Alta tensão

AutorMário Frota

Universidade de Lisboa (1978 1980)

Universidade de Coimbra (1980 1995)

Université de Paris XII (1991 2006)

apDC Direito do Consumo -, sociedade científica

"O direito do consumo é, de modo simples, a via de retorno a um direito das pessoas, a um direito social hoc sensu, por contraposição a um direito civil que, na perspectiva imobilística que o exorna, é fonte de iniquidades e de injustiças formalmente enroupadas em pretensas molduras de justiça e equidade e se dissolve na ferrugem que dele apossa em absoluto."

Mário Frota

"...

Firme convicção é a nossa de que as Instâncias, e agora o Supremo, não tiveram minimamente em conta a protecção do consumidor lesado, valor fundamental em que assenta o direito do consumo, de raiz comunitária, como é o caso.

Aliás, por fim, permita-se-nos a liberdade de expressão:

O direito do consumo ainda não sensibilizou, de vez, os operadores judiciários."

NEVES RIBEIRO

conselheiro

vice-presidente do STJ

PARECER

Requerem os recorrentes parecer no diferendo que os opõe à EDA, pelos efeitos nefastos decorrentes da implantação de linhas de alta tensão em atravessamento da propriedade e, o que é mais, da habitação permanente que é o centro da sua vida familiar em Pico da

Água, Pico da Pedra, Ribeira Grande.

Presentes as peças relevantes do processo, mormente o parecer em que os autos de medição se incorporam do cientista Lemos Antunes, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra e da sociedade científica para a Promoção e Desenvolvimento da Engenharia Electrotécnica, que presidiu à Conferência Internacional "Dos Campos Electromagnéticos, Saúde e Ambiente", o certame de maior projecção que no domínio de que se trata houve lugar em 2006 e o laudo pericial do Prof. Campelo Calheiros, catedrático da Universidade da Beira Interior, cumpre emitir parecer:

I Da factualidade

Dão-se como reproduzidos os autos de medições de fls. do relatório pericial.

Do relatório a que se alude parece ainda, no passo de que se trata, de sublinhar:

"Mereceu também alguma preocupação o comportamento do terreno envolvente face a situações de descarga atmosférica, nomeadamente em relação a eventuais valores de tensões de passo que possam pôr em risco a vida das pessoas que vivem na habitação, em particular pessoas ou crianças a brincar no exterior, bem como de animais domésticos.

Admitindo situações de descarga atmosférica, devidas a nuvens de trovoada de carga predominantemente negativa, com os postes ligados à terra com eléctrodos de terra do tipo vareta de cobre, cilindro enterrados no solo com uma resistividade equivalente de 500 Ohm.m, encontram-se valores proibitivos para a tensão de passo. Estas tensões correspondem à tensão eléctrica entre 2 pontos do solo a 1 m de distância. Cada Linha de AT tem um dos apoios no terreno que é propriedade da família Bizarria, sendo um deles mesmo "colado" ao Anexo.

Assim, no caso de haver queda de raio eléctrico em cabo de guarda, irá haver lugar ao desenvolvimento de tensões de passo perigosas que colocam em risco a vida das pessoas e animais que circulem pela zona.

Há ainda a referir que em situações de defeito, por exemplo curto-circuitos, serão desenvolvidas tensões de contacto perigosas, eventualmente agravadas pelo desenvolvimento de sobretensões eléctricas adicionais, devidas à influência da capacidade distributiva em relação à terra."

II Da perigosidade de actividades de um tal jaez e da tutela do valor da vida humana

Consabido é que a condução de energia eléctrica em alta tensão, por linhas aéreas, se tem como actividade perigosa.

Registe-se que o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão recente de 25 de Março de 2004 (relator: Ribeiro de Almeida), sufragou o que o vulgo intui e considera:

I Uma actividade deve ser classificada como perigosa quando tenha aptidão para produzir danos resultantes da sua própria natureza ou da natureza dos meios que se empregam.

II A condução de energia em alta tensão por fios aéreos é uma actividade perigosa.

... ...

E que o ordenamento jurídico consagra de forma inequívoca em múltiplos dispositivos.

Ademais, as repercussões em domínios outros da actividade perigosa que se consubstancia na passagem de linhas de alta tensão por prédios, seja quem for o seu titular, é susceptível de atingir os 100% de desvalorização, já que constituem perigo para quem se expõe aos campos electromagnéticos gerados.

A tal propósito, e por todos, vide o acórdão da Relação do Porto (relator: Gonçalves Vilar), cujo sumário reza o seguinte:

"I. As linhas de alta tensão (LAT) emitem radiações electromagnéticas que podem constituir perigo para a saúde de quem permanentemente lhes fique exposto, vivendo sob sua influência.

  1. ...

  2. Da perigosidade para a saúde pública, decorrente dos campos electromagnéticos (CEM) gerados pelas LAT, tem de concluir-se que é de 100% a desvalorização das parcelas dotadas de aptidão aedificandi, restando o valor residual de terrenos para outros fins."

No ordenamento distingue-se, a outros propósitos o perigo do risco, como se aduzirá em passo subsequente.

No que tange à análise do risco, importa conceituar: mais não é do que um processo constituído por três componentes interligados:

Ý a avaliação,

Ý a gestão e

Ý a comunicação do risco.

A avaliação dos riscos é um processo de base científica constituído por quatro fases essenciais:

- identificação do perigo

- caracterização do perigo

- avaliação da exposição

- caracterização do risco

Perigo é, por extrapolação do que prescreve o Regulamento CE 178/2002, de 28 de Janeiro de 2002, do Parlamento Europeu e do Conselho, um agente biológico, químico ou físico presente no produto de que se trata (e a energia eléctrica é inequivocamente um produto) com potencialidades para provocar um efeito nocivo para a saúde.

Por risco se entende, de harmonia com o conceito neste passo recortado, "uma função de probabilidade de um efeito nocivo para a saúde e da gravidade desse efeito, como consequência de um perigo".

Elementar é que no cosmos jurídico no quadro do universo jurídico conceitos como os que precedem se insinuem e estratifiquem de forma a conferir-se a actividades de distinta natureza adequado enquadramento. Já que não é crível que se ignore a projecção aérea de linhas de alta tensão se subsume na noção de actividades perigosas com particular apetência para "provocar efeitos nocivos para a saúde".

A gestão dos riscos é o processo contradistinto da avaliação, que consiste em ponderar alternativas políticas (ou, quiçá, técnicas ou tecnológicas que as suportarão), em consulta com as partes interessadas, tendo em conta a própria avaliação dos riscos e demais factores legítimos, seleccionando, se necessário, opções adequadas de prevenção e controlo.

A comunicação dos riscos consiste no "intercâmbio interactivo, no decurso do processo da análise de riscos, de informações e pareceres relativos a perigos e riscos, factores relacionados com riscos e percepções de risco, entre avaliadores e gestores dos riscos, consumidores, tecido empresarial coenvolvente, se for o caso, as comunidades académico-científicas e demais interessados em que se inclui o esclarecimento fidedigno dos resultados da avaliação dos riscos e das decisões da gestão dos riscos".

Se nos detivermos na comunicação dos riscos, na sua essência e na vertente do consumidor, o processo radica em uma informação criteriosa a dispensar ao visado ou visados.

Como enfaticamente se proclama no Livro Branco que subjaz ao Regulamento Europeu noutro plano referenciado, "a comunicação dos riscos não deve consistir numa transmissão passiva de informações, mas sim ser interactiva, implicando um diálogo e uma resposta por parte de todos os intervenientes".

A informação séria, objectiva, rigorosa, representa de análogo modo direito fundamental do consumidor com assento, pois, na Constituição da República, no que nos toca. De que decorre, aliás, a obrigação geral de informação a que nas relações jurídicas de consumo (nos actos e nos contratos de consumo ou equiparáveis) se adscreve imperativamente o predisponente ou o sujeito activo que, como no caso, dispõe de um autêntico "jus imperii".

Deveres principais, que não a latere, que pelo poder autocrático dos monopólios naturais ou de facto se negligenciam ou, o que é mais, se escamoteiam "naturalmente"...1

E, na vertente hipótese, revela-se um absoluto desprezo pelos sacrossantos direitos dos cidadãos-consumidores, já que o processo de análise do risco para que aponta a Resolução da Assembleia de 3 de Agosto de 2002 se não observou, antes se violou grosseiramente elementares prescrições plasmadas no Regulamento de Segurança de

Linhas Eléctricas em Alta Tensão, como avulta abundantemente das medições de que se faz eco o relatório de perícia, da autoria do cientista Lemos Antunes, da Universidade de Coimbra e da sociedade científica para a Promoção e Desenvolvimento da Engenharia Electrotécnica.

E, no entanto, outras soluções se descortinariam, ainda que eventualmente mais onerosas, porque a preservação da saúde...

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