Estudo comparativo da publicidade enganosa no Brasil e em Portugal

AutorSandra Bauermann
CargoJuíza de Direito do Paraná
Introdução

Inegável a importância da publicidade na sociedade de consumo, sua influência no funcionamento do mercado e na decisão de escolha dos consumidores, enquanto instrumentos não mais somente de informação, mas principalmente de persuasão.

Historicamente, a publicidade foi disciplinada inicialmente no quadro da concorrência desleal, estando em causa a tutela da lealdade da concorrência, mas com o movimento de proteção do consumidor passou a ter precedência a preocupação com a defesa dos consumidores.

Os desvios da publicidade, em especial a publicidade enganosa, têm sido objeto de preocupação não só do direito interno português e brasileiro, como também da comunidade européia. Além de desafios teóricos, a matéria traz enorme interesse prático, o que justifica o presente estudo.

Pretendemos realizar uma análise comparativa da publicidade enganosa no Brasil e em Portugal, à luz do Código de Defesa do Consumidor Brasileiro e do Código da Publicidade Português, com algumas considerações acerca do Anteprojeto do Código do Consumidor Português, que prevê a revogação do Código da Publicidade e a transposição da Diretiva 29/2005/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio.

Inicialmente situaremos a regulamentação da publicidade enganosa para, em seguida, identificar o âmbito de aplicação subjetiva e apontar o princípio no qual se fundamenta a disciplina desta matéria. Na seqüência, adentraremos na análise dos elementos caracterizadores da publicidade enganosa e, por fim, trataremos dos tipos de responsabilidade e dos sistemas de controle em cada um dos países.

1. A publicidade enganosa no Brasil e em Portugal
1.1. Regulamentação legal e autodisciplina

Não é possível estudar o direito da publicidade em Portugal sem adentrar na análise do direito comunitário nesta matéria. No que se refere à publicidade enganosa, a preocupação com sua repressão verifica-se no âmbito da União Européia com o controle da publicidade através das Diretivas1 que incidem sobre a publicidade2. Em matéria de publicidade enganosa destacam-se a Diretiva n.° 84/450/CEE, do Conselho, de 10 de setembro de 1984 relativa à publicidade enganosa3 (posteriormente alterada pela Diretiva n.° 97/55/CE, de 06 de outubro de 1997) e a recente Diretiva 29/2005/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, relativa às práticas comerciais desleais das empresas em face dos consumidores no mercado interno.

A Diretiva 84/450/CEE, do Conselho, de 10 de Setembro de 1984, fixou critérios mínimos visando aproximar as disposições dos Estados-membros em matéria de publicidade enganosa, caracterizando-se como de harmonização mínima. O seu âmbito de aplicação não se restringe à publicidade decorrente de relações entre empresas e consumidores, mas também decorrente de relações entre empresas.

Já a Diretiva 29/2005/CE é de harmonização máxima, tendo por objetivo eliminar diferenças das disposições dos Estados-membros em matéria de práticas comerciais desleais, incluindo publicidade enganosa4, das empresas face aos consumidores. A justificativa para esta Diretiva é de que as diferenças das legislações dos Estados-membros causam incerteza sobre quais disposições aplicáveis a práticas comerciais lesivas dos interesses econômicos dos consumidores, criando entraves que afetam empresas e consumidores, colocando em causa a confiança no mercado interno5.

Alcançados, necessitando de um ato nacional para sua inserção na ordem jurídica do respectivo Estado-Membro para gerar direitos e obrigações entre particulares, devendo ser objeto de transposição, salvo se a ordem jurídica nacional já tiver alcançado os objetivos nela perseguidos. O Prof. Doutor J. Oliveira Ascensão e o Prof. Dr. António Menezes Cordeiro utilizam, em português, o termo "Directriz" e não "Directiva", respectivamente, in "A Publicidade Enganosa e Comparativa e Produtos Financeiros", Revista da Banca, n.° 45, 1998, p.26, e Tratado de Direito Civil Português, Tomo I, Parte Geral, 3ª ed., Almedina, 2005, p.667.

A Diretiva 29/2005/CE não abrange nem afeta as legislações nacionais relativas às práticas comerciais desleais que apenas prejudiquem os interesses econômicos dos concorrentes ou que digam respeito a uma transação entre profissionais, assim como não afeta as disposições da Diretiva 84/450/CEE sobre publicidade suscetível de enganar as empresas mas não os consumidores e sobre a publicidade comparativa6.

Portanto, atualmente, a nível da comunidade européia há dois regimes acerca da publicidade enganosa, um restrito aos consumidores (Diretiva 29/2005/CE) e outro mais amplo (Diretiva 84/450/CEE).

A Diretiva 84/450/CEE foi transposta para o direito interno português pelo Decreto-lei n.° 330/90, de 23 de outubro (Código da Publicidade). Este Decreto-lei sofreu sucessivas alterações, dentre as quais, pelo Decreto-lei 6/95, de 17 de janeiro, o Decreto-lei 275/98, de 09 de setembro (deu a redação atual do artigo 11 do Código da Publicidade, que trata da publicidade enganosa) e pelo Decreto-Lei 224/2004, que alterou o artigo 10 do Código da Publicidade (trata do princípio da veracidade)7.

Assim, em Portugal, a regulamentação legal da publicidade enganosa encontra-se especialmente no Código da Publicidade, nos seus artigos 10 e 11, além do artigo 34 e seguintes do mesmo Código, que estabelece sanções para a publicidade enganosa.

Tudo indica que haverá mudanças na disciplina da publicidade enganosa das empresas face aos consumidores em decorrência da necessária transposição da Diretiva 29/2005/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio, para o ordenamento jurídico interno português. A proposta de transposição já foi realizada no Anteprojeto do Código do Consumidor, pela Comissão presidida pelo Prof. Dr. António Pinto Monteiro, apresentado no dia 15 de março de 2006 e atualmente submetido à discussão pública.

No Brasil, a regulamentação legal da publicidade respaldava-se em um ordenamento jurídico cujas normas careciam de uma estruturação sistemática8, até a promulgação do Código de Defesa do Consumidor, Lei 8078/90, de 11 de março, que supriu lacuna existente no ordenamento jurídico brasileiro.

O Código de Defesa do Consumidor brasileiro consagra como direito básico do consumidor a proteção contra a publicidade enganosa ou abusiva (artigo 6.°, IV), trata especificamente da publicidade no capítulo V, destinado às práticas comerciais, nos artigos 36 a 38, sendo que a publicidade enganosa é objeto do artigo 37, caput e parágrafo 1.°. Prevê, ainda, sanções administrativas (arts. 56 e 60) e penais (arts. 66 a 69) correlacionados à publicidade enganosa.

Além da regulamentação legal, encontramos os instrumentos de autodisciplina da publicidade9. O Código de Práticas Leais em Matéria de Publicidade adotado pela Câmara de Comércio Internacional10 serve de fonte comum de inspiração para a autodisciplina da atividade publicitária em vários países, dentre os quais Portugal e o Brasil, e nesta medida não são grandes as diferenças existentes entre os mesmos no que toca aos princípios e práticas gerais11.

Em Portugal, inspirou o Código de Conduta, de abril de 1991 (revisado em 1993) adotado pelo Instituto Civil para a Autodisciplina Publicitária em Portugal (ICAP). O Código de Conduta assim como o Código de Conduta sobre Publicidade Ambiental (também adotado pelo ICAP, em 1993) trazem regras de autodisciplina do setor, dentre as quais acolhe o princípio da veracidade nas mensagens publicitárias (art. 9.°).

O Código Internacional de Práticas Leais em Matéria de Publicidade também foi tomado por base no Código Brasileiro de Auto-regulamentação Publicitária (Carp), de 05.05.198012, que já no artigo 1.° adota o princípio da veracidade e no artigo 27 reprime a publicidade enganosa. Os signatários do Carp fundaram o Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar) para controle interno do mercado publicitário brasileiro com a finalidade de zelar pela aplicação do referido Código, a exemplo do ICAP em Portugal.

Portanto, verifica-se que, tanto no Brasil como em Portugal, a regulamentação da publicidade é feita tanto por meio da aplicação das normas disciplinadoras de tal atividade, efetuadas pelo próprio mercado (auto-regulamentação) e também pelo Estado (regulamentação legal), portanto, com adoção do sistema misto de controle da publicidade13.

1.2. Destinatários da proteção

No campo de aplicação subjetiva do regime previsto no Código da Publicidade português o destinatário da publicidade, segundo o art. 5.°, é "a pessoa singular ou colectiva a quem a mensagem publicitária se dirige ou que por ela, de qualquer forma, seja atingida". As normas do Código da Publicidade aplicam-se seja o destinatário da publicidade consumidor ou não.

Mas, a nova Diretiva comunitária 29/2005/CE, de 11 de maio, relativa às práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores no mercado interno, traz relevância na distinção entre consumidor e não consumidor em matéria de publicidade, por se tratar de regime restrito aos consumidores14. Esta Diretiva traz uma definição de consumidor restrita às pessoas singulares não profissionais, ao definir consumidor como "qualquer pessoa singular ou coletiva que, nas práticas...

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