Acórdão nº 960/19.8JAAVR.P2.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 27-01-2022
Data de Julgamento | 27 Janeiro 2022 |
Case Outcome | NEGADO PROVIMENTO. |
Classe processual | RECURSO PENAL |
Número Acordão | 960/19.8JAAVR.P2.S1 |
Órgão | Supremo Tribunal de Justiça |
Proc. n.º 960/19.8JAAVR.P2.S1
Recurso
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça
I-Relatório
1. No processo comum (tribunal coletivo) n.º 960/19.... do Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., comarca ..., por acórdão de 15.07.2021, o arguido AA foi, além do mais, condenado (no que aqui interessa):
- pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real de infrações de:
I - 48 (quarenta e oito) crimes de abuso sexual de criança agravado, previsto e punido pelos artigos 171º nºs 1 e 2 e 177º nº 1 alínea a) do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um deles.
II - 288 (duzentos e oitenta e oito) crimes de abuso sexual de menor dependente, previsto e punido pelo artigo 172º nº 1 alínea a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, por cada um deles.
- Operando o cúmulo jurídico das penas referidas em I e II, na pena única de 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão.
- Ao abrigo do disposto no artigo 69º-B, nº 2 do Código Penal, na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, pelo período de 12 (doze) anos.
- Ao abrigo do disposto no artigo 69º-C, nº 2 do Código Penal, na pena acessória de proibição de assumir confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores pelo período de 12 (doze) anos e 6 (seis) meses.
- Ao abrigo do disposto no artigo 69º-C, nº 3 do Código Penal, na pena acessória inibição do exercício de responsabilidades parentais pelo período de 12 (doze) anos e 6 (seis) meses;
- nos termos do disposto no artigo 82º-A do Código Penal, por força do disposto no artigo 16º nº 2 da Lei nº 130/2015 de 04-09 a pagar, a título de indemnização, à vítima BB, a quantia de €20 000,00 (vinte mil euros).
(…)
2. Inconformado com essa decisão, recorreu o arguido AA para o Tribunal da Relação ..., o qual por acórdão de 22.09.2021, julgou improcedente o recurso, mantendo o acórdão impugnado.
3. Inconformado com essa decisão, o arguido AA interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões:
1 - Ao ter sido considerado como novo meio de prova, para efeitos do disposto no nº 1 do artº 279º CPP, exclusivamente declarações de testemunha que havia já prestado declarações contrárias no inquérito, sem que estas tenham visto judicialmente declaradas a sua falsidade, foi violado o citado dispositivo legal e bem assim o princípio ne bis in idem constitucionalmente consagrado no nº 5 do artº 29º CRP.
2 – Ao não se pronunciar sobre conclusão idêntica à que antecede e que o arguido havia suscitado no recurso que apresentara perante o Tribunal da Relação ... incorreu o douto acórdão ora sob recurso no vicio previsto na alínea b) do nº 1 do art. 379º CPP, aplicável nos termos do nº 4 do artº 425º do mesmo diploma legal, nulidade que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos legais.
3 - Ao indeferir requerida prestação de declarações complementares pela ofendida para esclarecimento de contradições entre o seu depoimento e o conjunto de mensagens trocadas via messenger com o arguido, que seriam manifestamente essenciais à descoberta de verdade e boa decisão da causa, violou o despacho proferido em sede de audiência aos 06/07/2021 o disposto nos artº 340º nº 1; 124º e 138º nºs 3 e 4 do CPP e bem assim o direito constitucionalmente consagrado do arguido a um processo equitativo em respeito pelos princípios do due process of law.
4 - O arguido é pessoa socialmente integrada, com vida social e profissional estável. A sua perigosidade social (as necessidades de prevenção especial ) existiu apenas no contexto daquela relação especial e com aquela vitima em concreto de quem se encontra afastado. Nada nos factos provados permite afirmar que finda esta relação o arguido venha a representar perigo para quem quer que seja. A prática de um crime negligente e a existência de “referências” policiais, não especificadas e datadas da juventude do arguido não indicam particulares necessidades de prevenção especial.
Assim, as necessidades de prevenção especial presentes em relação ao recorrente não só não são “particulares” como se apresentam reduzidas. O que se deve reflectir, de acordo com o disposto no art. 71º nº 1 C.P., na medida das penas parcelares aplicadas implicando redução daquelas.
5 – Na pena única fixada ao arguido, a manifesta unidade dos factos pelo mesmo praticados: -contra a mesma vítima; - no mesmo contexto de proximidade derivada da relação familiar e de coabitação; - prolongando-se por um período de cerca de seis anos e tendo subjacente a mesma motivação. Revela não uma tendência para a prática deste tipo de ilícito, mas pelo contrário indicia situação de mera pluriocasionalidade o que não é afastado por o arguido aparentemente não denotar arrependimento ou interiorização do desvalor da sua conduta.
Conclui invocando que, em face do disposto no nº 1 do art. 77º C.P., se afigura desproporcional por excessiva a pena única de dez anos e seis meses em que foi condenado.
4. Esse recurso foi admitido, sem qualquer restrição, por despacho de 4.11.2021, invocando-se o disposto no art. 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
5. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação respondeu ao recurso, pugnando pelo seu não provimento.
6. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, a Srª. PGA emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.
7. No exame preliminar a Relatora ordenou que fossem cumpridos os vistos legais com o envio das peças processuais que fossem solicitadas, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Rejeição parcial do recurso
8. Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP).
Os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito (art. 434.º do CPP), sem prejuízo do conhecimento oficioso do disposto nos nºs 2 e 3 do art. 410.º do CPP.
Neste caso concreto, houve dupla conforme, ou seja, foi confirmada na totalidade a decisão da 1ª instância, sendo negado provimento ao recurso do arguido para a Relação (fosse quanto a questões colocadas a nível da decisão proferida sobre a matéria de facto, fosse quanto a questões de direito, e, também, quanto à medida das penas parcelares/individuais e única).
Como se verifica da condenação imposta ao arguido as penas parcelares ou individuais são todas elas inferiores a 8 anos de prisão e a pena única é de 10 anos e 6 meses de prisão.
Analisadas as conclusões do recurso para o STJ, verifica-se que o arguido/recorrente volta a recolocar parte das questões que já suscitara no seu recurso para a Relação, a saber:
1.º- violação do princípio ne bis in idem, por parte dos factos apreciados terem sido objeto de despacho de arquivamento no proc. n.º 3226/17...., entretanto, apenso a estes autos, sem que tenha sido determinada a sua reabertura formal;
2.º- violação do disposto no art. 340.º, nº 1 e nº 3 do CPP, por indeferimento da prestação de declarações complementares pela ofendida, que havia sido requerida pelo arguido por alegadas aparentes contradições entre as declarações que prestara para memória futura com o conjunto de mensagens trocadas via Messenger entre arguido e ofendida; e,
3.º- Apreciação das penas parcelares/individuais e da pena única, por as considerar excessivas.
E, compulsado o teor do acórdão do Tribunal da Relação verifica-se que o mesmo analisou e decidiu (além do mais), confirmando integralmente, todas as questões acima referidas (tendo-se pronunciado sobre todas elas[1]), as quais, como se disse, foram novamente colocadas em sede de recurso para o STJ.
Porém, como se verifica da condenação imposta ao arguido (sobre a qual existe dupla conforme, isto é, um duplo juízo condenatório) as penas parcelares ou individuais são todas elas inferiores a 8 anos de prisão e a pena única é de 10 anos e 6 meses de prisão.
Isto significa, visto o disposto nos arts. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, que o acórdão do Tribunal da Relação é irrecorrível na parte em que confirma a condenação da 1ª Instância (princípios da dupla conforme condenatória e da legalidade), incluindo as penas parcelares/individuais aí aplicadas, uma vez que não são superiores a 8 anos de prisão.
Considerando o disposto no art. 400.º n.º 1, als. e) e f) do CPP, a não admissibilidade do recurso vale separadamente para as penas parcelares e para a pena conjunta, podendo acontecer que não sejam recorríveis todas ou algumas daquelas, mas já o seja a pena única[2].
Aliás, decidiu-se no Ac. do TC (plenário) n.º 186/2013, “Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, “na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão.”
Neste caso concreto, o recorrente pretende ver reapreciadas pelo STJ questões decididas em definitivo pelo Tribunal da Relação, o que não pode ser.
O Acórdão da Relação ... é definitivo quanto às questões que volta a colocar no recurso para o STJ, salvo quanto à reapreciação da medida da pena única que é superior a 8 anos de prisão.
Assim, as questões de facto, as questões processuais, as questões de direito, as questões relativas às penas parcelares/individuais, a nulidade da sentença, as questões de inconstitucionalidade, suscitadas nesse...
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO