ACÓRDÃO Nº 938/2024
Processo n.º 576/2024
3ª Secção
Relator: Conselheiro Afonso Patrão
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.No âmbito dos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, foi interposto recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional, referida adiante pela sigla «LTC») por A., S.A., sendo recorridos o Ministério Público e a Anacom – Autoridade Nacional de Comunicações.
2. Por decisão administrativa proferida pela Anacom – Autoridade Nacional de Comunicações, datada de 2 de novembro de 2022, foi a recorrente condenada pela prática de quatro contraordenações previstas na Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 15/2016, de 17 de junho — redação vigente à data dos factos (anterior Lei das Comunicações Eletrónicas, doravante referida por LCE) — na coima única de € 6.677.833,00 (seis milhões, seiscentos e setenta e sete mil e oitocentos e trinta e três euros).
Inconformada, a ora recorrente impugnou judicialmente a condenação. Por sentença datada de 14 de setembro de 2023, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão julgou a impugnação parcialmente procedente, reduzindo a coima única para € 5.300.000,00 (cinco milhões e trezentos mil euros).
Outra vez inconformada, a arguida recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão datado de 4 de março de 2024, concedeu provimento parcial ao recurso, absolvendo a ora recorrente de uma das contraordenações por que vinha condenada e confirmando a condenação pelas demais contraordenações.
Sempre inconformada, a recorrente arguiu a nulidade (e, subsidiariamente, a irregularidade) do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 4 de março de 2024. Por acórdão datado de 8 de maio de 2024, o Tribunal da Relação de Lisboa indeferiu a reclamação.
3. Novamente inconformada, a arguida interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, pretendendo um julgamento de inconstitucionalidade da «norma contida no artigo 108.º, n.º 1 da LCE conjugada com o artigo 113.º, n.º 2, alínea pp) da LCE, se interpretada e aplicada no sentido de obrigar, sob pena de responsabilidade contraordenacional, as entidades que estão sujeitas a obrigações nos termos dessa lei a prestar informações e entregar documentos solicitados pela ANACOM, que possam constituir prova de factos típicos de ilícitos contraordenacionais por si praticados ou de factos relevantes para a determinação da medida da coima»; e, por outro lado, da «norma contida no artigo 113.º, n.º 6 da LCE, na interpretação de que constitui contraordenação a adoção pelas empresas que oferecem redes e ou serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público de comportamentos habituais ou padronizados, contraordenação que é muito grave sempre que daqueles atos resulte infração grave, conjugado com os artigos 48.º, n.º 16 e 113.º, n.º 2, alínea x) da LCE».
Através do Acórdão n.º 809/2024, em obediência ao disposto no artigo 79.º-C da LTC, restringiu-se o objeto do recurso às normas que haviam sido efetivamente aplicadas pela decisão recorrida. Pode ler-se naquela decisão:
«6.1. Em primeiro lugar, a recorrente pretende o julgamento da inconstitucionalidade da «norma contida no artigo 108.º, n.º 1 da LCE conjugada com o artigo 113.º, n.º 2, alínea pp) da LCE, se interpretada e aplicada no sentido de obrigar, sob pena de responsabilidade contraordenacional, as entidades que estão sujeitas a obrigações nos termos dessa lei a prestar informações e entregar documentos solicitados pela ANACOM, que possam constituir prova de factos típicos de ilícitos contraordenacionais por si praticados ou de factos relevantes para a determinação da medida da coima», sustentando que tal regra viola o princípio da não autoincriminação, o direito a um processo equitativo, o direito de defesa e o princípio da presunção de inocência, que entende estarem consagrados nos artigos 2.º, 20.º e 32.º, n.ºs 2 e 10, todos da Constituição.
Com a questão de inconstitucionalidade sindicada, pretende a recorrente a fiscalização da norma incriminatória que fundamentou a condenação contraordenacional «na coima no valor de 8.000 (oito mil euros) pela prática negligente de 1 (uma) contraordenação grave, prevista na alínea pp) do n.º 2 do artigo 113.º da LCE, na redação dada pela Lei n.º 15/2016, de 17 de junho, por violação do disposto nos n.ºs 1 e 5 do artigo 108.º da LCE – no caso de falta de envio da informação solicitada à ANACOM».
(…)
De acordo com a interpretação normativa questionada pela recorrente, impõe-se às entidades submetidas a obrigações da LCE a apresentação de informações solicitadas pela ANACOM, mesmo quando possam constituir prova de factos ilícitos contraordenacionais praticados por aquelas entidades ou factos que relevem para a determinação da coima. A norma sindicada determina que a violação dessa obrigação é autonomamente sancionada como contraordenação grave.
(…)
Importa restringir o objeto do recurso à norma que constituiu efetiva ratio decidendi do acórdão impugnado — única que pode o Tribunal Constitucional apreciar, nos termos do disposto no artigo 79.º-C da LTC. Com efeito, verifica-se que a norma aplicada pelo tribunal a quo é menos ampla do que aquela que a recorrente enunciou.
De facto, se a recorrente pretende a fiscalização de uma norma que, por um lado, alude a documentos que «possam constituir prova de factos ilícitos» e, por outro, a «factos relevantes para a determinação da medida da coima», estas duas dimensões não encontram respaldo na decisão recorrida ou nos preceitos legais mencionados pela recorrente. Desde logo, porque as disposições de que a norma vem extraída (n.º 1 do artigo 108.º e alínea pp) do n.º 2 do artigo 113.º) não se referem de modo algum à utilização como meio de prova para outras contraordenaçõesda documentação entregue ao abrigo do dever de prestação de informações à ANACOM. Diferentemente, fixam o âmbito do dever de prestação de informações e a punição pelo seu desrespeito, incluindo quanto a documentação que contenha dados autoincriminatórios, sem determinar em que medida pode aquela informação ser utilizada como meio de prova em processos contraordenacionais por outras infrações ou contribuir para a medida da coima.
Por outro lado, o tribunal a quo excluiu expressamente a exigência de declarações confessórias, apenas considerando obrigatória a prestação de informações mesmo quando contenham factos suscetíveis de corporizar os elementos objetivos da infração. Pode ler-se no acórdão impugnado, reiterando a decisão do tribunal de 1.ª instância:
«98. Importa ainda esclarecer que a restrição em causa obedece aos pressupostos de previsão prévia em diploma de carácter geral e abstrato, uma vez que decorre dos deveres de colaboração plasmados no artigo 108.º da LCE (revogada), em vigor à data do ofício da ANACOM, e visa a proteção de interesses constitucionalmente protegidos, designadamente a proteção dos direitos dos consumidores (cf. artigo 60.° da Constituição).
99. Transpondo os parâmetros para o caso concreto conclui-se que não há violação do direito à não autoinculpação, pois os elementos que a Arguida remeteu à ANACOM não contêm declarações confessórias. É certo que fornecem informações que demonstram factos suscetíveis de corporizar os elementos objetivos da infração. Contudo, para estarmos perante uma declaração confessória, à luz da jurisprudência Orkem, a Arguida tinha de admitir todos os elementos dos quais depende a responsabilidade contraordenacional, designadamente o elemento subjetivo e a culpa. O que não se verifica. Em consequência, não há violação do direito à não autoinculpação, pelo que a Arguida não podia invocar este direito para não prestar a informação solicitada» (sublinhado aditado).
Nessa medida, a norma efetivamente aplicada diz respeito à obrigatoriedade prestação de informações que não contêm declarações confessórias (mas somente factos suscetíveis de corporizar os elementos objetivos da infração), sem determinar em que medida poderiam tais documentos constituir meio de prova em processos contraordenacionais (por outras infrações para além a que se refere a alínea pp) do n.º 2 do artigo 113.º da LCE) ou contribuir para a medida da coima.
Assim, há...