Acórdão nº 961/05.3PTPRT.P1 de Tribunal da Relação do Porto, 10-03-2010

Data de Julgamento10 Março 2010
Número Acordão961/05.3PTPRT.P1
Ano2010
ÓrgãoTribunal da Relação do Porto
Recurso nº 961/05.3PTPRT.P1

Relator:
R. Costa e Silva
Adjunto:
Abílio Ramalho


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto,
I.

1. Por sentença, proferida, em 2009/04/03, no processo nº 961/05.3PTPRT, do .º Juízo Criminal do Porto, .ª secção, foi – além do mais sem interesse para a presente decisão – decidido absolver o arguido B………., com os demais sinais dos autos, dos três crimes de desobediência, previstos e punidos pelo artº 348º, nº 1, al. b), do Código Penal (CP) que lhe vinham imputados.
2. Inconformado com esta decisão, dela recorreu o Ministério Público (MP).
Rematou a motivação de recurso que apresentou, com a formulação das seguintes conclusões:
1. O recurso é interposto da sentença que absolveu o arguido da prática de três crimes de desobediência previstos e punidos pelo(s) art.(s) 348°, 1, b) C.P. que haviam sido imputados na acusação, com o argumento de que a conduta de quem conduz um veículo automóvel que se encontra apreendido por falta de seguro obrigatório não integra a prática de um crime de desobediência mesmo que, no acto de apreensão, o fiel depositário tenha sido advertido de que a condução de tal veículo enquanto fosse vigente a apreensão o faria incorrer na prática de tal ilícito criminal;
2. De acordo com a argumentação expendida, a apreensão do veículo que circula não obstante estar apreendido integra a contra-ordenação prevista no art. 161°, 7 do Código da Estrada (C.E.), pelo que, considerando que o direito penal tem natureza subsidiária, a entidade policial não pode cominar com a prática do crime de desobediência a conduta de quem conduz um veículo apreendido, sendo tal ordem, se emitida, ilegal;
3. De acordo com José Luís Lopes da Mota in Crimes Contra a Autoridade Pública, Jornadas de Direito Criminal — Revisão do Código Penal, II, Lisboa, 1998, fls. 428 e 429 o crime de desobediência tem uma estrutura eminentemente normativa e são seus elementos típicos "(...) a existência de um comando da autoridade ou do funcionário, sob a forma de ordem ou mandado, impondo uma determinada conduta, um dever de acção de omissão, nos termos concretamente definidos; a sua legalidade material e formal; a competência da entidade que o emite; a regularidade da comunicação ao destinatário; a violação do dever concretamente emergente desse comando" e, caso a punição a título de desobediência não esteja expressamente prevista, que a entidade competente faça a cominação da punição;
4. Devendo entender-se e interpretar-se dessa forma a matriz do crime de desobediência na modalidade prevista no art. 348°, b) C.P., não nos parece que o propalado princípio da necessidade determine, inelutavelmente, a ilegalidade material da cominação efectuada pelo órgão de polícia criminal na específica situação que foi objecto de acusação.
5. Na realidade, "(...) não podem confundir-se duas realidades: uma, a prossecução de uma situação anti-jurídica, que consiste na condução em via pública de veículo a motor, sem contrato de seguro de responsabilidade civil; outra, a circulação desse veículo desacompanhado do documento de identificação" — Parecer do Ex.mo Sr. Procurador da República Jorge Reis Bravo integrado na Informação n.° 3/09 da PGD do Porto;
6. A apreensão do automóvel que circula sem seguro obrigatório tem uma função cautelar ou preventiva, procurando anular-se a potencialidade lesiva que daí decorre, mais precisamente, o risco que resulta da ausência da garantia de reparação de danos que possam decorrer da circulação do veículo.
7. Assim, se o fiel depositário reincidir na condução do automóvel apreendido sem haver regularizado a situação cometerá o crime de desobediência, caso tenha havido a regular cominação com tal crime, cominação essa que deverá considerar-se legal;
8. O crime de desobediência nesta situação, pelo agente de fiscalização não se reconduz à circulação do veículo sem documento de identificação, mas sim ao desrespeito pela proibição de circular sem seguro obrigatório;
9. A interpretação dinâmica e integrada dos art. 348°, 1, b) C.P. e 161º, 1, e) e 7 do C.E, discernindo o diverso âmbito de aplicação da contra-ordenação e do crime, está certamente implícita na argumentação que percorre o Acórdão para Fixação de Jurisprudência nº 5/2009 (DR, I-A, 19/03/2009) onde se decidiu, com relevância indirecta para esta questão:
«O depositário que faça transitar na via pública um veículo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório comete, verificados os respectivos elementos constitutivos, o crime de desobediência simples do artigo 348.°, nº 1, alínea b), do Código Penal e não o crime de desobediência qualificada do artigo 22.°, nºs 1 e 2, do Decreto -Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro.»
10. Assim, a decisão recorrida deverá ser revogada por ter violado o disposto no art. 348°, 1, b) C.P., que interpretou erradamente, e substituída por outra que condene o arguido nas penas parcelares de 100, 110 e 120 dias de prisão por cada um dos crimes de desobediência por si cometidos e, operado o cúmulo jurídico, na pena única de 280 dias de prisão, substituída por 280 dias de multa à taxa diária de € 4.
3. Notificado do recurso, o arguido não apresentou resposta ao mesmo.
4. Nesta instância, a Exma Procuradora-geral-adjunta deu parecer em que se pronunciou por que o recurso merece provimento.
5. Cumprido o disposto no artº 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), não foi dada resposta ao parecer.
6. Efectuado o exame preliminar, não havendo obstáculos ao conhecimento do recurso e devendo este ser julgado em conferência, determinou-se que, colhidos os vistos legais, os autos fossem remetidos à conferência. Realizada esta, dos respectivos trabalhos procede o presente acórdão.
II.

1. Atentas as conclusões da motivação do recurso, que, considerando o disposto no artº 412º, nº 1, do CPP, definem o seu objecto, o recurso é apenas sobre matéria de direito a única questão nele posta é a da legalidade da injunção da autoridade policial ao detentor do veículo apreendido por circular sem seguro obrigatório, para se abster de continuar a fazer circular o veículo em causa, nessas condições, com a cominação de incorrer num crime de desobediência, não o fazendo.
2. É a seguinte a fundamentação de facto da sentença recorrida:
1) No dia 02 de Fevereiro de 2005, o arguido foi surpreendido por um soldado da Guarda Nacional Republicana a conduzir o veículo automóvel de matrícula OE-..-.., em ………., Matosinhos, sem que tivesse efectuado o correspondente seguro de responsabilidade civil automóvel.
2) O referido soldado procedeu, de imediato, à apreensão daquele veículo e entregou-o ao arguido como fiel depositário, tendo, na mesma ocasião, notificado pessoalmente o mesmo de que não poderia utilizar aquele veículo por qualquer forma, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.
3) Nos dias 11.04.2005, 06.07.2005 e 06.08.2005, respectivamente, na Rua ………., na Rua ………. e na Rua ……., nesta cidade, o arguido conduziu o sobredito veículo automóvel, nele se fazendo transportar, apesar de ter perfeito conhecimento de que a sua conduta o faria incorrer em responsabilidade criminal.
4) Tinha ainda o arguido conhecimento de que aquela ordem era legítima, emanada de autoridade competente, que lhe fora regularmente comunicada pela autoridade policial e a cujo cumprimento estava obrigado.
5) Agiu, nas referidas três ocasiões, de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que desrespeitava uma ordem legítima e que a sua conduta era proibida e punida por lei. Mais se provou que:
6) O arguido confessou os factos que lhe vinham imputados.
7) Já foi condenado pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, um crime de roubo, um crime de falsificação de documento, um crime de burla na forma tentada, um crime de subtracção de documento, um crime de abuso de confiança e um crime de furto qualificado, todos eles cometidos há mais de dez anos, bem como num crime de desobediência, cometido em 04.05.2005, tendo-lhe sido aplicada a pena de 100 dias de prisão, substituída por 100 dias de multa — cf. certificado do registo criminal de fls. 105 a 112, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, e certidão de fls. 124 a 128.
8) O arguido foi toxicodependente e está a ser acompanhado no CAT, onde faz tratamento de substituição à base de metadona. Sofre de doença infecto-contagiosa.
9) Vive com a avó, que tem 84 anos de idade, a quem presta assistência diária.
10) O arguido recebe € 188 de rendimento social de inserção e a sua avó recebe € 400 de pensão de reforma e de viuvez. Pagam € 48 mensais de renda de casa.
11) O arguido tem como habilitações literárias o 11° ano de escolaridade.
B. Factos
...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT