Acórdão nº 8625/18.1T8LSB.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 22-09-2021

Data de Julgamento22 Setembro 2021
Case OutcomeCONCEDIDA A REVISTA.
Classe processualREVISTA
Número Acordão8625/18.1T8LSB.L1.S1
ÓrgãoSupremo Tribunal de Justiça

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra AA.

Pediu:

a) A condenação da ré a reconhecer a autora como legítima titular do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao ... do prédio sito na Rua..., ..., ... em ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o número ....25 e a entregar-lha completamente livre e devoluta de pessoas e bens;

b) A condenação da ré a pagar à Autora, a título de indemnização pelos danos causados, a importância de € 37.589,99, calculada até Março de 2018 e, ainda, a contar desta data, o montante mensal de € 803,11, correspondente ao valor da última renda fixada, até à entrega efectiva do imóvel, com actualizações anuais às taxas fixadas legalmente para as rendas livres, a liquidar em execução de sentença, e à taxa de juro legal sobre o montante total da indemnização até ao integral e efectivo pagamento.

Como fundamento, alegou que é titular do direito de propriedade sobre a fracção autónoma acima identificada, que adquiriu mediante arrematação, em 22-02-2014, livre de quaisquer ónus ou encargos e que se encontra ocupada pela ré sem o seu consentimento e contra a sua vontade;

Após a aquisição, teve conhecimento de que a fracção em causa se encontrava ocupada pela ré, sem qualquer título legítimo para o efeito;

A autora interpelou a ré para proceder à desocupação do imóvel e entregar as chaves, o que não sucedeu;

Se o imóvel tivesse sido entregue, poderia ter sido colocado no mercado de arrendamento, o que teria gerado um rendimento de € 37.589,99.

A ré contestou admitindo o direito de propriedade da autora sobre a fracção, adquirido no âmbito do processo de insolvência de BB, seu filho, mas alega que a administradora da insolvência sabia, tal como igualmente a ali credora Caixa Geral de Depósitos, que a fracção se encontrava arrendada à ré, o que foi referido no relatório daquela, notificado às partes em 4 de Julho de 2011, conforme contrato celebrado a 1 de Maio de 2009, pelo que a administradora da insolvência não poderia ter transmitido a fracção livre de ónus ou encargos; mais refere que tendo tomado conhecimento da carta enviada ao filho para entregar a fracção, tentou apurar onde deveria pagar a renda, nada lhe tendo sido dito, pelo que passou a depositar as rendas a favor da autora; invoca ainda que a presente acção constitui um abuso de direito porque a autora não pode deixar de ter consciência de que, ao pretender exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes.

Concluiu pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.

A autora veio apresentar requerimento em que sustenta que o contrato de arrendamento invocado pela ré não lhe é oponível, porque era beneficiária de uma hipoteca sobre a fracção, com registo de 9 de Junho de 2006, ou seja, anterior à celebração do contrato de arrendamento, pelo que este é inoponível quer ao credor exequente, quer ao adquirente em venda executiva, caducando nos termos do n.º 2 do artigo 824º do Código Civil, o que vale também para os processos de insolvência; refuta ainda que possa estar em abuso de direito ao pretender exercer um direito próprio.

Percorrida a tramitação subsequente foi proferida sentença que julgou improcedente a acção, por não provada e, em consequência, absolveu a ré AA dos pedidos formulados de entrega, livre de pessoas e bens, da fracção autónoma sita no ... do n.º ... da Rua ..., em ..., bem como do pagamento da quantia de € 37 589,99 e da quantia mensal € 803,11 (calculada desde Março de 2018, actualizada anualmente em função das taxas fixadas para o regime das rendas livres) e dos juros legais de mora peticionados.

Discordando, a autora interpôs recurso de apelação, que a Relação julgou parcialmente procedente, revogando, em parte, a decisão recorrida e decidindo:

a. declarar que a Caixa Geral de Depósitos, S. A. detém o direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao ... do prédio sito na Rua..., ..., ... em ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o número ...25;

b. condenar a ré/apelada AA a entregar à autora/apelante a fracção autónoma identificada em a., livre e devoluta de pessoas e bens;

c. manter, no mais, a decisão recorrida.

Inconformada, a ré vem pedir revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. O artigo 824°, n°2, do Cód. Civil, que respeita à venda a ter lugar no processo executivo, dispõe que: “Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo”.

2. Assim, dispondo a norma sobre a extinção dos direitos reais de garantia e dos demais direitos reais, a questão que se coloca é a de saber qual a natureza da relação estabelecida entre o locador e o arrendatário - se real, se obrigacional.

3. Os Professores Vaz Serra e Oliveira Ascensão defendem tratar-se de um direito real de gozo.

4. Os Professores Galvão Teles, Pinto Furtado e Pires de Lima e Antunes Varela defendem tratar-se de um direito pessoal ou de crédito, urna vez tratar-se de um direito que se dirige a urna coisa, não traduzindo um poder directo e imediato sobre essa coisa que possa ser exercido sem a intervenção de um terceiro, acrescentando que o arrendamento representa um direito de crédito, e nunca um direito real.

5. O Professor Menezes Leitão defende, igualmente, a tese personalista, alegando que o direito do arrendatário é, de facto, um direito de natureza pessoal, um direito de gozo que depende da prestação correspondente à obrigação do senhorio, e que no artigo 1682°-A, nos 1 e 2 do mesmo diploma legal o legislador qualificou este direito como um direito pessoal de gozo por considerar tratar-se de um direito que assegura ao arrendatário o gozo imediato, absoluto e autónomo sobre a coisa, sendo esta urna característica própria das obrigações.

6. Também o Professor Andrade Mesquita considera que o direito do arrendatário é um direito pessoal de gozo, já que ao arrendatário é conferida a possibilidade de usar o locado, de forma autónoma e absoluta, sem ter que recorrer a ninguém, nem pedir autorização, podendo, deste forma, exercer o direito de gozo sobre a coisa locada.

7. O Acórdão do S.T.J., de 27/11/2003, proferido no âmbito do proc. n° 03B3610 decidiu que: “O direito do arrendatário é um direito pessoal de gozo, isto é, de um direito obrigacional, por oposição a direito real, não obstante apresentar algumas das características próprias dos direitos desta última categoria, como é o caso, p. ex., da possibilidade de ser defendido pelos meios possessórios (art°1037°, n° 2, CC).”

8. Igualmente o Ac. do S.T.J., de 27/11/2018, proferido no âmbito do proc. n° 1268/16.6T8FAR.E1.S2, deliberou que a relação locatícia tem urna natureza pessoal.

9. Assim, tendo a relação locatícia natureza pessoal, transmitido, em sede de insolvência, um imóvel hipotecado e arrendado, subsiste ou não o arrendamento?

10. Aplica-se-lhe, ou não, o preceituado no n° 2 do art° 824° do Cód. Civil?

11. Entendemos que não.

12. Sobre esta concreta matéria e nesse sentido podemos ler no Acórdão do S.T.J. de 27/11/2018 (…)

13. No caso dos autos, a Recorrida, adquiriu a fracção autónoma identificada nos autos em 22/04/2014, por compra no âmbito do processo de insolvência n.° 477/11...., que correu termos no ... Juízo contra BB.

14. À data dessa aquisição, essa fracção autónoma identificada encontrava-se arrendada à R., Recorrida, por contrato de arrendamento.

15. No processo de insolvência acima identificado a administradora de insolvência elaborou relatório nos termos do artigo 155° do Código de lnsolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) e juntou-o aos autos em 30/06/2011 .

16. Desse relatório, e a propósito da fracção autónoma em causa nos autos, consta que “O único bem que o devedor possui é urna fracção autónoma de um imóvel sito na ... em ..., que adquiriu em Agosto de 1996, onde se localizava a sede da “...” e onde vive permanentemente a sua mãe, pagando-lhe urna renda mensal de 180,00€.

17. A Recorrida tomou conhecimento desse relatório em 04/07/2011.

18. No dia 06/07/2011, foi realizada a assembleia de credores do processo de insolvência de BB, na qual a A., Recorrente, esteve presente, fazendo-se representar pela Exma. Senhora Dra. CC, tendo aí requerido que o “Tribunal (...) notificasse a Sra. Administradora da insolvência, para que completasse o relatório com informações mais concretas sobre a efectiva situação patrimonial do insolvente, designadamente, que fossem feitas as seguintes diligências: saber onde o insolvente reside e com quem reside; a junção do comprovativo do valor que o insolvente recebe da sua mãe a titulo de pagamento de rendas, a indicação da data em que se iniciaram esses pagamentos, bem como a junção de cópia do contrato de arrendamento do imóvel arrendado à sua mãe, caso o mesmo exista ...”.

19. No dia 5 de Setembro de 2011, a Administradora da insolvência requereu a junção aos autos das informações complementares requeridas na anterior assembleia de credores, e nas quais informou que o insolvente vivia com a sua mãe, a aqui Recorrida, há cerca de dois anos, que o insolvente recebia da sua mãe, a Recorrida, urna renda de € 180,00.

20. A Recorrida esteve presente na continuação da assembleia de credores realizada no dia 05/09/2011, fazendo-se representar novamente pela Exma. Senhora Dra. CC.

21. A R. Recorrida, através do seu mandatário, enviou à Administradora da insolvência urna cópia do documento de...

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