Do Crime de Corrupção de Substâncias Alimentares ou Medicinais

AutorPedro Correia Gonçalves
CargoJurista

Do Crime de Corrupção de Substâncias Alimentares ou Medicinais1

Pedro CORREIA GONÇALVES2

Preliminares

A escolha deste tema deve-se essencialmente a duas razões: antes de mais, à curiosidade em aprofundarmos o estudo da temática da Corrupção de Substâncias Alimentares ou Medicinais e, por outro lado, ao facto de este tipo de crime levantar algumas questões dogmáticas interessantes, principalmente pelo facto da questão Da Genuinidade dos Produtos lato sensu ser tutelada não apenas pelo Código Penal mas também pelo Decreto-Lei n.° 28/84, de 20 de Janeiro, que regula as Infracções Anti-Económicas e contra a Saúde Pública.

Considerando que a configuração típica do crime de "Corrupção de substâncias alimentares ou medicinais" não foi substancialmente alterada desde a versão original do Código Penal de 1982, optámos por não fazer um percurso histórico-legislativo aprofundado do crime, antecedendo a exegese do preceito que actualmente o prevê o art. 282.° do Código Penal (versão de 1995). Todavia, pontualmente, e no decurso da análise do tipo incriminador, serão referidas as alterações relativamente ao texto anterior, assim como as consequências que daí se podem retirar. Por outro lado, relativamente a questões mais discutidas, serão também citadas algumas decisões jurisprudenciais consideradas paradigmáticas.

No que diz respeito à estrutura organizativa do presente artigo, e para melhor analisarmos o objecto de estudo, começaremos por identificar o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora, que é a "chave" para a interpretação dos requisitos da norma penal. Em seguida, faremos uma incursão pelo tipo objectivo de ilícito, abordando os aspectos relativos ao objecto da acção e à conduta típica, e pelo tipo subjectivo de ilícito do crime de Corrupção de substâncias alimentares ou medicinais, com o intuito e o ensejo de identificarmos e apreendermos os vários requisitos do tipo legal.

É esta a estrutura do nosso estudo e a ele dedicaremos as próximas páginas que pretendemos que sejam claras e sucintas, isto, se a tanto nos "ajudar o engenho e arte"3.

1 O Bem Jurídico tutelado

A identificação do bem jurídico protegido com determinada incriminação prevista no Código Penal constitui questão essencial e primordial quando se enceta o estudo de um tipo legal4 pois, como escreve Jescheck, "o bem jurídico constitui o ponto de partida e a ideia que preside à formação do tipo"5. Com efeito, e numa perspectiva puramente material, não há crime sem bem jurídico. E, como afirma Germano Marques da Silva, "não há norma penal, proibitiva ou impositiva, que não se destine a tutelar bens jurídicos"6. Esta é, indubitavelmente, uma decorrência do chamado "Princípio da Intervenção Mínima" do Direito Penal, hoje consagrado e imposto pelo n.° 2, do art. 18.° da Constituição da República Portuguesa (CRP), nos termos do qual "a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos". Significa isto que "o direito penal só deverá funcionar, só deverá intervir, só deverá criminalizar, só deverá criar crimes, puni-los, etc., quando isso seja absolutamente essencial à sobrevivência da comunidade"7 ou, para utilizar a expressão lapidar de Germano Marques da Silva, "o Direito Penal há-de reduzir a sua intervenção só aos casos em que seja absolutamente necessária em termos de utilidade social geral"8.

Sobre o conceito de "bem jurídico" muito haveria a dizer pois "talvez poucas expressões sejam mais caras e ocupem mais espaço na literatura contemporânea votada à política e à dogmática jurídico-penal do que a expressão bem jurídico"9. Todavia, por razões ditadas pela natureza do presente artigo, deixaremos o tratamento dessa questão para uma ulterior oportunidade. Para atingir o nosso propósito, basta tão só ter presente que a identificação do bem jurídico tutelado pela incriminação, ou seja, a identificação do objecto jurídico ou do interesse que a lei visa proteger ao cominar uma pena para a sua violação, constitui o ponto de partida para a correcta identificação e interpretação dos elementos constitutivos da norma penal em causa que, no nosso caso, é o art. 282.°, n.° 1, al. (s) a) e b) do Código Penal (doravante CP).

Para a identificação do bem jurídico tutelado pelo art. 282.°, n.° 1 do CP é importante aferir, em primeiro lugar, da posição da norma no âmbito organizativo do Código, isto é, há que identificar a posição que a norma legal ocupa no contexto da sistematização do CP, e posteriormente atender à própria formulação do tipo legal.

O crime de Corrupção de substâncias alimentares ou medicinais (art. 282.°) encontra-se previsto no Capítulo III ("Dos crimes de perigo comum") do Título IV ("Dos crimes contra a vida em sociedade") da Parte Especial do CP. A primeira conclusão a retirar, é que estamos perante um crime de perigo comum. Antes de aferirmos o alcance do conceito de "crime de perigo comum" convém fazer algumas considerações prévias. Como anteriormente já havíamos afirmado, a configuração típica do crime de "Corrupção de substâncias alimentares ou medicinais" não foi substancialmente alterada desde a versão original do Código Penal de 1982. Todavia, uma das modificações determinadas pela Reforma de 1995 foi a desagregação do tipo legal em estudo do chamado grupo dos "crimes contra a saúde pública". Até então o crime de Corrupção de substâncias alimentares ou medicinais era tido como um "crime contra a saúde pública" dito na altura "incolumidade pública10" (isto à semelhança do que acontecia e acontece em grande parte da legislação penal europeia e não só)11 , sendo que, e nesse caso, o bem jurídico tutelado era precisamente a "saúde pública", isto é, pretendia-se "proteger a incolumidade pública contra os factos de tornar nocivos à saúde géneros destinados ao consumo, ou águas destinadas à bebida e contra os factos de circulação daqueles géneros"12. Já assim se entendia à luz do CP de 1886, que dispunha no art. 251.° que "aquele que de qualquer modo alterar géneros destinados ao consumo público, de forma que se tornem nocivos à saúde, e os expuser à venda assim alterados, e bem assim aquele que do mesmo modo alterar géneros destinados ao consumo de alguma ou de algumas pessoas, ou que vender géneros corruptos, ou fabricar ou vender objectos, cujo uso seja necessariamente nocivo à saúde, será punido com prisão de dois meses a dois anos, e multa correspondente, sem prejuízo da pena maior, se houver lugar"13. O reconhecimento de uma classe de "crimes contra a saúde pública", se bem que remonte a Filangieri, contou com o grande apoio de Carrara, que defendia a existência de "uma classe especial de crimes cuja preponderante objectividade jurídica se concretiza na saúde pública. Ao interesse que tem o indivíduo de que não seja prejudicada a sua saúde, quer por acção directa de mão inimiga, quer pela infecção das substâncias (ar, água, alimentos) que são a remanescente e indispensável condição de subsistência de suas forças vitais, corresponde um direito particular. Mas quando tais substâncias se apresentam relacionadas a um grande número de indivíduos reunidos em estável consociação, o direito individual vem a converter-se em direito social ou comum a todos... O vaso d'água destinado a um só, o ar do meu aposento, o alimento que para mim só é preparado, serão objectos de um direito que me é exclusivo. Mas, se se tem em conta o ar que circunda uma colectividade de pessoas, a água que a todos é destinada para desalteração da sede, os víveres expostos à venda em público, de modo que possam vir a ser alimento de indeterminado número de consociados, é manifesto que em tais condições o ar, a água e os víveres tornam-se objecto de um direito social, atinente a cada um dos consociados, bem como a toda a colectividade. (...) O direito à preservação da saúde pública nasce, portanto, comum a todos os consociados, em razão do facto mesmo da consociação"14. Antes de se adoptar o critério "saúde pública" como critério de classificação ou como referência axiológica deste tipo de crimes, os mesmos eram tão só vistos como subespécies ou de crimes de falsidade, ou de crimes contra a propriedade, ou ainda de crimes contra pessoas. Hoje, em grande parte das legislações penais são considerados como uma subclasse dos "crimes contra a incolumidade pública" uma vez que, como afirma Nélson Hungria, "o dano efectivo ou perigo de dano à saúde pública é que os distingue de certos crimes patrimoniais ou contra a economia popular"15. Em 1995, o legislador português optou, como já mencionámos, por retirar o crime de Corrupção de substâncias alimentares ou medicinais do grupo dos crimes contra a saúde pública16. Ao fazê-lo, isto é, "ao erradicar a saúde pública do domínio dos crimes de perigo comum, fez com que o desvalor das diversas incriminações deixasse de passar pelo crivo de um bem jurídico colectivo e, ao colocar o acento tónico de um tal desvalor no perigo concreto, exigiu o estabelecimento de um nexo de imputação entre este e o desvalor da acção. A aptidão da acção afere-se agora, não já pelos efeitos da mesma sobre a saúde pública, enquanto bem colectivo, de largo espectro, prévio aos individuais, mas exclusivamente pelo modo como a acção se projecta sobre a vida ou a integridade física de um universo de pessoas"17.

Já por mais de uma vez foi referido que o crime de Corrupção de substâncias alimentares ou medicinais é um...

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