Fornecimento de "produtos orgânicos" ao consumidor como política de proteção ao meio ambiente no agronegócio

AutorRoberto Grassi Neto
CargoProfessor Doutor e Coordenador do Núcleo Departamental da Faculdade Autônoma de Direito (FADISP); Mestre e Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP)
1. Relevância da questão ambiental perante a legislação brasileira na década de 1960

A conservação dos recursos naturais é, sem dúvida, tema da maior relevância não apenas para aquele que cultiva a terra, como para a sociedade qual um todo. Os meios para a cultura, terra ou água, dependem de cuidado constante para que possam ser utili- zados de modo racional, pois tanto sua degradação como seu total esgotamento, ou têm caráter definitivo, ou demoram muito para serem revertidos.

Atento à questão, o legislador ordinário buscou normatizar o tema, elaborando, ainda na década de 1960, a Lei n° 4.947, de 06 de abril de 1964, que, em complementação ao Estatuto da Terra, dispunha, já àquela época, no inciso III de seu artigo 13 que: apesar dos contratos agrários serem regulados pelos princípios gerais que regem os contratos de Direito comum, naquilo que concernisse ao acordo de vontades e ao objeto, deveriam submeter-se necessariamente aos preceitos específicos de Direito Agrário, dentre os quais a obrigatoriedade de cláusulas irrevogáveis visando à conservação de recursos naturais1.

Considera-se, pois, ser a proteção ao meio ambiente verdadeira cláusula de natureza obrigatória nos contratos agrários e que, mesmo que nada conste a seu respeito na avença entre as partes contraentes, se a repute implícita, devendo vir, portanto, respeitada.

A previsão legal acima mencionada, conquanto louvável, era ainda extremamente tímida, pois limitava-se a permitir a mera rescisão contratual na hipótese de haver desrespeito ao meio ambiente por parte do arrendatário ou parceiro-outorgado, sem, contudo, dispor sobre a necessária sanção, nos campos administrativo e criminal, a ser aplicada àqueles que, ao se utilizarem dos meios de cultura e em especial da terra, o fizessem de modo predatório, causando sua erosão e esgotamento.

Não há dúvida de que os cultivadores são, de regra, eles mesmos os maiores causa- dores da erosão, degradação e esgotamento do solo, pois dele querem retirar o máximo proveito, sem estarem verdadeiramente preocupados em dar-lhe a menor proteção sequer contra os fatores de desagregação.

A incidência de conduta tão nefasta é, contudo, ainda mais acentuada quando a exploração da terra cabe a arrendatário ou parceiro-outorgado, na medida em que, obviamente, a simples circunstância destes poderem, após o término daquele contrato, explorar outros imóveis, após pactuarem com proprietários de outros imóveis, faz com que a preocupação com a conservação da terra por eles utilizada naquele momento, até mesmo por trazer implícito o dispêndio de custo não desprezível, se torne secundária, ou mesmo pouco interessante.

2. A participação do cultivador nos processos de erosão, degradação, e esgotamento

Erosão, degradação e esgotamento da terra, conquanto sejam conceitos interligados, não se confundem.

A distinção é efetuada de modo lapidar por BREBBIA2, que conceitua erosão como sendo "el proceso de remoción y transporte notorio de las partículas del suelo por acción del viento y agua en movimiento".

A degradação do solo, por seu turno, corresponde à "pérdida del equilibrio de las propiedades fisicoquímicas del suelo que lo hacen apto para el cultivo, originada en prácticas o normas deficientes del manejo del suelo, particularmente relacionados con el régimen hidrológico del mismo, y par cuya restauración del equilibrio se hace necesario el uso de correctivos adecuados".

O esgotamento do solo, por fim, observa o saudoso jurista argentino, corresponderia à "pérdida de la capacidad productiva intrínseca del suelo como consecuencia de su explotación y que sólo puede recuperarse restituyéndole los elementos perdidos".

As leis que cuidam da proteção ao meio ambiente não se referem à destruição da terra pelas causas naturais de força maior que não sejam imputáveis ao cultivador, tais como o vento, as secas, as chuvas torrenciais e a própria composição químico-estrutural do solo.

Tal enfoque, todavia, deve ser considerado com algumas reservas, pois não deixa de caber ao cultivador tomar as devidas providências para proteger a terra das intempéries previsíveis e procurar evitar que tal desgaste ocorra, ainda que seu causador direto seja um dos elementos naturais acima mencionados.

A idéia de mitigar-se ao extremo a responsabilidade do produtor, por culpa, em tais hipóteses poderia ensejar a descaracterização da própria noção de conservação dos recursos naturais, uma vez que inexiste erosão sem ação ou omissão do rurícola, que "deve ser previdente, prudente e ter perícia"3.

Um dos exemplos mais característicos e atuais de exploração predatória da terra ocorre no cultivo da cana-de-açúcar, cuja colheita, principalmente na Região Nordeste do Brasil, ainda hoje se dá pelo sistema da queimada que, embora possibilite um melhor desempenho do trabalhador que realiza o trabalho manualmente, vai aos pouco acabando com as reservas de nutrientes da terra cultivada.

Independentemente do enfoque ambiental, que ganha particular importância no pre- sente momento em que o Brasil se firma como o maior produtor mundial de etanol do mundo, a questão oferece, ainda, aspecto social de extrema relevância: promete-se ao mercado potencialmente promissor no consumo do etanol advindo de cana-de-açúcar a adoção progressiva de sistema mecanizado que tornaria possível prescindir-se do em- prego do sistema de queimadas e da "queima" dos resíduos provenientes da cana, o que possibilitaria não apenas a mitigação do impacto ambiental, como resultaria em aumento de produtividade. Não se pode perder de vista, contudo, que tal transição deve dar-se de modo programado e gradual na medida em que é exatamente o trabalho no canavial que dá o sustento de boa parte da população rural nordestina.

Em estudo anterior tivemos ainda oportunidade de observar ser igualmente absurda a conduta predatória das madeireiras e dos criadores de gado que destroem indis- criminadamente milhares de hectares da floresta Amazônica, seja para extração ilegal de madeira, seja para o preparo de pastos, mesmo porque a terra daquela região, pobre em sua composição química, é tecnicamente mais suscetível à ação da erosão, o que deman- daria cuidados redobrados4.

A ocupação e exploração desordenadas e irresponsáveis certamente causam danos irreversíveis à natureza, sendo que, como vale a pena reiterar, a própria sociedade dentro em breve arcará com as conseqüências de sua omissão5.

Não é apenas a utilização deste ou daquele processo de cultivo ou colheita, porém, que influi na conservação do solo. O emprego e consumo de agrotóxicos e afins, em que pese sejam de inquestionável utilidade no cultivo de determinadas lavouras, com seu uso indiscriminado, poderá, sem dúvida, implicar em um ataque brutal e às vezes irreversível ao meio ambiente, quando não diretamente ao homem.

As construções jurisprudenciais que estão por surgir talvez venham a alcançar um horizonte surpreendente. Assim, por exemplo, é indiscutível que o produtor agrário responderá por danos causados à saúde do consumidor em decorrência do mau uso de agrotóxicos; considerando-se, todavia que tal arrendatário ou parceiro é parte contratante com o proprietário da terra, ante eventual insolvência deste (quando não reconhecida a solidariedade passiva), a responsabilidade civil poderá ser estendida àquele, sob o argumento de culpa in eligendo ou mesmo in vigilando. O proprietário da terra, pois, tem legítimo interesse à resilição do contrato de parceria ou de arrendamento, não apenas na hipótese de danos causados ao solo mas, igualmente, ante séria perspectiva de gravame à saúde de consumidores.

3. A preservação ambiental como pressuposto para cumprimento da "função social da propriedade" agrária, sob a ótica da constituição de 1988 e da lei da reforma agrária

A questão da preservação do meio ambiente ganhou, enfim, proteção Constitucional mais de duas décadas após o advento do Estatuto da Terra e da legislação que o complementa, sendo estabelecido, de modo claro e incisivo, no texto do art. 186 da Constituição Federal de 1988, serem pressupostos para que uma propriedade rural cumpra sua função social, o atendimento simultâneo, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, dos seguintes requisitos: a) aproveitamento racional e adequado; b) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; c) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; d) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores.

No mesmo sentido dispôs a Lei de Reforma Agrária (Lei n° 8.629/93) que, complementando o texto constitucional, previu em seu artigo 9°, ter por cumprida sua função social a propriedade rural que atender, simultaneamente, segundo graus e critérios estabelecidos ao longo do texto daquela mesma lei, os requisitos (até certo ponto repetitivamente) do aproveitamento racional e adequado; da utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; da observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e da exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

O legislador constitucional e o ordinário mencionam a idéia de "preservação do meio ambiente", mas não especificam o alcance que tal expressão deveria ter. Há, contudo, certo consenso na doutrina e na jurisprudência no sentido de ser aplicada a conceituação prevista na Lei n° 6.938, de 31 de agosto de 1981, que...

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