A Doutrina em perspectiva

AutorLuís Poças
Páginas61-92

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A natureza do seguro de capitalização assume-se como matéria susceptível de alguma controvérsia dogmática, transpondo para a actualidade o debate teórico em torno da natureza do seguro de vida. Embora não se conheça produção doutrinária específica sobre o seguro de capitalização - já que as suas particularidades passam frequentemente despercebidas fora do contexto algo hermético da actividade seguradora “Vida” - as características do contrato suscitam o questionamento sobre o sentido e âmbito de dois conceitos dogmaticamente associados ao contrato de seguro: o de risco e o da aleatoriedade. Assim, começaremos por trazer à colação a controvérsia teórica que envolveu o seguro de vida, passando depois a analisar os dois conceitos referidos, fundamentais para a configuração, no plano teórico, da natureza jurídica do seguro de capitalização.

IV 1 - O Debate Dogmático Sobre A Natureza Do Seguro De Vida

Como nota Antígono Donati163, enquanto o contrato de seguro incidiu sobre coisas materiais a doutrina qualificou-o unanimemente como contrato de indemnização e consolidou-o em torno do princípio indemnizatório164. Porém, com o desenvolvimento dos Page 62 seguros de pessoas, e do seguro de vida em particular, manifestou-se o que viria a ser o problema central ao contrato de seguro: o da definição de um conceito unitário capaz de compreender todas as espécies de seguros e de as distinguir de figuras diversas. A relevância da questão não só assume contornos de natureza teórico-conceptual, mas manifesta-se igualmente na necessidade de definição de princípios e normas aplicáveis ao tipo contratual em causa, atendendo às respectivas especificidades. Importa, pois, acompanhar o debate em torno do conceito de seguro.

IV 1.1 - A teoria indemnizatória clássica

A doutrina clássica colocava em evidência o elemento indemnização, assentando em definições de contrato de seguro como «contrato pelo qual alguém se obriga para com outro a indemnizá-lo dos danos produzidos por um determinado acontecimento fortuito»165. Esta doutrina, em certa medida até mais centrada no dano do que na indemnização, entrevia o contrato de seguro com um objectivo exclusivo de ressarcimento de um dano efectivamente sofrido, requerendo-se uma correspondência rigorosa entre este dano e a soma paga pelo segurador. Sob o prisma desta posição doutrinária, verificou-se uma negação inicial ao seguro de vida da natureza de seguro, sendo o mesmo perspectivado sob diversos prismas, de que importa dar conta.

IV 1.1.1 - O seguro de vida como contrato de aposta

Esta visão está ainda ligada ao carácter embrionário do seguro de vida, em que o contrato muitas vezes redundava em verdadeiras apostas especulativas sobre a sobrevivência de figuras públicas. Porém, com a evolução do seguro de vida com fins de previdência e assente em bases de probabilidade estatística, esta perspectiva perdeu o sentido, já que o contrato de aposta tem base especulativa e por fim exclusivo o lucro, diversamente do contrato de seguro.

IV 1.1.2 - O seguro de vida como contrato de compra e venda

Esta perspectiva está também ligada às origens do seguro, em que este era entendido, numa matriz romanista, como compra de segurança (emptio securitatis) pelo preço dorisco (pretium pericali)166. Page 63 Esta categoria jurídica tradicional - com pretensões de aplicação à generalidade dos contratos onerosos - tem fraco poder explicativo, já que não traduz a prestação do segurador.

IV 1.1.3 - O seguro de vida como contrato de poupança, mútuo ou capitalização

Nesta perspectiva, o seguro de vida seria um mútuo remunerado com juros ou uma capitalização de economias. Assim, não haveria risco, porque a morte é um acontecimento certo, nem prémio (não sendo a prestação do segurado uma contrapartida de um capital seguro). Faltaria igualmente a indemnização correspondente a um dano patrimonial objectivamente determinado, já que a morte não corresponde sempre e necessariamente a um dano patrimonial. De resto, no “seguro”, a prestação do segurador estaria sujeita a uma condição suspensiva, enquanto no seguro de vida estaria sujeita a uma termo (incerto). Nesta perspectiva, o capital seguro - em parte consubstanciado nas reservas matemáticas - não seria mais do que a soma dos prémios acrescidos da capitalização dos juros: «o sonhado seguro de vidas não passa de um empréstimo a juros»167. Por fim, a participação nos lucros não seria mais do que a distribuição de um dividendo correspondente a um juro.

Ora, esta perspectiva peca por simplismo e falta de rigor. Por um lado, como nota Álvaro Villela, o capital pago pelo segurador não corresponde à capitalização dos prémios pagos e respectivo juro168. Quanto às reservas matemáticas, as mesmas correspondem à antecipação de um prémio em função de um risco futuro169; nesta medida, a reserva é o oposto da capitalização, já que aquela se consome e esta cresce com o decurso do tempo170. Page 64 Quanto ao argumento da participação nos lucros, esta é o resultado, não da capitalização de rendimentos, mas da exploração técnica do ramo, correspondendo à devolução da parte do prémio cobrada em excesso relativamente ao risco efectivamente incorrido, em cada período de tempo, pelo segurador na totalidade da sua carteira (as tarifas são normalmente prudentes face ao risco efectivo seguro).

IV 1.1.4 - O seguro de vida como contrato misto de capitalização e de seguro

Partindo da perspectiva anterior da capitalização no seguro de vida, alguns autores deparam-se com uma dificuldade: a possibilidade de o segurador ter de, por morte prematura do segurado, pagar o capital garantido antes de os prémios e a capitalização dos juros terem atingido o respectivo montante. Deste prisma, além da capitalização, o seguro de vida abrangeria um seguro contra um risco171. Tratar-se-ia, assim, de um contrato misto de seguro e de um elemento heterogéneo172. Esta doutrina mereceu o mesmo tipo de críticas do que a anterior, na qual assenta.

IV 1.1.5 - O seguro de vida como contrato de seguro (conceito unitário)

Numa outra perspectiva, dominante no séc. XIX, a teoria indemnizatória clássica tentou conceptualizar o seguro de vida à luz do carácter unitário do contrato de seguro, revelando-se, no entanto, incapaz de superar a aplicação do conceito de dano à morte ou à sobrevivência. Os adeptos desta concepção alargaram então o âmbito do conceito de dano - distinguindo danos morais e patrimoniais, lucros cessantes e danos emergentes - tentando adaptá-los aos riscos de morte e sobrevivência.

Nesta linha, Chaufton defende que, considerado nos seus efeitos imediatos, o seguro é a compensação pecuniária (indemnização) de certos efeitos do acaso (riscos, enquanto efeitos previstos; sinistros, enquanto efeitos realizados) que destroem ou diminuem o património do homem (danos)173. Por outro lado, subscreve a distinção capital formado / capital Page 65 em vias de formação174. Esta classificação, de Chaufton, foi aperfeiçoada por Berdez, que distingue seguros de valores existentes de seguros de valores futuros. Estes últimos corresponderiam ao ramo “Vida”175.

Contra esta teoria, argumentou-se que o segurador teria de pagar o capital convencionado quer se verificasse ou não um dano patrimonial e independentemente do respectivo valor. Por outro lado, o capital seria pago a um beneficiário designado, o qual poderia não sofrer qualquer dano com a morte da pessoa segura ou até ter uma vantagem material com a mesma176. Por fim, poder-se-ia celebrar vários contratos sobre o mesmo risco, não haven- do limite para o capital nem existindo sub-rogação do segurador sobre terceiro responsável pela ocorrência do evento morte. Não conseguindo superar as incongruências e as objecções colocadas, esta teoria entrou em decadência.

IV 1.2 - A teoria da transferência do risco

Mais do que de uma corrente doutrinária, esta perspectiva congrega pontos de vista comuns a uma pluralidade de autores, que identificam a transferência (ou assunção, ou suportação) do risco para o segurador como objecto do contrato.

A ênfase no risco, como elemento essencial do contrato de seguro, vem sendo há muito sustentada. Neste quadro, Franchi, defensor intransigente desta posição, manteve uma querela doutrinária contra a posição de Vivante177. Porém, ao colocar o enfoque no risco, Franchi aproximou demasiado o contrato ao de jogo e aposta. Villela, em defesa de Vivante, negou a relevância isolada do risco, concluindo que «quem assume um risco isolado poderá apresentar-se como um jogador, mas nunca como um segurador»178. Page 66

Donati, por seu turno, critica...

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