O desvendar de um processo histórico

AutorLuís Poças
Páginas13-20

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II 1 - As origens

Os antecedentes históricos da antecipação bancária remontam, segundo Giacomo Molle, à antiguidade clássica14. Como nota o autor, os mútuos pignoratícios eram praticados pelos banqueiros gregos e romanos, embora o Direito romano antigo favorecesse mais as garantias pessoais do que as reais. O Digesto (15, 5, 8) comprova a existência de estabelecimentos que concediam mútuos mediante penhor de cereal, enquanto outras fontes literárias revelam que tais operações eram efectuadas pelo argentarius e pelo danista. A tábua Bética revela igualmente exemplos de antecipações feitas pelo banqueiro sobre coisas recebidas em penhor fiduciário (importando, segundo o antigo instituto da fidutia, a transmissão da propriedade, mas mediante a obrigação pessoal - fidutia - de restituição em caso de cumprimento pelo devedor)15.

A origem próxima da antecipação bancária remonta, porém, à prática da concessão de mútuos com juros elevados sob garantia de coisas móveis de valor, introduzida em Itália pela comunidade judaica, no final do séc. XI, e que se encontrava ao abrigo da proibição de usura. O penhor de objectos de valor constituía uma garantia segura, pelo que tal prática foi seguida pelos cambistas italianos, pontualmente autorizados pelo Príncipe ou pela própria Igreja à concessão de mútuos, mediante a compra de uma licença por um período de alguns anos e em regime de monopólio. Inicialmente efectuadas com fundos próprios (fundos de caixa residuais de operações de câmbio), as operações de crédito passaram a ser feitas com fundos alheios (dinheiro depositado com faculdade de uso)16.

Este tipo de operação rapidamente se generalizou aos comerciantes italianos - noutros países conhecidos geralmente por Lombardos17 - que a difundiram, tanto na Page 14 Europa ocidental, como no Oriente, e que igualmente se notabilizaram na concessão de empréstimos públicos. A partir do Renascimento a doutrina italiana dedicou especial atenção à antecipação bancária - procurando regular o contrato de modo a subtraí-lo à proibição da usura - e estabeleceu os contornos típicos que ainda hoje permanecem18.

II 2 - A difusão internacional

Durante um longo período de tempo, a antecipação bancária permaneceu internacionalmente como a mais importante operação bancária activa, conservando ainda papel de destaque em países como o Reino Unido e os Estados Unidos da América, onde beneficia de preferência, por parte dos bancos, relativamente ao desconto cambiário19. Uma forma particular norte-americana de antecipação bancária consiste no trust receipt, modalidade destinada a financiar a venda de mercadorias com intervenção bancária20.

A antecipação bancária é igualmente praticada na Alemanha, sob a designação Lombardgeshäft ou Lombardkredit21, sobretudo nas relações entre os bancos comerciais e o Bundesbank, e tendo em vista a obtenção de crédito de curto prazo22. Quanto à natureza dos bens dados em garantia, a prática bancária alemã distingue ainda a Banklombardgeshäft, em que a garantia assume por objecto títulos, metais preciosos, moeda ou mercadorias negociáveis, da Pfandleihe, em que a garantia incide sobre objectos preciosos ou jóias. São ainda formas específicas de antecipação bancária no Direito alemão a Vinkulationsgeschaft (antecipação contra a transmissão fiduciária da propriedade de mercadorias) ou a Sicherungsübereigung (em que se dá a transferência da propriedade a escopo de garantia)23. Page 15

Também nos países de expressão francesa e espanhola esta modalidade contratual manifestou a sua relevância, assumindo, no primeiro caso, a designação de avance sur titres, avance sur marchandises, ou simplesmente avance en banque; e, no segundo caso, a designação de prestamo24. Porém, embora acolhida e vulgarizada ao nível das práticas contratuais da generalidade dos países, a modalidade em análise permanece, em grande medida, legalmente atípica no quadro dos sistemas jurídicos europeus25.

Foi em Itália, no entanto, que esta fattispecie contratual sempre mereceu uma atenção especial da doutrina, o que está intimamente relacionado com a relevância desse país na autonomização histórica da figura, bem como com a visibilidade social e jurídica que a mesma conserva actualmente. Messineo26 observa que a designação “antecipação” (anticipazione) decorre da tradição italiana, encontrando acolhimento no artigo 194.º do Código Comercial italiano de 1865, respeitante a anticipazioni e prestiti sopra depositi o pegni. O legislador referia-se aí, sem as disciplinar, a duas operações distintas: os empréstimos sobre penhores (prestiti sopra pegni) e as antecipações sobre depósitos de coisas (anticipazioni sopra depositi). A designação generalizou-se, entretanto, em Itália a uma pluralidade de outras situações, com significados bem diversos, em que é empregue em sentido impróprio27, vindo a cristalizar-se por referência à operação objecto deste estudo28.

No processo legislativo que deu origem ao actual Código Civil italiano, a anticipazione foi cronologicamente a última modalidade contratual a ser introduzida. Ausente dos projectos de Código Comercial de Vivante (1922) e de D’Amelio (1925), passou a integrar o projecto de Asquini (1940), no Título consagrado aos contratos bancários (Título V do Livro III), onde surgia sob a designação anticipazione su pegno29. Assim, depois de uma Page 16 longa permanência como contrato (legalmente) atípico - cuja regulação resultava essencialmente dos usos bancários30 - o mesmo constitui hoje uma modalidade dotada de tipicidade legal, sendo regulada nos artigos 1846.º a 1851.º do Código Civil de 1942 em virtude da integração neste do referido projecto Asquini31. Como refere Antonio Serra, os referidos artigos não apresentam qualquer definição de antecipação bancária, antes assentando numa noção que resulta sobretudo da prática comercial e bancária32.

Entre os principais elementos caracterizadores do contrato no contexto do Código Civil italiano, encontram-se: o facto de o mesmo traduzir uma operação bancária; de conjugar, de uma forma intrinsecamente interdependente, duas relações (de crédito e de garantia); de haver uma proporcionalidade constante entre o valor atribuído aos bens dados em garantia e o crédito33; de a garantia ter por objecto títulos, mercadorias ou títulos representativos de mercadorias; de dever ser celebrado por escrito, constando do contrato, nomeadamente, a identificação dos bens dados em garantia (excepto em caso de penhor irregular) e respectiva avaliação, a identificação das partes e o prazo do contrato; de se prever a execução da garantia (venda coerciva), quer no caso de o devedor...

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