A regulação do sistema privado de saúde brasileiro e o código de defesa do consumidor
Autor | Carlos Schoembakla - Michélle Hartmann |
Cargo | Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia pela UniBrasil - Curitiba/PR, Advogado em Curitiba/PR - Brasil, Advogado em Curitiba/PR. - Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia pela UniBrasil - Curitiba/PR e Doutoranda pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - Portugal, Advogada em Curitiba/PR. |
Páginas | 123-142 |
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Revista Portuguesa de Direito do Consumo
A REGULAÇÃO DO
SISTEMA PRIVADO DE SAÚDE BRASILEIRO E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
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THE REGULATION OF BRAZILIAN PRIVATE SYSTEM OF HEALTH AND DEFENSE CODE OF THE CONSUMER
Carlos Eduardo Dipp Schoembakla
Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia pela UniBrasil – Curitiba/PR, Advogado em Curitiba/PR – Brasil, Advogado em Curitiba/ PR.
Michélle Chalbaud Biscaia Hartmann
Mestre em Direitos Fundamentais e Democracia pela UniBrasil – Curitiba/PR e Doutoranda pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
– Portugal, Advogada em Curitiba/PR.
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RESUMO
O artigo pretende abordar a problemática da falta de regulação efetiva do Sistema Privado de Saúde no Brasil que enseja a inter-pretação civil-constitucional dos contratos de seguro de saúde como meio de proteger o consumidor-segurado. A problemática da negativa de cobertura contratual é enfrentada por meio da judicialização, como forma de controle indireto da omissão administrativa, com a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor para a proteção dos direitos fundamentais à vida e a saúde.
Palavras Chave: Direito à Saúde – Contratos – Planos de Saúde
– Código de Defesa do Consumidor
Abstract
The article intends to approach the problem of the regulation lack accomplishes of the Private System of Health in Brazil that waits for the opportunity the civil-constitutional interpretation of contracts of secures. The problem of the refusal of contractual covering is faced by means of the judicialization, as form of indirect control of the administrative omission, with the applicability of the Code of Defense of the Consumer for the protection of the fundamental rights to the life and health.
Key words: Right to Health, Contract, Health Plans, Code of Defense of the Consumer.
1. INTRODUÇÃO
Com o advento da Constituição Federal de 1988, a saúde passou a ser um direito fundamental de todos os cidadãos e, ao mesmo tempo, um dever precípuo do Estado. No
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entanto, o constituinte, prevendo a impossibilidade do Estado suprir sozinho este dever para com o bem estar e desenvolvimento da qualidade de vida dos seus cidadãos, no que diz respeito a saúde previu, no próprio texto constitucional, autorização para a iniciativa privada prestar serviços de assistência a saúde.
É justamente em decorrência desta abertura à iniciativa privada para exploração da prestação de serviços de saúde que surge a necessidade de regulação do setor e regulamentação dos modelos de contratos firmados entre prestadores de serviços e consumidores1, principalmente, por conta da entrada no mercado de grandes operadoras de planos (ou seguros) de saúde, ligadas a grupos financeiros e da disseminação dos contratos “por adesão”.
Destarte, como restará demonstrado, diante da necessidade de regulamentação dos contratos, primeiramente, foi criada a Lei Federal nº 9.656/1998, que estabeleceu regras de criação e permanência dos planos de saúde no mercado e instituiu proteção contratual ao consumidor. Entretanto, esta não se ateve a questão central, qual seja, a regulação propriamente dita, em outras palavras, não disciplinou o controle e fiscalização por parte do Estado. Desta forma, permaneceram as arbitrariedades e a incidência de cláusulas abusivas nos contratos.
1Veja-se que a regulação e a regulamentação não serão tratados como sinônimos. A regulação está associada a um sistema de influência, de orientação e de controle de processos e comportamentos ou condutas de pessoas, realizada através de comandos, diretrizes e recomendações (dimensão positiva) ou por meio de limitações e restrições (dimensão negativa), podendo ter como instrumento a edição de normas (mas não exclusivamente normas, admitindo-se também outras formas como os contratos). (GONÇALVES, Pedro. Regulação administrativa e contrato. In: MIRANDA, Jorge (coord.). Estudos em Homenagem ao prof. Doutor Sérvulo Correia. vol. II. Coimbra: Almedina, 2010. p. 987.)
Tal sistema de influência, controle e orientação para estabelecer a regulação de um determinado setor da vida comunitária, deve passar por um processo de cinco fases: (i) identificação de uma matéria como objeto de regulação; (ii) negociação, discussão e edição da regra regulatória; (iii) implementação do disposto na regra aos regulados, pelos reguladores; (iv) acompanhamento e controle da aplicação da regra; e, (v) imposição, pelo regulador, do cumprimento e reação ao descumprimento da regra. Nesse sentido, a regulamentação faz parte do processo regulatório e, justamente por isso, com ele não se confunde.
Portanto, na verdade, para a regulação tornar-se concreta e um conceito juridicamente operativo, precisa passar pelas etapas do referido processo, em particular, pela regulamentação (legislativa ou administrativa – atos administrativos, contratos, regulamentos) decorrente dos atores públicos. Com efeito, a regulação pública se propõe a realização de interesses públicos, visa o bem-estar da comunidade por meio de intervenção da administração pública na atividade econômica que se desenvolve no mercado. (Ibidem,
p. 992)
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Diante deste cenário, como ainda persistia a condição de hipossuficiência dos segurados (consumidores) frente às operadoras dos planos de saúde, houveram mais tentativas de regulação do setor, com a criação pela Lei 9.961/2000 da Agência de Saúde Suplementar – ANS, órgão da Administração Pública, responsável por regular e fiscalizar o mercado dos planos de saúde no país. O que corresponde às exigências do Estado Democrático de Direito, cuja administração está voltada para a criação de condições favoráveis para o livre e bom desenvolvimento da sociedade, por meio do planejamento e regulação de atividades.
Com efeito, é dentro desta realidade de regulação e regulamentação do setor privado da saúde que se irá apresentar a posição que se encontram os segurados dos planos de saúde brasileiros, que muitas vezes têm de recorrer à instância judicial para dirimir os conflitos entre as cláusulas contratuais abusivas (próprias da autonomia dos entes privados) e os direitos assegurados pelo Código de Defesa do Consumidor e pela Constituição Federal de 1988 (particularmente, o direito fundamental à vida e à saúde).
Assim, pretende-se que este estudo seja um contributo para uma melhor regulação econômica e social do setor privado de saúde, pois não se tem como negar o relevo que a iniciativa privada tem no Brasil, por conta da insuficiência, dificuldade de acesso e ineficiência da saúde pública e o tendencial aumento da sua relevância em Portugal, frente à crise econômica.
2. O DIREITO À SAÚDE E OS PLANOS DE SAÚDE NO BRASIL: MARCOS REGULATÓRIOS
A Constituição Federal de 1988, seguindo os passos da Declaração Universal de Direitos Humanos2, situa-se como marco jurídico da institucionalização da democracia e dos direitos humanos no Brasil, consagrando, também, as garantias de direitos fundamentais
2A Declaração Universal dos Direito Humanos, adotada em 10.12.1948, pela Organização das Nações Unidas resgatou os ideais da Revolução Francesa de igualdade, liberdade e fraternidade, tornando-se um marco de grande relevância, por promover o reconhecimento universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. A declaração delineia tanto os direitos civis e políticos (art. 3° a 21) como os direitos sociais, econômicos e culturais (art. 22 a 28).
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e a proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira, ao asseverar os valores da dignidade da pessoa humana3, como imperativo de justiça social.
No sistema constitucional positivo brasileiro, todos os direitos sociais são fundamentais, tenham sido eles expressamente ou implicitamente positivados, estejam eles sediados no Título II da Constituição Federal de 1988 (direitos e garantias fundamentais) ou dispersos pelo restante do texto constitucional ou mesmo que estejam (também expressa e/ou implicitamente) localizados nos tratados internacionais regulamente firmados e incorporados pelo Brasil.4O direito à saúde percorre ainda diversos pontos do Texto Constitucional. É mencionado expressamente como um direito social (art. 6º, caput) e como garantia no âmbito das relações de trabalho (art. 7º, XXII). A Constituição também trata de estabelecer competências, comuns e concorrentes, para a União, Estados e Municípios para dar consecução às políticas publicas de saúde (arts. 23, II; 24, XII; e 30, VII), fixando sua forma de financiamento (arts. 165, III; 167, IV; 195; 198, §§ 1o a 3º; e 212, §4º), bem como determina a adoção de programas particularmente voltados para crianças e adolescentes, idosos e portadores de deficiência (arts. 208, VII; e 227, §1º).
Saúde, portanto, é um direito fundamental social básico, fundado nos princípios da universalidade, igualdade e na dignidade da pessoa humana, que deve ser prestado, precipuamente, pelo Poder Público, primando-se pela eficiência dos serviços, pela racionali-
3“A dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e...
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