A jurisdição administrativa

AutorArnaldo Ourique
Cargo do AutorMestre pela Faculdade de Direito de Lisboa

5.1 A jurisdição administrativa é muito ampla – e é razoável defender que de outro modo seria pouco desejável: é um órgão do Estado na região autónoma e tem todo o sentido que seja aproveitado o seu estatuto administrativo. Há quem pense que diminuindo as funções estaduais do Representante da República na região autónoma diminuiu a importância do cargo e, concluem, assim isso dignifica a região autónoma. Na base dessa ideia, como se percebe, está uma concepção simplista da autonomia: julga-se que funcionando apenas com os órgãos autonómicos se é plenamente autónomo. E não há pensamento mais errado do que esse. Pois se a própria autonomia é um veio dos princípios da descentralização e da desconcentração, é elementar que essa autonomia não se encerre ela própria contra os princípios que a sustentam.202

Do outro lado, estamos nós: entendemos precisamente o contrário, não no sentido do centralismo e controlo estadual, mas na base de que os sistemas funcionam com a participação de todos e não apenas de alguns. Mas não só. Esquece-se que o Estado, enquanto pessoa colectiva e também no sentido abrangente do termo, está no território do país – que inclui as regiões autónomas. Por um lado, há todo um conjunto de instituições fundamentais da administração estadual, como sejam os serviços fiscais,203 os serviços de segurança,204 os serviços de justiça,205 os serviçosde natureza militar,206 do controle aéreo207 e marítimo,208 e uma panóplia de outros serviços públicos estaduais,209 que, estando nas regiões autónomas, não fazem parte da estrutura organizativa dessas regiões. Mas não só. Na aplicação de medidas estaduais concretas, já não de natureza administrativa, mas política, quem haveria melhor para assegurar um conjunto de actos administrativos, por exemplo, em matéria eleitoral?

5.2 Mas o cargo, enquanto entidade pública, também tem uma jurisdição própria e inalienável no âmbito do funcionalismo. Muitas leis determinam, na generalidade, que os órgãos e as entidades do Estado, no exercício das suas funções, devem pautar-se pela neutralidade, pela imparcialidade e pela igualdade. Sendo o Representante da República também ele um órgão do Estado, cabe-lhe aqui uma vasta jurisdição administrativa além da que lhe advém directa e especificamente de uma lei sobre certa matéria. Ou seja, numa panóplia de funções meramente administrativas, o cargo tem uma vasta jurisdição, por exemplo, em visitas de cortesia, em pedidos institucionais (em milhares que se podem imaginar da dialéctica entre o público e a sociedade civil), em participação de actividades culturais ou científicas, em utilização de publicidade nos imóveis sujeitos à sua tutela institucional.

Da ordem jurídica, vejamos os exemplos:

A) jurisdição eleitoral

5.3 Na região autónoma é ao Representante da República que cabe assegurar a administração eleitoral em todas as eleições:210 para o Presidente da República,211 para a Assembleia da República,212 para as assembleias legislativas,213-214 para as autarquias locais215 e para o Parlamento Europeu,216 e ainda para as questões da administração do referendo.217-218

5.4 É uma responsabilidade administrativa que depende do que a lei estabelecer especificamente e do que as autoridades na área eleitoral determinam. Para as eleições autárquicas, por exemplo, o Representante da República toma conhecimento do sorteio das listas de candidaturas, do apuramento dos resultados eleitorais e do apuramento geral;219 decide, em recurso, sobre os locais de funcionamento das assembleias de voto e faz a marcação da votação complementarpor causas objectivas de necessidade de alterar a data por ocorrência grave ou calamidade pública no território da autarquia;220 mas, por remissão, desenvolve as capacidades do Governador Civil, como seja, por exemplo, à guarda da documentação de arquivo e destruição dos documentos irrelevantes e a marcação de eleições intercalares.221 E é mantido informado pelas forças de segurança.222

5.5 No caso das eleições para as assembleias legislativas, embora as duas regiões autónomas sejam iguais no sistema constitucional, embora a Lei Orgânica lhe confira referência,223 não o são na lei eleitoral dos Açores, embora o seja na da Madeira. Nas eleições açorianas o cargo não tem expressão administrativa, todas as funções estão centradas no membro do governo regional que tem a seu cargo a matéria eleitoral.224

5.6 No caso das eleições madeirenses, são atribuídas muitas funções ao Representante da República, designadamente preparar e determinar as instalações da sala de voto, decidir recurso a título definitivo, diálogo e compensação com os órgãos de comunicação, reconhecimento da impossibilidade da realização do voto nos casos que a lei indica bem como o seu adiamento, a impressão do boletim de voto e o seu envio aos presidentes de câmara, designa os presidentes das secções de voto para a assembleia do apuramento geral, conserva certos documentos;225 é-lhe dado conhecimento pelo tribunal das listas de candidaturas, do seu sorteio, das listas definitivas, pelos partidos políticos das desistências, pelos presidentes de câmara da nomeação dos membros das mesas eleitorais;226 comunica com a Comissão de Verificação de Poderes do parlamento regional, emite certidões a pedido doscandidatos ou mandatários, com o Tribunal Constitucional,227 e também com a polícia.228

5.7 Este distanciamento de regimes é emblemático: demonstra a mentalidade das duas diferentes sociedades, a Madeira da dos Açores, que o são de facto. Parece que nos Açores há um receio do Representante da República ou um afastamento da figura nas funcionalidades dos órgãos autonómicos; na Madeira, pelo contrário, como vimos, quer-se que o Representante da República participe e de maneira muito particular. Claro que as duas leis são da Assembleia da República; mas também se sabe que são leis com cunho participativo das regiões, tanto mais que são matérias sujeitas obrigatoriamente à audição.

5.8 Nesta matéria, portanto, o Representante da República detém uma vasta jurisdição administrativa; não a tem nos Açores, mas tem-na e de forma profunda na Madeira. Aliás, nesta matéria representa ele o Estado em funções não só de domínio administrativo, mas também financeiro: é ele que está encarregue da impressão dos boletins de voto, cujos custos são do Estado e cuja impressão é da Imprensa Nacional-Casa da Moeda.229

5.9 Esta jurisdição administrativa em matéria eleitoral é uma criação recente: só em 2006 para a lei eleitoral para o parlamento da Madeira. Isso é indicativo do que acima dissemos sobre a aceitação por parte da região autónoma da figura com alguma naturalidade?, ou uma imposição estadual? Os trabalhos preparatórios da lei não nos dão uma resposta clara: dos quatro projectos de lei, apenas um menciona o cargo; ou seja, a construção da actual lei foi sendo construída através do trabalhodas comissões, e por influência política conforme se percebe do andamento do procedimento.230

5.10 Que dizer desta ampla jurisdição administrativa no caso da Madeira? Ampla, como se viu, porque não se limita a aspectos de actos meramente administrativos: vai mais longe, porque tem aqui também o poder de decidir de recurso a título definitivo em matéria de desdobramento de assembleias de voto.231 Mas para além destas designações legais, a jurisdição administrativa acaba sempre por ir um pouco mais além: na aplicação da lei, as dificuldades operacionais colocam na mão dos intervenientes a possibilidade de ajuizar e a decidir em muitos aspectos que a lei não alcança. E, nesse sentido, é um importante elemento funcional. As diferenças de regime entre as duas leis, uma para os Açores e outra para a Madeira, não têm justificação técnica; mas é admissível, sendo as regiões diferentes, e mesmo que o não fossem, justificam-se modelos diferentes em matérias e procedimentos próprios da autonomia na maioria das situações.

Mas porque motivo nos Açores são desenvolvidas funções pelos membros de governo que tem a seu cargo a matéria eleitoral,232 e na Madeira essas mesmas funções são pelo Representante da República? As coisas assim como estão para a Madeira, em certo sentido, dignifica o instituto da autonomia: um membro do governo é o equivalente ao Governador Civil, figura que representa o Estado enquanto pessoa colectiva,233 enquanto que o Representante da República representa a República portuguesa; mas por outra banda, há um outro sentido: nosistema autonómico no seu sentido mais amplo funcionam apenas órgãos da organização própria da região autónoma, separando-se ainda mais do Estado enquanto entidade soberana, enquanto que na Madeira intervêm o Representante da República que, portanto, neste sentido, intervêm com a organização autonómica. São duas posições bem distintas neste âmbito do sistema eleitoral para o parlamento: nos Açores, não há intervenção directa do Representante da República no funcionamento administrativo das eleições, mas na Madeira há. São dois modelos distintos: num caso há intervenção do Estado enquanto entidade soberana, noutro tudo se passa entre a região autónoma e a autoridade nacional para as eleições, a Comissão Nacional de Eleições.

5.11 Em matéria de eleição presidencial, pelo regime jurídico verifica-se que há uma jurisdição administrativa do Governador Civil234 que, nas regiões autónomas, são os membros do governo regional que tem a seu cargo as matérias eleitorais,235-236 designadamente receber as candidaturas e fazer a sua publicação em editais, tomar conhecimento da designação dos membros das mesas das assembleias de voto, publicitar por edital dos resultados, guardar a documentação do apuramento eleitoral, determinação do local de voto e tomar conhecimento das decisões dos tribunais.237. E a partir de 1995, o antecessor do cargo de Representante da República, o...

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