Direito civil e direito do consumidor

AutorJosé de Oliveira Ascensão
CargoProfessor Catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa
1. Origem e tendências da legislação

Propomo-nos tratar de problemas de acomodação na ordem jurídica, derivados da emergência desse intruso, que é o Direito do Consumidor.

De facto, o ingresso deste é muito recente. Dificilmente lhe daríamos mais de 50 anos mas ainda não se falava então num ramo do Direito, havia apenas regras dispersas que emergiam como um reflexo das preocupações sociais do pós-guerra. Temos todavia como pano de fundo uma economia de mercado, porque só numa economia de mercado seria possível a feição que revestiu.

Se quiséssemos marcar uma data fixa de nascimento, teríamos de nos reportar ao discurso do Presidente Kennedy de 15 de Março de 1962, em que afirma: Consumer, by definition, include us all. A partir daí, desenvolve-se rapidamente todo um sector do Direito.

À primeira vista, é surpreendente: é no país capitalista de vanguarda que se desenvolve e a partir do qual se expande um ramo que apresenta uma tonalidade social1.

Há um objectivo nítido: dar confiança ao consumidor para que não se retraia e acorra ao mercado com isso dar fluidez ao mercado. Seguidamente, houve a preocupação de exportar o regime para outras zonas (desde logo a Comunidade Europeia) para que esse tipo de protecção não cause distorções na concorrência em detrimento da empresa norte-americana.

A evolução em Portugal tem traços atípicos. Não emana tanto do sistema como do ataque ao sistema. Emerge no período pós-revolucionário. Elucidativamente, uma das primeiras leis neste domínio, se não a primeira, é de uma selvajaria bem caracterizada: o Dec.-Lei n.° 165/77, de 21 de Abril, tipifica como crime a entrega ou envio de produtos ou publicações não solicitados!2

Em todo o caso, chega-se a breve trecho a uma lei sistemática, a Lei n.° 29/81, de 22 de Agosto, que dá um quadro-base para a defesa do consumidor. Só veio a ser revogada pela vigente Lei n.° 24/96, de 31 de Julho.

De todo o modo, vão-se multiplicando as leis nos vários países. Na Europa passam a ser impulsionadas pela Comunidade Europeia.

Perante a pluralidade de leis, põe-se a questão da ordenação destas, a nível nacional3.

As respostas foram porém diferentes.

A seguir ao Código do Consumidor brasileiro de 1990 surge o Code de la Consommation francês, de 1993, que continua hoje em vigor. Mas no século passado ficou-se por aí. Pelo contrário, na Holanda preferiu-se incluir a matéria na codificação civil em vez de autonomizar sistematicamente o Direito do Consumidor.

Só neste século a situação sofre mudança. Surgem dois monumentospadrão, na Alemanha e na Itália.

Na Alemanha, aproveita-se a reforma do livro do Direito das Obrigações, em 2001, para introduzir no BGB os grandes princípios da protecção do consumidor. A matéria é porém trabalhada e depurada para tanto. Os preceitos especificamente relativos ao consumidor não são mais que meia centena. O restante é deixado para leis de aplicação, ou afastado por ter índole comercial, ou ainda generalizado. Efectivamente, verifica-se que muitas regras que surgiram sob a bandeira da defesa do consumidor são antes de referir a todas as pessoas, sejam ou não vistas pelo ângulo restrito de consumidor, como aquele que actua sem finalidade empresarial ou profissional (§ 3). A Reforma marca assim, além do mais, um considerável progresso do Direito Civil.

Na Itália segue-se um caminho bem diverso. Um Codice del Consumo é aprovado em 2005. Procura regular todos os aspectos relativos ao consumidor, mas não é exaustivo porque por vezes procede por mera remissão. Assim, regula os contratos a distância, seguindo a directriz comunitária que regula a matéria pelo ponto de vista da protecção do consumidor, mas quando chega à modalidade de contratos a distância que são os respeitantes ao comércio electrónico, limita-se a remeter para legislação especial. Terá sido movida não só pelo facto de haver legislação recente sobre o tema como ainda por as leis sobre comércio electrónico regularem muitas outras matérias, além da defesa do consumidor.

2. Em demanda dum ramo do Direito

Qual o ramo do Direito em que esta matéria se integrará? As respostas podem ser muito variadas.

A. Será Direito da Economia? Assim seria, a acreditar na designação do código italiano, Codice del Consumo. O consumo é uma função económica. Se se regula o consumo regula-se uma função comparável ao comércio ou ao crédito, por exemplo, o que cairia na alçada dum proteiforme Direito da Economia.

Segundo outra visão, partindo-se da noção de que esta matéria se refere ao consumidor final, poderia entender-se que se englobaria num vastíssimo e impreciso ramo do Direito dos Comportamentos no Mercado, que abrangeria desde a disciplina das vendas à concorrência desleal, por exemplo. Colocar-se-ia o acento na disciplina das actividades referentes ao consumo, quer seja por parte dos operadores no mercado (como o que respeita à publicidade) quer no que respeita à situação dos próprios consumidores.

Mas a epígrafe do código italiano é surpreendente. Também em Itália a legislação na matéria tem por núcleo a protecção do consumidor e não a função do consumo em si. Por isso há que falar sempre em Direito do Consumidor, que é o protagonista, e não em Direito do Consumo, função económica4.

B. Será então Direito Administrativo?

A intervenção administrativa é de facto muito grande, para protecção do consumidor. Poderia então conceber-se como a regulação de uma das modalidades de intervenção dos órgãos públicos na economia, e portanto como Direito Administrativo. Ainda Antunes Varela, note-se, considerava esta matéria mais de Direito Administrativo5.

Mas a verdade é que esse não é o núcleo do Direito do Consumidor, que disciplina em geral as formas de protecção do consumidor. Regula muito mais comportamentos de participantes no mercado que a intervenção da Administração. A intervenção da Administração é meramente complementar. Por isso pode ser ampliada ou reduzida, que a essência deste sector do Direito não se altera.

C. Será então Direito Comercial? Deverá ser integrado neste ramo do Direito?

Neste caso estaria centrado no fornecedor, cuja actividade seria sempre comercial. Quer se assentasse na caracterização subjectivamente comercial, como comerciante, quer no carácter objectivamente comercial, por se basear na empresa ou no empresário, sempre se encontraria aqui matéria respeitante ao Direito Comercial. Acentuar-se-iam então matérias como a contratação de massa, tão característica dos dias de hoje, a densa disciplina das vendas (e das transacções empresarialmente sustentadas em geral) e a responsabilidade do produtor. A propósito desta última é interessante notar que não foi incluída na reforma do Livro das Obrigações do BGB, não obviamente por não interessar ao consumidor, mas porque assentaria na actuação profissional de um agente, o produtor, o que empurraria para o Direito Comercial6.

Podemos ainda observar que esta caracterização pode levar a dois sentidos distintos:

  1. Onde houver autonomia formal do Direito Comercial, pode levar a conceber todo a disciplina do consumidor como integrada naquele ramo. Pelo menos grande parte dos preceitos relativos ao consumidor seria absorvida, reduzindo drasticamente o corpo do Direito do Consumidor. O que sobraria seria o que respeitasse ao consumidor isolado, fora da relação com o fornecedor, o que não é facilmente configurável. Mas desfocaria justamente o que aparecera até agora como núcleo, que é a protecção do consumidor.

  2. Onde pelo contrário não houvesse autonomia do Direito Comercial (pelo menos ao ponto de vista formal, como em Itália) a tendência poderia ser a oposta: construir um ramo autónomo do Direito do Consumidor, que abrangeria matéria que iriam desde a disciplina das vendas à protecção do investidor.

    Um banco de ensaios poderia ser dado pela matéria da publicidade: ou seria incluída na totalidade num Código do Consumidor, como é proposto no Anteprojecto português de Código do Consumidor, que já de seguida examinaremos.

    ou seria excluída totalmente desta legislação. Neste sentido se orientou a legislação comunitária. A Directriz n.° 05/29, de 11 de Março, sobre práticas comerciais desleais e agressivas, afastou tão radicalmente esta matéria do Direito do Consumidor que até reformulou o art. 1 da Directriz n.° 84/450, de 10 de Setembro, sobre publicidade enganosa e comparativa, para eliminar toda a referência ao consumidor e passar a respeitar exclusivamente aos profissionais 7.

  3. Terceira posição é a constante do Codice del Consumo italiano. Formalmente, inclui a publicidade. Mas afinal, regula-a de maneira a não abranger especificamente o consumidor, porque generaliza a disciplina a todo o destinatário.

    D. Mas não será o Direito do Consumidor, afinal, Direito Civil?

    É talvez este actualmente o maior desafio.

    As regras protectivas comuns estão contidas no Direito Civil.

    As regras do Direito do Consumidor são compagináveis com aquelas?

    Há que remeditar se as regras protectivas do consumidor, que foram sendo casuisticamente introduzidas, não se reconduzem ao Direito Civil, ou como um sector deste, ou até como regras generalizáveis a todas as pessoas (logo, não apenas específicas do consumidor), dentro do movimento geral de eticização do Direito Civil. Esta generalização seria particularmente impulsionada pelos actuais movimentos que privilegiam a justiça contratual.

3. O Anteprojecto português do Código do Consumidor

Foi editado em 2006 em Portugal um Anteprojecto de Código do Consumidor.

Resulta dos trabalhos desenvolvidos por uma Comissão, presidida por António Pinto Monteiro, que recebera logo como encargo elaborar o Código, sem...

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