Decreto-Lei n.º 364/77, de 02 de Setembro de 1977

Decreto-Lei n.º 364/77 de 2 de Setembro 1. Pelo presente decreto-lei reestrutura-se a Polícia Judiciária, cumprindo-se, assim, um dos objectivos anunciados no programa de acção do Ministério da Justiça, integrado no Programa do Governo.

A Polícia Judiciária, de que se mantêm as características específicas de organismo auxiliar da administração da justiça, superiormente fiscalizado pelo Ministério Público, com exclusiva competência policial para a investigação, em todo o território, dos crimes de maior gravidade e de mais difícil descoberta, teve no Decreto-Lei n.º 35042, de 20 de Outubro de 1945, a sua lei orgânica. Este diploma, inúmeras vezes alterado, jamais foi alvo de modificações que excedessem retoques superficiais, nem sempre felizes ou oportunos, adiando-se, por excessivo tempo, a adopção de um figurino que dotasse a Polícia Judiciária de meios idóneos para responder a formas de delinquência de crescente gravidade qualitativa e quantitativa.

O Decreto-Lei n.º 35042 seguiu-se, a escassos dias, ao Decreto-Lei n.º 35007, o qual introduziu profundas alterações ao Código de Processo Penal, com incidência na matéria relativa à instrução criminal, que, ao arrepio da tradição portuguesa, se converteu de actividade jurisdicionalizada em actividade puramente administrativa, sob a égide do Ministério Público.

Daí que o legislador de então sentisse a necessidade de equiparar a Polícia Judiciária ao Ministério Público, como seu sucedâneo para os grandes centros urbanos. Com este subterfúgio, no entanto, não se escamoteava a realidade da prática de verdadeiros actos de justiça que directamente visavam os cidadãos em direitos fundamentais, agravando-se o desvio, acolhido pelo Decreto-Lei n.º 35007, por uma polícia com os sérios inconvenientes que desde logo se reconheceram e se foram acentuando sem vantagens para a própria Polícia Judiciária. Se se pretendeu que um organismo especializado se incumbisse, onde a criminalidade era mais vasta e mais aguda, de funções atribuídas aos agentes do Ministério Público, o certo é que, dividida entre a prevenção e a investigação criminal e a realização de uma instrução preparatória escrita e altamente burocratizada, bem pode dizer-se que a Polícia Judiciária assistiu à degradação em escriturários de muitos dos seus melhores investigadores e lutou ingloriamente por uma acção eficaz. São disso testemunho os seus deficits estatísticos.

Acresce que o Decreto-Lei n.º 35042 regulamentou não só a Polícia Judiciária, como organismo encarregado especialmente das referidas tarefas, mas ainda o conjunto de actos de prevenção e investigação de que outros organismos comungavam. A pretexto da maior dificuldade dos crimes a descobrir concedeu-se à Polícia Judiciária um estatuto aberrante, designadamente no que concerne a mais dilatados prazos de prisão preventiva sem culpa formada, prorrogáveis por mero despacho ministerial, e à fiscalização das prisões pelos seus órgãos dirigentes, transformados em 'quase juízes'.

Este sistema, que sofreu a primeira investida com o Decreto-Lei n.º 185/72, de 31 de Maio, encontra-se completamente proscrito pela Constituição da República, que devolveu à instrução preparatória criminal a sua genuína natureza de actividade dirigida por juízes e regida pelo princípio do acusatório. Daqui, por inequívoca consequência, a devolução à Polícia Judiciária da sua face de organismo auxiliar da administração da justiça penal, em suma, de polícia com papel de polícia, o que, pese embora a aparente redundância, se não verificava até agora, como se viu.

  1. As precedentes considerações não significam que se não tenha aproveitado do Decreto-Lei n.º 35042 um esquema organizatório que se reconhece apenas carecido de ampliação e actualização. Reformar não é obrigatoriamente sinónimo de destruir, e o legislador tem de saber resistir à tentação da mudança pela mudança. De resto, se há campos em que as reformas têm de dar as mãos à prudência e à sensatez, um deles é o da reestruturação dos organismos policiais, de molde a evitar que um salto brusco degenere em morosa adaptação ou que o doente não suporte a terapêutica curativa.

    Foi intencional o propósito de banir do diploma quaisquer normas de direito processual criminal, que terão o seu lugar de eleição no Código de Processo Penal, em fase de revisão, e deverão impor-se a quem quer que tenha de as utilizar. É condenável a prática anterior de aparelhar cada polícia com regras privativas de direito adjectivo, convindo, pelo contrário, que todas se coloquem em situação de perfeita igualdade.

    Assim, a ausência no presente decreto-lei de um acervo de disposições processuais como as do diploma que revoga é deliberada, aguardando a Polícia Judiciária que as reformas legislativas em curso, sobretudo, e além da já citada, a que irá providenciar pela institucionalização dos juízes de instrução criminal, completem as malhas indispensáveis de um todo harmónico e coerente e que possa desenvolver a sua acção dentro dos seus limites funcionais.

  2. Uma outra omissão justifica uma palavra de esclarecimento.

    É sabido que a inoperância policial no nosso país deriva, em parte, da proliferação de organismos policiais que amiúde se sobrepõem e confundem.

    No presente decreto-lei não se dá, como era de esperar, qualquer passo no sentido de dificultar uma mais íntima conjugação de esforços e de meios disponíveis. Ao invés, estimula-se a cooperação, consagra-se a existência de um director-adjunto com funções de ligação interpoliciais e fez-se o mais que era viável no âmbito do Ministério daJustiça.

    Em aberto se deixam os problemas relativos a uma eventual intervenção da Polícia Judiciária nos serviços de estrangeiros e de vigilância de fronteiras pela sua íntima conexão com a actividade àquela cometida e cujo êxito não prescinde de uma qualquer sorte de intervenção nesses sectores.

  3. Fácil é concluir que, por ora, a atenção se volveu para aspectos de organização, de que se salientam, como os mais relevantes, a criação de uma direcção central de organização administrativa e informática e de um arquivo central de registos e informações, com funções de tratamento, registo e difusão, à escala nacional, de todas as informações relativas à prevenção e investigação criminal.

    Tornou-se ainda mais expedita a criação de novos departamentos da Polícia Judiciária, para gradual cobertura do território - tem-se como essencial o binómio juízo de instrução criminal-Polícia Judiciária -, tarefa a que será concedida prioridade, logo que os actuais e ancilosados departamentos existentes se revitalizem e aperfeiçoem.

    Cumpre assinalar, com a devida ênfase, que as infra-estruturas da Polícia Judiciária atingiram há muito o seu ponto crítico, havendo que buscar resposta para o relativo prestígio que conserva na excepcional dedicação e brio de parcela apreciável dos seus elementos, que se multiplicam numa luta árdua contra a onda de criminalidade que se regista.

    Funcionários que aliam à experiência uma preparação ministrada pela própria Polícia a nível que ainda recentemente surpreendeu peritos do Conselho da Europa, são dignos, não só de uma palavra de congratulação, como ainda de condições mínimas de trabalho que lhes permitam pôr ao serviço da comunidade, com eficiência e prontidão, as suas potencialidades.

    Não se ignora que os condenáveis excessos policiais, a banir sem contemplações, correm paralelamente com a carência de meios e que estes têm de acompanhar a evolução da criminalidade, que de um fenómeno individual passou a exprimir-se através do crime organizado e da sua perpetração com uso de extrema violência.

    Uma polícia de métodos limpos, respeitadora dos direitos dos cidadãos, precisa, ou melhor, exige a disponibilidade de instrumentos cada vez mais aperfeiçoados e completos. De outro modo, é pura hipocrisia clamar contra tais métodos condenáveis, a menos que seja absolvida da sua ineficácia.

  4. Sem prejuízo de alterações de tomo em quase todos os sectores de pessoal, a carreira de investigação criminal foi objecto, por razões óbvias, de especial atenção, cotando-se, como maior novidade, a possibilidade de acesso, após rigorosa selecção, ao lugar de inspector, do pessoal dos degraus subalternos.

    Foi, decerto, de entre as anunciadas inovações a mais polémica e controversa, quando, bem vistas as coisas, deveria ser encarada como a mais natural e compreensível.

    Não se desconhece que a cultura jurídica, em especial no campo do direito e processo criminal, é ingrediente valioso para a ocupação de cargos de chefia no sector da investigação. Só que à margem das escolas tradicionais aquelas disciplinas se ensinam na Polícia Judiciária, em grau de progressiva especialização, desde o ingresso como agente estagiário. Por outro lado, aliviada a Polícia Judiciária das funções de direcção da instrução preparatória e de representação do Ministério Público como detentor do exercício da acção penal, não se entenderia que se não extraísse a ilação que se impunha - a de dessacralizar os lugares de inspector, como privativos de licenciados em Direito.

    Mesmo assim, foi-se para uma fórmula prudente, de cativação de lugares a licenciados e a pessoal da carreira, concedendo-se aos primeiros um estatuto mais favorável, ao permitir-se-lhes o ingresso directo como inspectores estagiários, a converter, se prestarem provas convincentes, em provimento definitivo.

    A questão não se põe, em termos dilemáticos, entre licenciados e não licenciados.

    Situa-se no prisma da competência, da idoneidade profissional e moral, que não é apanágio exclusivo de uns ou outros, do reconhecimento de que às habilitações literárias clássicas se juntam, no caso concreto da Polícia Judiciária, habilitações que, não constando de currículos académicos, nem por isso são irrelevantes.

    Vem a talhe de foice, como programa a desenvolver em futuro próximo, consignar que já se acha em estudo a criação de estabelecimento adequado, que centralize as acções de formação do pessoal da Polícia Judiciária, ao mesmo tempo que...

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