O Fundo de Defesa de Direitos Difusos

AutorArthur Badin
CargoAdvogado Mestrando na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Arthur Badin1

Introdução

Entre as décadas de 70 e 80, jovens processualistas brasileiros2 influenciados, sobretudo, pelas lições dos professores italianos M. Taruffo (1968), Vittorio Denti (1971)3 e Mauro Cappelletti (1978)4 empreenderam seus estudos sob a tônica de uma idéia que até então se poderia dizer revolucionária: a "instrumentalidade do processo". A boa semeadura encontrou terra fértil: associando a melhor técnica ao ativismo, esses brilhantes acadêmicos influenciaram positivamente a política legislativa das décadas de 80/90, quando se assistiu, no Brasil, a uma verdadeira "onda modernizadora" em busca da efetividade da tutela, mormente da efetivação dos direitos e garantias "sociais" ou de "segunda geração"5.

O que se pretendia com este movimento reformador era (i) "a abertura da ordem processual aos menos favorecidos da fortuna e (ii) à defesa de direitos e interesses supra-individuais, com (iii) a racionalização do processo", que "quer ser um processo de resultados, não um processo de conceitos ou de filigranas". Em outras palavras, o que se buscava era a efetividade do processo, sendo indispensável, para isso, "pensar no processo como algo dotado de bem definidas destinações institucionais e que deve cumprir os seus objetivos sob pena de ser menos útil e tornar-se socialmente ilegítimo". "Não tem acesso à justiça aquele que sequer consegue fazer-se ouvir em juízo, como também todos os que, pelas mazelas do processo, recebem uma justiça tarda ou alguma injustiça de qualquer ordem" (DINAMARCO, 1998:21).

Em conferências que proferiu sobre o tema, assinalou o Professor Mauro Cappelletti ser muito fácil declarar os direitos sociais; o difícil é realizá-los (RIBEIRO, 1999:1). Daí que "o movimento para acesso à justiça é um movimento para a efetividade dos direitos sociais", e a sua investigação deve ser feita sob três aspectos principais, aos quais denominou "ondas renovatórias". A primeira refere-se à garantia de adequada representação legal dos pobres (mediante a criação e estruturação das defensorias públicas). A segunda onda renovatória visa à tutela dos interesses difusos ou coletivos. A terceira onda preocupa-se com fórmulas para simplificar os procedimentos e melhor votados ao resultado concreto.

Na crista da "segunda onda renovatória", foi editada no Brasil a Lei 7.347/85 (LACP).

Ao introduzir e disciplinar as ações coletivas no Brasil, a LACP criou importante mecanismo de defesa judicial dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, notadamente o meio ambiente, os direitos do consumidor, o patrimônio histórico, estético, turístico, e paisagístico, a livre concorrência e os direitos dos hipossuficientes.

Ao permitir que fosse levada ao Poder Judiciário a defesa dos direitos difusos e coletivos, a LACP tornou as decisões e políticas públicas mais permeáveis e sujeitas ao controle social. O cidadão passou a ser também sujeito e não apenas objeto das políticas públicas.

A Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), elevando as relações de consumo a novo patamar ético, logrou implementar significativos benefícios aos cidadãos brasileiros, no que tange ao respeito à sua dignidade e boa-fé, à melhoria da qualidade de vida e aos direitos à informação, proteção contratual e judicial e incolumidades física, moral e econômica. O Código de Defesa do Consumidor, ao estabelecer o equilíbrio nas relações de consumo, recobrou a dignidade do cidadão-consumidor, assegurando-lhe o respeito de fornecedores e das instituições encarregadas de zelar pelo seu bem-estar. O CDC introduziu importantes e revolucionários mecanismos de proteção e efetivação dos direitos do consumidor em juízo, como a ação coletiva para tutela de interesses individuais homogêneos, a inversão do ônus da prova em favor do hipossuficiente e a criação do Termo de Ajustamento de Conduta (art. 113, § 6°, que acresceu o § 5° do art. 6° da Lei 7.347/85).

Referidos diplomas normativos eram e ainda são considerados os mais modernos e avançados sistemas de proteção dos direitos do cidadão no mundo. Revolucionaram a cultura jurídica nacional e os tradicionais mecanismos de resolução de conflitos herdados do liberalismo jurídico do século XIX, marcadamente judicializados e individualistas, incapazes de responder à complexidade inerente a uma sociedade de massas.

Não por coincidência, a promulgação dos referidos diplomas normativos insere-se no contexto do movimento de redemocratização do Brasil, que culminou, três anos após a LACP (1985) e dois anos antes do CDC (1990), com a promulgação da Constituição "cidadã" de 1988. Sua consolidação é fruto do processo histórico de introjeção dos valores democráticos da cidadania e da dignidade da pessoa humana, pilares da nova República, que se iniciou com a posse do primeiro presidente civil após o regime militar, em1985.

Desde a edição da LACP e do CDC, milhares de livros, artigos e teses foram editados, escrutinando cada questão de sua aplicação. Essa obra coletiva talvez constitua, no mundo de tradição de civil law, o maior e mais evoluído sistema de proteção dos direitos difusos e coletivos. Não obstante, são poucos, raríssimos os autores que se debruçaram atentamente sobre o Fundo de Defesa de Direitos Difusos, criado no art. 13 da Lei 7.347/85 e regulamentado, no âmbito federal, pela Lei 9.008/956. O presente artigo pretende suprir essa lacuna, ainda que modestamente, com vistas a contribuir para o debate acerca da efetividade da tutela dos direitos difusos e coletivos.

A quem pertence o ar que respiro?

Com esta pergunta curiosa, Mauro Cappelletti, em 1975, chamou nossa atenção para um fenômeno até então pouco compreendido: a existência de alguns "direitos" que não eram titulados por qualquer indivíduo isoladamente, mas por vários ao mesmo tempo, sendo impossível cindi-los em partes. Intuía-se, àquela época, a possibilidade de certos direitos não integrarem o patrimônio jurídico de um indivíduo isoladamente, mas sim do de toda uma coletividade de pessoas. Essa noção abalava a pedra fundamental do sistema de civil law: a noção de direito subjetivo. De certa forma, certos interesses, embora não integrados na esfera jurídica de um indivíduo, passavam a ser objeto de proteção jurídica como direito sem sujeito ou "objetivos". Eram os chamados "direitos institucionais", que materializavam os anseios do Estado Social à proteção do meio ambiente, do patrimônio histórico, cultural e paisagístico, da higidez da ordem econômica, dentre outros.

Se a possibilidade de tutela dos direitos coletivos surpreendia os doutrinadores na década de 70, o mesmo não se podia dizer da tutela coletiva de direitos. Desde pelo menos o século XVII, na Inglaterra, conhecia-se a aplicação da bill of peace, uma autorização para processamento coletivo de ação individual, geralmente concedida quando o autor requeria que o provimento englobasse os direitos de todos que estivessem envolvidos no litígio, tratando a questão de maneira uniforme e evitando a multiplicação de processos. Desse instituto jurídico desenvolveram-se as class actions do direito americano (YEAZELL, 1987:866).

A promulgação, em 1985, da LACP permitiu no Brasil tanto a tutela de direitos coletivos como a tutela coletiva de direitos. Posteriormente, conferindo maior sistematicidade, o CDC (art. 81) classificou os direitos "coletivos" em "difusos" e "coletivos (stricto sensu)". Os "direitos difusos" são aqueles "transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato" (por exemplo, meio ambiente e patrimônio histórico). Os interesses ou "direitos coletivos (stricto sensu)" são os "transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base" (por exemplo, um interesse relativo a toda classe dos advogados). A par desses "direitos coletivos", o CDC reconheceu a possibilidade de "tutela coletiva" dos "interesses individuais homogêneos", assim entendidos aqueles divisíveis, mas decorrentes de origem comum (por exemplo, os consumidores que compraram o mesmo veículo com defeito de série).

Assim, a ACP visa promover a responsabilidade por danos causados aos direitos difusos, coletivos (stricto sensu) e individuais homogêneos, podendo ter por objeto tanto a cominação de obrigações de fazer ou não fazer como condenação em dinheiro (art. 3°). Ora, mas se é certo que o ar que respiramos a ninguém pertence individualmente, mas a toda coletividade, para quem devem ir os recursos oriundos das condenações em dinheiro pelos danos a ele causados? O que fazer com esses recursos? E, no caso dos interesses individuais homogêneos, o que fazer com os recursos que não vierem a ser reclamados pelos indivíduos lesados?

A quem as condenações em dinheiro são devidas e como deve ser aplicado?

Nos Estados Unidos, como é próprio da tradição de common law, a resposta à questão proposta neste capítulo foi construída pela jurisprudência e resultou no chamado sistema de fluid recovery no âmbito das class actions7. Não raras vezes, os recursos oriundos das condenações em dinheiro em class actions não eram reclamados (unclaimed funds), deixando os prejudicados de pleitear sua reparação individual (In re Folding Carton Antitrust Litig.)8. Isso poderia ser dar por pelo menos três razões. A uma, porque os prejudicados não eram encontrados ou dificilmente se poderiam identificar, como os passageiros de taxi vítimas de cartel (Daar v. Yellow Cab Co.)9. A duas, porque o dano é causado a um interesse indivisível (ou difuso), como a boa prestação de um...

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