteiro Fernandes, in Temas Laborais, Almedina, 1984, p. 117, '[a] negociaçáo colectiva, como processo de produçáo normativa, reflecte, em cada momento, as preocupaçóes sociais dominantes, em funçáo dos dados da conjuntura económica', concluindo que '[a] convençáo colectiva tem-se afirmado como a mais influente fonte do direito do trabalho' - sublinhado nosso.

10 - Dentro de todo o contexto sumariamente exposto, parece à ora reclamante, com todo o respeito, que as razóes invocadas para náo conhecer do recurso interposto perdem toda a razáo de ser.

11 - E perdem toda a razáo de ser sobretudo por razóes de natureza jurídico/constitucional e por razóes ligadas ao leque de atribuiçóes e competências do Tribunal Constitucional.

12 - Em primeiro lugar, da análise dos preceitos constitucionais em causa náo se alcança o entendimento avançado pela ilustre conselheira relatora quando, é indiscutível, que o ACTV em dis-cussáo comporta um conjunto de normas jurídicas, como tal reconhecidas pelo Estado.

13 - Por outro lado, da leitura do artigo 70.o da Lei do Tribunal Constitucional, em particular do seu n.o 1, alíneas a)e b), o vocábulo 'norma' aí empregue náo autoriza qualquer interpretaçáo limitativa, incompatível, aliás, com a ideia de fiscalizaçáo concreta de constitucionalidade.

14 - Importa náo olvidar que a matéria suscitada no recurso interposto prende-se com a Lei de Bases da Segurança Social e com o artigo 63.o, n.o 4, da Constituiçáo da República Portuguesa.

15 - Aliás, este preceito constitucional, ao dispor que '[t]odo o tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensóes de velhice e invalidez [. . .]' (sublinhado nosso), está a reconhecer expressamente a natureza e dignidade pública de ordenamentos jurídicos - como os instrumentos de regulamentaçáo colectiva - que a decisáo sumária ora reclamada náo reconhece, para mais num domínio fundamental da vida dos cidadáos (a segurança social).

16 - Doutro modo, a aceitar a tese em discussáo, náo se compreende a possibilidade de recurso a órgáos de soberania, como os tribunais, para dirimir conflitos desta natureza.

17 - Náo pode, assim, o ora reclamante aceitar o entendimento defendido pela ilustre conselheira relatora, dada a inexistência de qualquer correspondência com a letra da lei.

18 - O que importa apurar é se uma norma, num determinado caso concreto, ofende ou náo o tecido constitucional.

19 - Se dúvidas existissem quanto a este entendimento, bastaria o recurso aos eminentes constitucionalistas atrás citados (Direito Constitucional, 5.a ed., Almedina, 1992, p. 1061), onde, no âmbito da fiscalizaçáo concreta de inconstitucionalidade, depois de afirmarem que '[n]áo há, porém, qualquer restriçáo quanto à natureza das normas impugnadas: podem ser normas materiais ou processuais, podem incidir sobre o mérito da causa ou apenas sobre meios probatórios ou pressupostos processuais, podem ou náo lesar direitos fundamentais ou interesses legítimos das partes. Isto náo significa que os problemas de inconstitucionalidade digam apenas respeito a actos normativos, pois náo sáo impensáveis hipóteses de actos privados. . . directamente violadores da Constituiçáo [. . .]'.

20 - Os citados ilustres constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira referem ainda, in Constituiçáo da República Portuguesa Anotada, 2.o vol., Coimbra Editora, 1985, p. 471, que «[. . .] é possível estabelecer um elenco dos actos cujo conteúdo, por ser constituído por normas, está sujeito a fiscalizaçáo da constitucionalidade» (itálico nosso), elencando especificamente para o efeito as convençóes colectivas de trabalho.

21 - Igualmente acrescentam que '[e]mbora a Constituiçáo náo seja explícita quanto ao valor jurídico dos contratos e acordos colectivos de trabalho e remeta para a lei a determinaçáo da eficácia das respectivas normas (artigo 56.o, n.o 4), é entendimento corrente de que eles sáo...

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