Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2013, de 10 de Julho de 2013

Acórdáo do Supremo Tribunal de Justiça n. 10/2013

Processo 29/04.0jdlsb-Q.S1

Fixaçáo de Jurisprudência

Relato n500b

Acordam neste Supremo Tribunal de Justiça

Jorge Manuel Bastos Gonçalves veio interpor recurso extraordinário de fixaçáo de jurisprudência, nos termos

dos artigos 437.° e seguintes do Código de Processo Penal, alegando, em síntese, que:

Nestes termos, conclui pedindo que o presente recurso seja admitido e consequentemente seja fixada uniformizaçáo de jurisprudência quanto à existência de concurso aparente ou de concurso real e efectivo, entre os crimes de burla e falsificaçáo de documento, quando este último é praticado com o único intuito de -preparar ou facilitar o crime de burla, tendo em conta a legislaçáo em vigor após a Lei 49/2007.

Juntou certidáo de acórdáo do Tribunal da Relaçáo de Lisboa de 15 de Dezembro de 2011, proferido no processo 29/04 - acórdáo recorrido - e constante de fls 4 e seguintes dos presentes autos que se dá por reproduzido. Igualmente junto a fls 29 se encontra igualmente o Acórdáo do Tribunal da Relaçáo de Lisboa de 29 de Junho de 2010 proferido no processo 4395/03 - acórdáo fundamento - e que, também, se dá por reproduzido.

Por acórdáo de 17 de Janeiro de 2013 julgou-se verificada a oposiçáo de julgados quanto aos acórdáos proferidos no âmbito dos recursos referidos e, em consequência, ordenou-se o prosseguimento dos presentes autos para fixaçáo de jurisprudência no que respeita à interpretaçáo dos artigos 256 e 217 do Código Penal.

Notificados nos termos do artigo 442 n1 do Código de Processo Penal a Exª Srª Procuradora Geral Adjunta, bem como o recorrente Jorge Manuel Bastos Gonçalves, vieram apresentar alegaçóes formulando, respectivamente, as seguintes conclusóes:

  1. Nos acórdáos de 19 de Fevereiro de 1992 e de 4 de Maio de 2000, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que, sendo diversos e autónomos, entre si, o bem jurídico violado pela burla e o bem jurídico tutelado pela incriminaçáo da falsificaçáo, no caso de a conduta do agente preencher as previsóes de falsificaçáo e de burla verificava-se concurso real ou efectivo de crimes.

  2. No artigo 30.°, n 1, do Código Penal ficou «cristalizada» a regra da equiparaçáo do concurso ideal ao concurso real preconizada pelo Professor Doutor Eduardo Correia, que, relativamente à unidade e pluralidade de infracçóes, há muito defendia que a unidade da conduta náo devia ser o índice da unidade do crime, como pretendia a teoria naturalística, mas nullum crimen sine lege e nulla poena sine lege; cf. Direito Penal, Parte Geral I, p. 1027.

    22 Sem prejuízo de, nas situaçóes da apelidada "consumpçáo impura", ser aplicável a moldura penal mais grave, correspondente ao crime de falsificaçáo, porque, conforme explicita também Figueiredo Dias, «nas hipóteses de concurso aparente as leis abstractamente aplicáveis sáo também aplicáveis em concreto, sáo na realidade aplicáveis ao "grande facto "», sem que tal implique desrespeito pelos princípios antes essa distinçáo devia radicar-se nos valores protegidos pelos tipos legais de crime efectivamente realizados pela conduta do agente, ou pelo número de vezes que esta preenchia o mesmo tipo legal de crime.

  3. A puniçáo do concurso de crimes, constituindo um caso especial de determinaçáo da pena, encontra-se pre-vista nos artigos 77.0 e 78.0 do Código Penal, sendo seu pressuposto, náo uma situaçáo de unidade criminosa, mas, pelo contrário, que o agente tenha efectivamente realizado vários crimes antes de transitar em julgado a condenaçáo por qualquer deles.

    4016 4. Ao determinar-se que a moldura legal da pena do concurso tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos crimes concorrentes e como limite máximo a soma das penas por aqueles impostas, náo se acolheu o sistema da acumulaçáo material.

  4. Partindo da consideraçáo do agente enquanto pessoa, com uma dada personalidade unitária, mas sem que os crimes concorrentes perdessem autonomia, optou-se antes por um sistema - de pena conjunta, obtida através de um cúmulo jurídico - em que a pena única é determinada, dentro da moldura penal do concurso fixada nos termos acima referidos, atenta a avaliaçáo em conjunto dos factos e da personalidade do agente, que neles se revela, e do grau das exigências gerais da culpa e da prevençáo que se façam sentir.

  5. Os crimes concorrentes náo perdem pois a sua individualidade, náo só porque sáo previamente fixadas as penas correspondentes, como estas váo ter importante repercussáo ao nível da pena única, uma vez que será determinada entre um mínimo igual à duraçáo da pena parcelar mais elevada e um máximo correspondente à soma material da duraçáo das penas parcelares impostas.

  6. O património, globalmente considerado, constitui o bem jurídico protegido pela incriminaçáo da burla prevista no artigo 217.°, n 1, do Código Penal.

  7. No crime de burla, constituem elementos do tipo objectivo de ilícito o emprego de astúcia por parte do agente, determinante de erro ou engano da vítima, que a motiva à prática de actos que lhe causam, ou a terceiro, prejuízo patrimonial, podendo o ardil empregue pelo agente para induzir a vítima em erro ou engano consistir ele próprio num outro tipo legal de crime.

  8. O bem jurídico tutelado pela incriminaçáo da falsificaçáo prevista no artigo 256.°, n 1, do Código Penal é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental.

  9. Realizada a falsificaçáo náo ocorre ainda a violaçáo do bem jurídico, mas táo-somente perigo dessa violaçáo.

    O perigo de lesáo náo constitui elemento do tipo objectivo, basta que, em abstracto, a actuaçáo do agente seja susceptível de ofender o bem jurídico protegido pela incriminaçáo. É, pois, um crime de perigo abstracto.

  10. A Lei n 59/2007, de 04/09, aumentou o número dos elementos subjectivos especiais da ilicitude. Deste modo, mesmo que o agente náo actue com intençáo de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, cometerá ainda assim o crime de falsificaçáo desde que tenha tido intençáo de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

  11. A questáo que neste conflito se coloca pressupóe já ultrapassado o momento da análise lógico-conceitual das relaçóes existentes entre uma pluralidade de normas incriminadoras que o comportamento do agente em abstracto convoca, e, por isso, verificado já se aquelas normas sáo concretamente aplicáveis ou se entre elas alguma assume uma posiçáo de preva lência que exclua a aplicaçáo de outras.

  12. Eduardo Correia, depois de considerar que a uni-dade ou pluralidade de valores jurídico-criminais negados pela conduta do agente constituía o princípio que permitiria determinar o número de crimes por este cometidos e de se questionar como determinar a ilicitude material, concluía que o tipo legal era o «portador, o interposto da valoraçáo jurídico-criminal, ante o qual se acham colocados os tribunais e o intérprete. Os juízos valorativos

    exprimem-se, em linguagem jurídico-criminal, como em parábolas, através dos tipos legais, e a antijuridicidade duma relaçáo social, ao menos numa primeira afirmaçáo, pela possibilidade da sua subsunçáo a um de tais tipos».

  13. Mas como náo bastasse atender apenas à antijuridicidade da conduta do agente, pois nesta náo se esgotava a infracçáo, Eduardo Correia defendia que importava levar ainda em conta os juízos de censura de que a actuaçáo do agente era passível, em virtude de pluralidade de resoluçóes que tivessem conduzido à frustraçáo da eficácia subjectiva determinadora da norma. Como índice da «unidade ou pluralidade de determinaçóes volitivas», apontava a necessidade da consideraçáo da conexáo temporal entre as várias etapas da conduta do agente.

  14. O critério da unidade ou pluralidade de bens jurídicos violados pela conduta do agente vem sendo aprofundado pela doutrina, com especial destaque para a obra de Figueiredo Dias que, salientando o avanço significativo da concepçáo de Eduardo Correia e acentuando que o tipo legal de crime constitui factor relevante para a distinçáo, observa porém que «o tipo de ilícito, o verdadeiro portador da ilicitude material, é sempre formado pelo tipo objectivo e pelo tipo subjectivo de ilícito, e que, para além do bem jurídico, o autor e sua conduta sáo também igualmente constitutivos do tipo objectivo de ilícito.

  15. Defende assim que, para se concluir pela unidade ou pluralidade de crimes a punir nos termos do artigo 77.0

    do Código Penal, há que recorrer a uma compreensáo e consideraçáo global do sentido social do comportamento do agente reflectido nos tipos de ilícitos aplicáveis, em ordem a verificar-se:

    - os crimes em concurso se reconduzem a uma pluralidade de sentidos sociais autónomos dos ilícitos-típicos cometidos; ou, pelo contrário,

    - o comportamento global é «dominado por um único sentido autónomo da ilicitude, que a ele corresponde uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos-típicos praticados».

  16. No primeiro caso, estaremos perante um concurso efectivo, a punir nos termos do artigo 77.°, n.os 1 e 2, do Código Penal; na segunda situaçáo somos confrontados com um problema axiológico e teológico de relacionamento de sentidos e de conteúdos do ilícito», que nos coloca perante uma pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis, mas náo face a uma pluralidade de crimes efectivamente cometidos, pelo que o concurso, meramente aparente, de crimes deverá ser punido na moldura respeitante ao tipo legal que «incorpora o sentido dominante», sendo o sentido do ilícito excedente valorado na medida da pena concreta.

  17. Assim, para decidir o presente conflito de jurisprudência, terá de questionar-se se o critério de diferenciaçáo radicado na diversidade ou unidade dos bens jurídicos violados deverá ser o ponto de partida e de chegada, ou se, volvidos mais de 50 anos sobre o notável trabalho de Eduardo Correia, o referido critério, continuando embora como ponto de partida, deverá...

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