Crise no setor de transporte aéreo e a responsabilidade por acidente de consumo

AutorRoberto Grassi Neto
CargoMestre em Direito Agrário e Doutor em Direito do Consumidor pela USP
1. O incremento no número de acidentes de consumo e o caos aéreo

Os desastres envolvendo transporte aéreo de passageiros, têm sido, em razão de sua grande repercussão social, apontados como situações emblemáticas de acidentes de consumo. Tal natureza, por si só, faz com que a responsabilidade da empresa de transporte pela indenização, exista objetivamente, independentemente da constatação de serem tais acidentes decorrentes de conduta culposa ou dolosa.

Na história recente de nossa aviação civil, ocupam papel de destaque os acidentes com o Fokker 100 da TAM, no qual faleceram 99 pessoas; com o Boeing 737-800, da Gol Transportes Aéreos, vitimando os 154 passageiros; e o da queda do Airbus A-320, também da TAM, que explodiu com 187 passageiros a bordo.

No caso do acidente do vôo 402 da TAM, consoante o laudo da Aeronáutica, divulgado 14 meses após a queda do Fokker-100, ocorrida a 31.10.1996, o desastre teria se dado em razão da abertura indevida do reverso da turbina em pleno vôo1, 24 segundos após a decolagem do aeroporto de Congonhas (São Paulo), quando o aparelho estava a uma altitude estimada de 150 m. Teria, ainda, contribuído para o desenlace fatal, a falha na reação da tripulação. Oitenta e nove passageiros, seis tripulantes e quatro pessoas em terra perderam a vida.

Na esfera da responsabilidade civil, as indenizações a serem pagas pelas seguradoras às famílias das vítimas chegaram à casa dos US$ 400 milhões, valor da apólice de seguro do Fokker-100 acidentado. A TAM divulgou nota em 31.10.2001 asseverando que:

  1. aproximadamente três meses após o acidente, todos os danos materiais às casas e veículos atingidos teriam sido integralmente indenizados; b) 26 famílias teriam celebrado acordo com a TAM no valor de U$ 145 mil cada, e 32 outros acordos teriam sido firmados com as demais famílias que litigavam contra a TAM, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos; c) 100% dos passageiros e vítimas de solo teriam recebido propostas de acordo, dos quais aproximadamente 80% teriam aceitado o valor oferecido2. Estima-se, contudo, que, passados onze anos da tragédia, cerca de 10% das indenizações não teriam sido pagas ainda, quer por causa de recursos pendentes nos tribunais superiores, quer em razão de divergências quanto à divisão dos valores a serem pagos3. Nesse aspecto, a Associação Brasileira de Parentes e Amigos das Vítimas de Acidentes Aéreos aponta a atuação do Ministério Público, que intervém necessariamente quando existem interesses de menores envolvidos, como um dos principais obstáculos para o recebimento de acordos de maior vulto. Outro fator que contribui para que os familiares das vítimas busquem obter indenizações em Cortes estrangeiras, consiste na relutância dos Tribunais pátrios em estabelecer montantes indenizatórios expressivos4.

Mais recentemente, como acima relatado, outro desastre aéreo comoveu a opinião pública, reacendendo as discussões a respeito do tema; em 29.09.2006, o vôo 1907 da companhia brasileira Gol Transportes Aéreos caiu com 154 pessoas a bordo, após chocar-se, a 37 mil pés de altitude, com um jato executivo Embraer Legacy 600. Segundo apurado nas investigações, a queda decorreu do fato da asa direita e parte da cauda do Boeing 737-800 SFP (Short Field Performance), que partira de Manaus com destino a Brasília, terem sido danificadas pelo winglet da asa esquerda do Legacy.

O relatório da CPI da Crise Aérea, divulgado em 12.07.2007, atribuiu responsabilidade por este acidente a quatro controladores de vôo e aos pilotos do Legacy5.

No âmbito da reparação civil, ganharam destaque as ações de indenização propostas nos Estados Unidos. Em 06.11.2006, dez famílias de vítimas ingressaram com ação cível no Tribunal Federal da Cidade de Nova York, ao qual pediram indenizações compensatórias e punitivas contra a ExcelAire e a Honeywell (fabricante dos transponders e do sistema anticolisão das aeronaves), por negligência. Em 14 de novembro, mais treze famílias acabaram sendo incluídas no processo. Na ação, os autores atribuíram responsabilidade aos pilotos do Legacy, pois estes teriam voado na altitude incorreta, bem como falhado na operação do transponder e na comunicação mantida com o controle de tráfego aéreo. Imputou-se, ainda, culpa à empresa ExcelAire, pois teria falhado na contratação, na seleção e no treinamento dos pilotos, e à Honeywell, pelas falhas de concepção do painel do transponder, uma vez que este pode induzir a tripulação a erros de interpretação e operação. Posteriormente, em 18.12.2006, os pilotos do Legacy, Joseph Lepore e Jean Paul Paladino, foram incluídos como réus no processo. Os pagamentos das primeiras indenizações começaram em agosto de 2007.

No Brasil, o juiz Nicolau Mauro Junior, da 48ª Vara Cível do Rio de Janeiro, determinou que a empresa Gol Linhas Aéreas pagasse cerca de R$ 2 milhões à família de uma das vítimas do vôo 1907. Do total, foi estabelecido que R$ 1,14 milhão seriam devidos a título de danos morais, e R$ 999,4 mil como pagamento de pensão. A empresa aérea, ao contestar a ação, ponderou inexistir culpa de sua parte pelo ocorrido, mas admitiu ser objetivamente responsável pelo ocorrido.

No desastre do vôo 3054 da TAM, ocorrido em 17.07.2007, um Airbus A-320, que era proveniente de Porto Alegre (RS), pegou fogo quando, ao pousar, ultrapassou os limites da pista e colidiu com um depósito da TAM Express existente em frente ao aeroporto de Congonhas, em São Paulo.

Investigações preliminares apontaram que o acidente teria decorrido da concorrência de diversos fatores de natureza diversa: (a) a ausência de ranhuras (grooving) na já extremamente curta pista de Congonhas (apenas 1.940 metros e sem área de escape). Tais ranhuras são destinadas a melhorar o escoamento de água na pista, quando pousos e decolagens ocorrem em condições atmosféricas desfavoráveis, como no dia do acidente, ensejando piso escorregadio; (b) problemas mecânicos com o sistema de propulsão reversa (reverso pinado) na turbina direita (estima-se que no Airbus-A320 a relevância do freio aerodinâmico é de aproximadamente 20%); c) falha humana por parte do piloto; d) falha por parte da companhia aérea TAM e da empresa fabricante do Airbus.

Com efeito, o exame das denominadas "caixas-pretas" (Voice Recorder e Flight Data Recorder) do Airbus revelou que, supostamente por erro do piloto, um dos dois manetes que regulam o funcionamento das turbinas estaria fora da posição quando o avião tocou a pista principal do Aeroporto de Congonhas6.

Pelos manuais da Airbus, o A-320 poderia voar até dez dias mesmo apresentando problemas com um dos reversos. O fabricante, contudo, deveria ter revisto essa norma, uma vez que havia o histórico de dois outros desastres com aeronaves A320 da Airbus, ocorridos respectivamente em março de 1998 nas Filipinas e em 2004 em Taiwan, nos quais foram constatadas falhas idênticas nas operações dos manetes, quando uma das turbinas estava com o reverso quebrado. Ademais, o prazo de dez dias é absurdo, pois ou o perigo existe impondo a adoção de medidas imediatas , ou não. O posicionamento adotado pela Airbus somente seria justificável se, presente o defeito, este pudesse ressurgir apenas após um lapso de dez dias.

A atitude comodista da construtora aeronáutica traduz raciocínio de moral duvidosa, segundo o qual, para não ter prejuízo, a transportadora estaria implicitamente autorizada a operar de modo rotineiro aeronaves defeituosas, ainda que expondo terceiros a risco grave, até que a equipe de manutenção conseguisse agendar o reparo para recolocá-las em condições seguras. Logo após o acidente, curiosamente, o Senhor Ministro da Aeronáutica admitiu perante CPI que não se autorizaria jamais a decolagem de aparelho em tais condições se o Presidente da República estivesse a bordo. O que temos, portanto, é o seguinte sopesar: de um lado a cupidez avara, de outro o desrespeito à vida do cidadão comum.

Teria, ainda, contribuído para o acidente o fato do Airbus voar com quantidade de combustível bem superior à necessária para o trajeto Porto Alegre-São Paulo. Segundo a TAM, a aeronave teria deixado Porto Alegre abastecida com 9,2 toneladas de combustível. Considerando que o A320 não gastaria mais do que quatro toneladas no trajeto, o aparelho teria voado com pelo menos quatro toneladas de querosene em excesso, aí já se descontando a margem de segurança destinada a assegurar autonomia de vôo no caso de imprevistos (adicional de 10% do cálculo de consumo, acrescido da quantidade de querosene suficiente para mais 30 minutos de navegação e deslocamento a outro aeroporto mais próximo).

Em virtude dos Estados cobrarem alíquotas diferenciadas de ICMS do querosene dos jatos7, as empresas, objetivando economizar, passaram a adotar estratégias de abastecimento conforme os preços mais baixos, o que nem sempre coincide com a desejável cautela assecuratória do trajeto. Tornou-se, assim, prática comum por parte das companhias áreas do país pousar em São Paulo com a quantidade máxima possível de combustível para que não tenham que reabastecer a aeronave no Estado, e submeter-se a uma alíquota mais alta.

Conquanto o excesso de querosene armazenado não descumpra nenhuma norma da aviação, trata-se de adicional de risco desnecessário ao vôo, pois quanto mais pesada está a aeronave, maior será o...

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