Acórdão nº 992/19.6T8BGC-H.G1 de Tribunal da Relação de Guimarães, 16-05-2024

Data de Julgamento16 Maio 2024
Número Acordão992/19.6T8BGC-H.G1
Ano2024
ÓrgãoTribunal da Relação de Guimarães

Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

1.1. EMP01..., Limitada, com sede na Avenida ... F, fracção ..., em ..., foi declarada insolvente, por sentença proferida em 06 de Novembro de 2020 (no processo n.º 992/19...., do Juízo de Competência Genérica de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, de que estes autos são apenso ...), tendo a dita insolvência sido requerida pelo credor Município ....

1.2. No processo de insolvência, a Insolvente constituiu mandatária forense a advogada ..., que aí a representa.

1.3. O credor Município ... requereu a abertura do incidente de qualificação de insolvência, pedindo nomeadamente que a mesma fosse tida como culposa; e que fossem afectados por ela AA e ..., casados entre si e ambos sócios da Insolvente (EMP01..., Limitada), sendo ainda o primeiro seu gerente registado e ambos seus gerentes de facto.
Alegou para o efeito, em síntese, terem ambos os sócios e gerentes da Insolvente (EMP01..., Limitada) votado a mesma ao abandono (encerrando fisicamente a sua sede - mas não a alterando no registo comercial -, deixando de exercer a sua actividade -, mas não a encerrando legalmente -, deixando de prestar, fazer fiscalizar e publicar contas), omitido a sua apresentação à insolvência (que se verificava desde 2016) e terem alienado bens dela para proveito pessoal ou para benefício de terceiros; e não ter ainda o seu gerente de direito possibilitado o contacto do Administrador da Insolvência, nem lhe prestado as informações e os esclarecimentos necessários, ou facultado documentos contabilísticos.

1.4. Declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência, quer o Administrador da Insolvência, quer o Ministério Público, apresentaram parecer, pedindo que a insolvência fosse declarada culposa e afectado por ela o sócio gerente (AA).

1.4.1. O Administrador da Insolvência alegou para o efeito, em síntese: ter o sócio gerente da Insolvente (EMP01..., Limitada) faltado à colaboração que lhe seria devida (nomeadamente, por manter a sede da Sociedade encerrada e não lhe ter entregue quaisquer documentos); ter incumprido as suas obrigações junto da administração fiscal (nomeadamente, de prestação e registo de contas); e não ter o mesmo apresentado a Sociedade à insolvência, não obstante a mesma já se mostrar há muito verificada.

1.4.2. O Ministério Público acompanhou, em síntese, o parecer do Administrador da Insolvência (nomeadamente, defendendo ter AA incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração, bem como de apresentação da Sociedade à insolvência, e de elaboração de contas anuais, de sujeição das mesmas a fiscalização e de depósito respectivo na Conservatória do Registo Comercial).

1.5. Notificada a Insolvente (EMP01..., Limitada) e citados os seus Sócios (AA e ...), os três vieram individualmente deduzir oposição (embora reproduzindo a mesma defesa), sendo qualquer dos sócios representado pela advogada ... e pedindo que a insolvência fosse considerada fortuita.
Alegaram para o efeito, em síntese: não ter havido alheamento da empresa, mantendo a mesma um contabilista; terem prestado ao Administrador da Insolvência todos os esclarecimentos e entregue tudo o que estava na sua disposição; nada ter sido ocultado ou feito desparecer do património da Insolvente, em prejuízo dos seus credores; não ser a sócia minoritária ... gerente, de facto ou de direito, da Insolvente; estar o seu gerente desde finais de 2011 com uma depressão; ter sido a Sociedade objecto de furtos, no valor de milhares de euros; e encontrarem-se várias dívidas prescritas e outras terem sido pagas pela sócia minoritária a título particular.
Na prova pessoal que arrolaram requereram «Declarações aos Sócios, a toda a matéria»; e arrolaram uma testemunha, «BB, Contabilista».

1.6. Suscitando o credor Município ... a eventual violação do regime de incompatibilidades e impedimentos ao exercício de mandato forense, por parte de ... nos autos, foi pedido parecer ao Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, que concluiu exigir a dita violação, a menos que fosse obtida a dispensa de guardar sigilo profissional, lendo-se nomeadamente na sua decisão:
«(…)
4. Apreciação
Retornando à questão colocada tem-se que a pronúncia pretendida é a de saber se um Advogado poderá patrocinar uma entidade da qual é sócio, assim como patrocinar o seu cônjuge e a si próprio oferecendo-se, simultaneamente, para prestar declarações de parte.
Destaque-se que a questão colocada o foi no âmbito do apenso do processo de insolvência onde corre o incidente da qualificação desta como culposa com efeitos na esfera jurídica da Advogada/Parte.
Por tudo o que acima ficou dito, temos que a resposta a oferecer passa por seccionar a intervenção da Sra. Advogada face a cada um dos seus “Clientes”.
Assim, quanto à sociedade da qual é sócia não temos que exista qualquer impedimento em que um Advogado sócio de uma empresa esteja em conflito de interesses no que ao patrocínio desta diz respeito.
Efetivamente os sócios, mesmos nas sociedades de responsabilidade limitada, não se acham implicados na gestão do dia a dia, nem essa proximidade pode ser tida como limitativa do exercício do mandato.
Neste ponto, podemos avocar um certo paralelismo com a possibilidade/faculdade legal de se ser advogado em causa própria, o que não é, de modo algum, proibido, já que se trata de uma possibilidade legal, que apenas cede, com exceção, no domínio do processo penal.
Na verdade, a possibilidade de os Advogados poderem advogar em causa própria deriva da interpretação articulada do artigo 66º do EAO, comungado com o artigo 1º da Lei 49/2004 de 29 de Agosto (Lei dos Actos Próprios dos Advogados e Solicitadores).
Pelo que nada há que (legalmente) impeça o Advogado de representar uma sociedade da qual é sócio, nem mesmo as limitações que decorrem do seu dever de guardar segredo profissional já que, para tal, há mecanismos que asseguram o bom atuar do Advogado (leia-se o levantamento desse segredo).
E, por maioria de razão, também é admissível o patrocínio do cônjuge do Advogado assim como o seu próprio.

Situação distinta é a de saber se age com decoro aquele Advogado que tem em parte da lide a posição de declarante como parte.
Numa expressão mais ligeira: saber se age com decoro aquele Advogado que no decurso de uma audiência despe a toga e vai até à cadeira das testemunhas prestar declarações de parte.

5. Conclusões

I. A possibilidade de os Advogados poderem advogar em causa própria deriva da interpretação articulada do artigo 66º do EAO, comungado com o artigo 1º da Lei 49/2004 de 29 de Agosto (Lei dos Actos Próprios dos Advogados e Solicitadores).

II. Não existe qualquer impedimento em que um Advogado sócio e uma empresa seja mandatário dessa empresa, pois se ao próprio Advogado é facultada a possibilidade de se representar a si próprio em juízo, por maioria de razão nada há que (legalmente) o impeça de representar uma sociedade da qual é sócio, nem mesmo as limitações que decorrem do seu dever de guardar segredo profissional já que, para tal, há mecanismos que asseguram o bom atuar do Advogado, como é o caso do levantamento do sigilo.

III. E, por maioria de razão, também é admissível o patrocínio do cônjuge do Advogado assim como o seu próprio.

IV. O Advogado que se apresenta em Tribunal como mandatário e parte num incidente de qualificação de insolvência por força do n.º 1 do artigo 83.º e no n.º 2 do artigo 81.º do EAO, deve considerar-se impedido de patrocinar os ali requeridos, ele mesmo incluído, a menos que logre obter dispensa de guardar sigilo profissional (nos termos do regulamento de dispensa de segredo profissional).
(…)»

1.7. ... - sócia minoritária da Insolvente (EMP01..., Limitada) e simultânea mandatária judicial da mesma e, então, de ambos os potenciais afectados pela qualificação como culposa da dita insolvência -, solicitou ao Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados a dispensa de sigilo profissional, «para depor no processo e ou também para juntar documento», «por necessária para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos da ora Advogada, e dos seus clientes», conhecendo «a situação da Sociedade, do Sócio Gerente e de si própria enquanto Sócia minoritária».
O pedido foi indeferido (decisão que se tornou definitiva em 13 de Dezembro de 2023), lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
- Para ser autorizada a revelação do segredo profissional, que incide sobre determinado meio de prova, é necessário que tal revelação seja absolutamente necessária à defesa da dignidade, direitos e interesses do advogado, seu cliente ou seus representantes e que o meio de prova seja imprescindível, essencial, exclusivo e atual, conforme dispõe o artigo n.º 4 do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional;
- No caso em análise, porque não nos foi dada a conhecer a documentação sobre a qual incidira o segredo profissional não emitimos decisão quanto à junção aos autos da dita documentação;
- No tocante à prestação de declarações por parte da requerente é de notar que a requerente não invocou, nem demonstrou, a absoluta necessidade de revelação do segredo consignada na essencialidade a imprescindibilidade, a exclusividade do meio de prova sujeito a segredo, o que determina o indeferimento da sua pretensão;
- Acresce a esta impossibilidade a incompatibilidade com a dignidade do mandato forense enquanto participante na administração da justiça, decorrente da circunstância de a requerente pretender prestar declarações em processo em que intervém como advogada.
(…)»

1.8. AA e ... requereram a concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de nomeação de patrono.
O pedido foi-lhes indeferido.

1.9. Foi proferido despacho: saneador (certificando tabelarmente a validade e a regularidade da instância); fixando o valor da...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT