Petição Inicial

AutorHelder Martins Leitão
Cargo do AutorAdvogado
Páginas11-117

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1º Discorrendo

No direito antigo o que hoje é petição - com alguma diversidade - chamava-se libelo.

O acto pelo qual o autor propõe por escrito, e articuladamente, a espécie da questão que se há-de tratar em juízo, e conclui pela condenação do réu. 1

Eis, pois, o libelo como base e fundamento do processo.

Na vigência do código adjectivo de 1876, o seu art. 394º, equacionava:

"Toda a acção terá por base uma petição em que o autor, requerendo a citação do réu, deduzirá os fundamentos da sua acção, concluindo pelo pedido".

No Código de Processo Civil de 1939, 2 o art. 480º pontificava:

"A instância inicia-se por uma petição em que o autor exporá os fundamentos e o objecto da sua pretensão".

Cotejadas as noções sobreditas, podem-se visionar elementos comuns e elementos diferenciais, no dizer de Alberto dos Reis. 3

Os elementos comuns são os fundamentos e o objecto da pretensão do autor.

A diferença é esta: ao passo que a petição inicial, tanto no Código de 1939, como no Código de 1876, tem por função dar começo à instância, no direito antigo esse papel cabia, não ao libelo, mas à citação do réu.

Com efeito, o autor começava por requerer a citação do réu; com o acto da citação iniciava-se a instância; posteriormente a isto, é que o autor oferecia o libelo, no qual identificava o litígio para que requerera a citação.

O autor chamava primeiro o réu a juízo (vocatio in jus); depois é que lhe dizia para que o chamara, apresentando o libelo em que expunha o objecto e fundamento da acção (edictio actionis). 4

Em 1876, editado o Código de Processo Civil, terminou tão estranho sistema.

A instância inicia-se em simultâneo com a vocatio in jus e a edictio actionis.

E, assim, na petição passou a cumular-se: exposição dos fundamentos da acção com formulação do respectivo pedido e requerimento da citação do réu.

No Código de 1939, porém, deixou-se cair a exigência do requerimento da citação do réu. 5

Competiria ao juiz, não indeferisse in limine a petição, ordenar a citação do demandado.

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Um triplo objectivo integrava o petitório, 6 a saber:

- iniciador da instância

- fundamentação do pretendido pelo demandante

e

- designação do objecto respectivo.

Sendo que Guasp 7 procurou distinguir o conceito de demanda do conceito de pretensão processual.

Aquela, seria um simples acto de iniciação processual; esta, uma declaração de vontade.

Naquela, o autor pede 8 que se dê início a um processo; nesta, o declarante solicita deter- minada e concreta actuação do órgão jurisdicional.

Estes dois actos aparecem fundidos a maior parte das vezes; o autor requer o começo do processo e, simultaneamente, formula a pretensão que há-de constituir o objecto dele.

Mas, simultaneidade temporal não implica identificação.

Por se praticarem ao mesmo tempo, não se segue que os dois actos se confundam.

Seja: a petição inicial exerce, por si, o papel que no nosso antigo direito competia à vocatio in jus, ao requerimento para citação do réu, ao passo que a pretensão processual desempenha o papel que nas Ordenações e na Nova Reforma Judicial cabia ao libelo (edictio actionis).

Ante a pergunta sobre o porquê da fusão dos dois actos, responde o mesmo Guasp: 9

porque não faz sentido que uma parte do processo se passe no vácuo.

Se o processo começasse sem se saber qual a pretensão que o autor se propunha fazer valer, ter-se-ia um processo sem objecto, visto ser a pretensão do autor o que define o objecto inicial do processo.

Para quê chamar o réu a juízo, sem lhe indicar o fim?

As três finalidades apontadas no art. 480º do C. P. C. de 1939, condensou-as Alberto dos Reis, 10 deste modo:

- a petição inicial serve para propor a acção.

Efectivamente, com o acto da proposição da acção, dá-se início à instância (art. 267º) e, ao mesmo tempo, caracteriza-se a acção respectiva.

Ora, uma acção caracteriza-se ou identifica-se mediante a designação dos sujeitos, do objecto e da causa (art. 502º).

O que se pretendia com o vertido no corpo do art. 480º do C. P. C. de 1939, 11 era relevar as duas funções primaciais do petitório: a enunciação do objecto e a causa da pretensão do autor.

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O objectivo da petição era (e é) o de dar início à instância.

Esta, efectivamente, só começa, só se consubstancia, quando e se o petitório é apresentado (e recebido, já se vê) na secretaria.

Antes deste concreto acto, há quando muito uma intenção, mas não uma petição, que só o será, constituindo como que motor de arranque da instância (da acção), quando com recepção admitida pela secretaria.

Altura em que, efectivamente, ganha relevância processual, como uma das suas peças fundamentais, quando não mesmo a principal, bastando atender no facto de sem ela, não nascer acção alguma.

E da pretensão?

Ela revela-se pela vontade de subordinar o interesse alheio ao interesse próprio.

E, então, é assim:

quem apresenta em juízo uma pretensão exprime a vontade de que um seu interesse prevaleça sobre o interesse de outrem com o qual está em contencioso.

Um acto unilateral, de força, que poderá ou não vir a merecer - com o desenrolar da acção - acolhimento.

Pelo dicktat de uma força mais superior.

É mesmo: a pretensão distingue-se da razão.

Ou opõe-se-lhe?

Brandamente pensando, talvez não.

E, em tal registo: a razão é o fundamento da pretensão, é a afirmação da tutela que a ordem jurídica concede a determinado interesse.

Ora, como a tutela jurídica se resolve na atribuição de certos efeitos a determinados factos, a razão consiste, afinal, na afirmação do efeito em que a tutela se concretiza e na alegação do facto a que a tutela é dispensada.

E vai daí?

A razão decompõe-se em dois elementos:

- os motivos

- as conclusões.

Aqueles, correspondem aos factos nos quais se apoia (e donde parte) a pretensão.

Estas, correspondem aos efeitos atribuídos pela lei, precisamente, aos factos.

Quando se afirma que a ordem jurídica tutela determinado interesse, isso equivale a alegar um facto ou grupo de factos e a invocar uma norma ou grupo de normas das quais se faz derivar a tutela.

Por isso é que a razão se desdobra em elementos de facto e de direito. 12

Betti, com pequenas variantes, mais de forma que de substância, alinha pelo mesmo diapasão. 13

Porém, Alberto dos Reis não lobriga utilidade nem motivo para considerar a razão como categoria distinta da pretensão. 14

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A razão é um elemento da pretensão.

Não deve perder-se de vista que se trata, não de qualquer pretensão, mas antes de uma pretensão processual, de pretensão deduzida em juízo.

Claro que fora do mundo do direito a pretensão pode conceber-se independentemente da razão em que se apoia e pode ter êxito, apesar de lhe faltar esse elemento. Um indivíduo pode conseguir que a sua pretensão, embora desacompanhada de qualquer fundamento, seja acolhida pelo seu adversário. Este pode submeter-se à pretensão, não porque a considere justa, mas por medo, por timidez, por espírito de pacificação, por falta de recursos para a luta, etc. . 15

Mas no campo do direito a pretensão isolada da razão é um acto inerme e inútil. A razão é a arma por meio da qual a pretensão opera no campo do direito. Isto equivale, afinal, a dizer que a razão é elemento ou requisito essencial da pretensão. Mal se compreende, pois, que Carnelutti veja na razão uma espécie separada e distinta da pretensão processual.

Que a razão faz parte integrante da pretensão, constituindo o fundamento desta, admitem-no Chiovenda, Betti e Guasp. O autor deve expor, na petição inicial, os fundamentos e o objecto da sua pretensão. Daqui se vê que no conceito legal a pretensão é constituída por dois elementos essenciais: os fundamentos e o objecto.

Como se define então a pretensão?

Em boa técnica jurídica uma coisa é a pretensão do autor, outra o pedido. A pretensão dirige-se ao réu; o pedido dirige-se ao tribunal. Aquela é um elemento da relação jurídica substancial; este um elemento da relação jurídica processual. A pretensão exprime o direito que o autor se arroga contra o réu; o pedido traduz-se na providência que o autor solicita do tribunal. É claro que a pretensão repercute-se naturalmente no pedido; a espécie de providência que o autor vai pedir ao tribunal deve ser, logicamente, o reflexo da pretensão que se arroga contra o réu. 16

O autor, propondo a acção por meio da petição inicial, submete à consideração e exame do órgão jurisdicional uma certa relação jurídica sobre a qual está em conflito com o réu; e quer que o tribunal se pronuncie a respeito dela, definindo o direito que lhe cabe. Eis, em substância, a significação e alcance do acto exarado na petição inicial.

Se dissecarmos este acto e analisarmos os elementos em que se decompõe, encontramos:

a) Como núcleo fundamental a lide substancial, o conflito, a relação jurídica litigiosa entre o autor e o réu;

b) Como invólucro, a relação jurídica processual ou instrumental.

As designações técnicas que, segundo penso, exprimem estas duas realidades são: a pretensão e a acção. A pretensão corresponde ao litígio substancial entre o autor e o réu, tal como o autor o encara; a acção corresponde à iniciativa processual empreendida pelo autor para conseguir que o tribunal resolva o litígio.

Por tais e tais razões ou fundamentos o autor arroga-se determinado direito contra o réu, isto é, afirma que, no conflito com este, o seu interesse deve prevalecer sobre o do réu, pois que tem a seu favor a tutela da ordem jurídica. Eis a pretensão.

Como não foi possível conseguir que o réu aceitasse a subordinação do seu interesse ao do autor, este vê-se na necessidade...

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