Actos dos magistrados

AutorHelder Martins Leitão
Cargo do AutorAdvogado
Páginas75-104

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Dever de administrar justiça

É este de longe, o mais importante dos actos a praticar pelos magistrados.

Por isso, o empolamos e inserimos na dianteira dos mais.

Todo o cidadão tem acesso ao direito e aos tribunais.127

A este direito corresponde uma obrigação: de lhe ser administrada justiça.

Trata-se até de um direito inscrito na Constituição, no n.º 1, do art. 20.º:128

«... a todos é assegurado o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.»

A infracção do dever de administrar justiça, apelida-se de denegação de justiça.

O que, aliás, pode mesmo ser punido, criminalmente, com pena de prisão até 2 anos ou multa até 120 dias.129

O princípio que afasta a denegação da justiça, tem mesmo raízes bem longínquas, faz parte da cultura jurídica, é um princípio imanente e alicerça-se na determinação da função da magistratura: «os magistrados judiciais não podem abster-se de julgar com o fundamento na falta, obscuridade ou ambiguidade da lei, ou em dúvida insanável sobre o caso em litígio, desde que este deva ser juridicamente regulado.» É este o texto que hoje decorre da fixação do que é a função da magistratura (art. 3.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais), que, aliás, permanece inalterável em relação a anteriores textos legislativos.

Pauta-se assim a actividade do juiz pelo princípio da legalidade, não fora o inserto no n.º 1 daquele preceito, que estabelece o ónus, para a magistratura judicial, de «administrar a justiça de acordo com as fontes a que, segundo a lei, deva recorrer e fazer executar as suas decisões.»

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Reflicta-se que a questão da legalidade, colocada nestes termos, não apresenta hoje os mesmos parâmetros de discussão. É que à preocupação de vedar ao juiz a prática de actos discricionários, assistirá hoje a preocupação de incutir juízos de valor, de equidade, no esforço de tornar a justiça actual e, portanto, eficaz. A preocupação é hoje a observância da lei não desligada do contexto sócio-cultural em que a mesma se aplica.

Vem a propósito, mencionar o valor conferido à equidade pela lei substantiva que a inclui entre as fontes do direito.

O art. 4.º do Código Civil abre um leque, ainda que restrito, de recurso à equidade:

a) quando haja disposição legal que o permita;

b) quando haja acordo das partes e a relação jurídica não seja indisponível;

c) quando as partes tenham, previamente, convencionado o recurso à equidade, nos termos aplicáveis à cláusula compromissória.

Em síntese e estendendo um pouco mais a ideia que fica do atrás exposto, dir-se-á que há denegação de justiça:

não apenas,

quando o magistrado130 deixa de proferir despacho ou sentença sobre matéria pendente e que lhe foi presente,

mas também,

quando não cumpre, nos termos da lei, as decisões dos tribunais superiores.

Matéria controversa e mui actual é a de se saber se o atraso na decisão representa denegação de justiça.

Veja-se o que sobre isto pensava Alberto dos Reis:131

Não pode afirmar-se, em face da lei de processo, que o juiz denega justiça quando demora as suas decisões além do prazo legal. O artigo 658.º fixa o prazo de quinze dias132 para a sentença; e acrescenta que só em caso de justo impedimento, devidamente comprovado,Page 79 pode este prazo ser ultrapassado.133 O artigo 159.º134 não contém advertência semelhante, pelo que respeita ao prazo estabelecido para os despachos; mas é fora de dúvida que a doutrina é a mesma. O magistrado judicial que excede os prazos legais sem justificar o seu procedimento, comete infracção disciplinar. O Estatuto Judiciário recomenda aos inspectores que averiguem se o magistrado inspeccionado observa os prazos marcados na lei e é em geral diligente no exercício do seu cargo.

Uma coisa é, porém, a infracção disciplinar resultante da falta de observância dos prazos, outra a denegação de justiça por o juiz deixar de proferir despacho ou sentença sobre matéria pendente. Este facto ilícito pressupõe a recusa do juiz a decidir. Assim se exprimia o n.º 4.º do artigo 1092.º do Código anterior; assim se exprime o artigo 286.º do Código Penal.135 O primeiro permitia a condenação do juiz em perdas e danos quando denegasse justiça recusando proferir despacho ou sentença…; o segundo pune o facto de os juízes se negarem a administrar justiça.

Não basta, pois, que o juiz retarde a decisão, deixe de a proferir dentro do prazo legal; é necessário que mostre a disposição de a não proferir, ou melhor, que expressamente se tenha recusado a proferi-la.

O artigo 97.º do Código de 76 advertia que os juízes não podiam abster-se de julgar, a pretexto de falta ou obscuridade da lei, falta de provas ou por qualquer outro motivo. Não se encontra disposição semelhante no Código actual.

Se a falta ou a obscuridade da lei não dispensa os juízes do dever legal de decidir, é evidente que também os não dispensa do cumprimento desse dever a falta de provas. A falta destas redunda em prejuízo da parte sobre a qual impende o onus probandi.

A magistratura judicial tem por missão julgar em harmonia com as fontes a que, segundo a lei, deva recorrer e fazer executar as suas decisões. Os juízes não podem deixar de aplicar a lei sob pretexto de que ela lhes pareça imoral ou injusta e as suas decisões deverão ter em consideração todos os casos que merecem o mesmo tratamento, a fim de, tanto quanto possível, se obter uma jurisprudência uniforme.

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O dever de obediência à lei compreende o de respeitar os juízos de valor legais, mesmo quando se trate de resolver hipóteses não previstas nela.

Estabelece-se aqui nitidamente o sistema da legalidade: o dever de julgamento segundo a lei ou segundo o direito constituído.

Por mais insignificante que seja o valor da causa, o juiz tem de a julgar em conformidade com o direito; e não pode decidir segundo a equidade,136 ainda que o objecto da causa verse sobre direitos disponíveis das partes e estas acordem no julgamento ex aequo et bono.

A lei não lhe dá tamanho poder.

Tem o dever de obediência à lei.137

Para o cumprir, terá de operar deste modo:

– recorrendo, em cada caso concreto, às verdadeiras fontes de que haja de extrair a regra de direito a aplicar (indagação da norma);

– atribuindo à regra eleita o sentido que rigorosamente lhe cabe no sistema jurídico constituído (interpretação);

– adaptando a mesma regra aos factos da causa, fazendo derivar daí os efeitos jurídicos adequados (aplicação).

No sistema da legalidade, que não no da equidade, existe a separação entre justiça e política: ao juiz, e de um modo geral ao jurista, não compete discutir a bondade política das leis; compete unicamente, enquanto juiz e jurista, observá-las e fazê-las observar.

Ressalva, porém, Calamandrei:138

Com isto não se quer significar, entendamo-nos, que no sistema da legalidade a obra do juiz possa reduzir-se a árido jôgo lógico, isolado das correntes históricas de que emanou a lei que é chamado a aplicar.

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A actividade do juiz tem objectivos essencialmente práticos, visto que se dirige a determinar a conduta dos homens, e neste sentido é sempre actividade política, mesmo no sistema da legalidade; mas esta sua actividade prática, e por isso política, não pode consistir senão em desenvolver fielmente os princípios de que nasceram as leis que tem de fazer observar, nos limites em que êsses princípios se traduziram na legalidade e se tornaram princípios gerais da ordenação jurídica do Estado.

Por outras palavras, ao juiz não é lícito realizar, sobre o direito constituído, aquelas valorizações críticas de jure condendo, com base nas quais as leis podem qualificar-se de justas ou injustas, conforme correspondam, mais ou menos, a certos ideais de justiça em sentido moral ou social, que se adoptam como critérios de apreciação das mesmas leis.

Num ponto de vista estritamente jurídico qualificar de injusta uma lei pode parecer uma contradictio in adjecto. A justiça que o juiz administra é, no sistema da legalidade, a justiça em sentido jurídico, isto é, no sentido mais apertado, mas menos incerto, da conformidade com o direito constituído, independentemente da correspondência com a justiça social.

Qual é então, perante a formulação legal, a atitude correcta do magistrado?139

É respeitar fielmente os juízos de valor que a lei quis consagrar. Não lhe é lícito sobrepor a esses juízos os seus próprios, declarar a lei injusta ou imoral, e substituí-la por uma norma que considera mais conforme à sua consciência ou ao sentimento de justiça social do meio e da época.

Os juízes têm, por vezes, de travar lutas ásperas de inteligência; a interpretação da lei, a determinação do sentido exacto da regra de direito sujeita-os, num ou noutro caso, a dúvidas torturantes, a investigações angustiosas. Em tais casos compreende-se perfeitamente que o magistrado se pronuncie a favor da interpretação que, sem atraiçoar os princípios encorporados na ordem jurídica constituída, dá satisfação mais completa ao sentimento de justiça social.

Mas se, socorrendo-se dos elementos normais de interpretação, chegou a apurar com segurança o sentido da regra legal, não tem quePage 82 hesitar: deve inclinar-se perante a lei assim definida e aplicá-la ao caso concreto, considerando como solução justa a que resultar de tal aplicação. Permitir-se,em tal caso, uma decisão diversa, a título de que, no seu modo de ver, ou segundo o seu juízo de valor, a solução legal é injusta ou imoral, é um abuso.

Observar-se-á, porém:

Como há-de o juiz manter-se fiel aos juízos de valor legais, quando tenha de resolver hipóteses não previstas na lei?

A objecção não perturba. O juiz não tem, em tal caso, diante de si uma determinada regra de direito; mas tem o conjunto da ordem jurídica constituída, tem os princípios gerais da ordenação jurídica do Estado, e é aos juízos de valor estratificados nessa ordenação que deve obediência e respeito.

A função...

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