Acórdão nº 820/21.2T8TVD-A.L1 .S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 18-06-2024
Data de Julgamento | 18 Junho 2024 |
Case Outcome | NEGADA A REVISTA |
Classe processual | REVISTA |
Número Acordão | 820/21.2T8TVD-A.L1 .S1 |
Órgão | Supremo Tribunal de Justiça |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
1.1. Em 20.09.2017, foi iniciado processo de inventário junto do Cartório Notarial do ..., sito na Av. ..., da Lie. AA, na sequência do óbito de BB, falecida em ........2013, natural do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, de nacionalidade britânica, viúva, com última residência na Rua..., ..., ..., ....
Apresentaram-se como herdeiras CC, residente no ..., e DD, residente em ..., Reino Unido, ambas filhas da inventariada.
Foi junta declaração subscrita por EE, advogado inglês do Supremo Tribunal de Justiça em Inglaterra, onde foi declarado que a inventariada deixou testamento válido e que, de acordo com o mesmo, são suas herdeiras testamentárias, de todos os bens móveis e imóveis, situados e existentes em Portugal, as indicadas CC e DD, e que, de acordo com a Lei de Inglaterra e do País de Gales não existem outras pessoas com direito a herança face à sua Lei Nacional.
Dos documentos juntos aos autos, resulta que a inventariada era proprietária de bem imóvel sito em Portugal.
Convocada a cabeça-de-casal, DD, para prestação de compromisso de honra do bom desempenho da sua função e tornada de declarações, alegou a mesma que a inventariada deixou testamento, outorgado no Reino Unido, em 19.07.2002, elaborado nos termos previstos na legislação aplicável naquele país, o qual foi homologado pelo District Probate Registry at Winchester do High Court of Justice em 26.08.2015, através de documento intitulado de Grant of Probate, tendo sido nomeada Executora testamentária do testamento deixado pela inventariada. Mais alegou que, sendo a inventariada nacional do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, é a lei britânica a competente para regular a sua sucessão por morte, não havendo lugar ao processo de inventário e, consequentemente, o notário carece de competência para proceder nestes termos. Mais alegou que, a inventariada nomeou as suas filhas corno testamenteiras e beneficiárias de todo o seu património, constituído sob a forma de trust, com instruções para o venderem, converterem em dinheiro e, após pagamento das despesas funerárias, de execução de herança testamentária e dos impostos correspondentes, distribuírem entre ambas, em partes absolutamente iguais. Por fim, alegou que o executor testamentário tem plenos poderes para, sozinho, executar o testamento, sendo essa execução válida como se tivesse sido realizada com a concordância dos demais testamenteiros, pelo que tem plenos poderes para vender quaisquer bens da inventariada, sem necessidade de consultar ou obter previamente qualquer consentimento da interessada para o efeito, uma vez que o testamento da inventariada exclui expressamente a aplicação da Secção 11, da Trusts of Land and Appointment of Trustees Act, 1996.
Requereu o seu reconhecimento nessa qualidade e, consequentemente, que o Tribunal declare a extinção dos autos, por impossibilidade superveniente da lide, ou, caso assim se não entenda, a remessa do processo para os meios comuns, a fim de decidir a questão.
Por fim, alegou da existência do proc. n.° 9254/1 7.2..., a correr termos no Juiz 5, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte — ... — Juízo Central Cível, onde, para, além do mais, pediu o reconhecimento da sua qualidade de executora testamentária da inventariada, pelo que há uma relação de prejudicialidade e/ou dependência directa relativamente aos presentes autos, devendo os mesmos serem suspensos.
A cabeça-de-casal procedeu à junção de documentos.
Notificada a interessada, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 12.°, n.° 2, da Lei n.° 117/2019, de 13 de Setembro, a mesma nada disse.
Por requerimento de 27.01.2020, a cabeça-de-casal requereu a remessa dos autos para o Tribunal competente, o que foi determinado por despacho de 19.01.2021.
Por despacho proferido em 17.10.2021, foi a interessada notificada para, no prazo de dez dias, se pronunciar sobre a aplicabilidade da lei britânica enquanto lei da nacionalidade da inventariada; a impossibilidade superveniente da lide; e a prejudicialidade da acção de petição de herança.
Por requerimento de 18.10.2021, a interessada juntou aos autos documento que lhe confere poderes de executora testamentária da inventariada.
A interessada CC, em sede de resposta, alegou que a inventariada faleceu em Portugal, onde residia desde 2008, sendo que a lei inglesa, lei pessoal da inventariada, faz reenvio para a lei portuguesa, que aceita o reenvio, pelo que é esta a lei aplicável à sucessão, sendo o Tribunal competente para o inventário. Alegou, também, que a inventariada também a instituiu como executora testamentária, pelo que os autos não podem ser declarados extintos por impossibilidade superveniente da lide. Por fim, alegou que o proc. n.° 9254/17.2... não tem por objecto a partilha do acervo hereditário deixado pela inventariada, não havendo lugar à extinção da instância, ou mesmo suspensão.
Em 29.03.2022, foi junta aos autos certidão da sentença proferida no proc. n.° 9254/17.2..., em que foi decidido, entre o mais: "a) Se reconhecem a A. e a R. como únicas herdeiras testamentárias e beneficiárias do património deixado, sob trust, por óbito de BB. b) Se reconhece a A. como executora testamentária do testamento de BB. C) Se condenam os RR. a restituir à herança de BB a quantia de € 6 794 (seis mil, setecentos e noventa e quatro euros e trinta e seis cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal em cada momento vigente, desde a citação até integral pagamento."
Notificadas as partes para, querendo, se pronunciarem sobre a competência dos tribunais portugueses para o inventário, atentos os bens em causa nos autos, veio a cabeça-de casal alegar que foi reconhecida como a única executora testamentária da inventariada e a lei aplicável é a lei britânica, a qual é a aplicável ao testamento, não havendo lugar a processo de inventário e, consequentemente, o tribunal português não é competente, que o documento junto pela interessada designado por "Concessão da Sucessão" tem um selo cuja autenticidade se desconhece e sem a necessária homologação pelo District Probate Registry at Winchester do [-llgb Court of Justice, não lhe reconhecendo qualquer autenticidade, não podendo a interessada ser tida como executora testamentária da inventariada com base em tal documento. A final, pede o reconhecimento como única executora testamentária da inventariada.
Por sua vez, a interessada reiterou que a lei aplicável à sucessão é a portuguesa, sendo o Tribunal competente, e que também é executora testamentária da inventariada.
Em 11.10.2022, foi proferido despacho a solicitar os bons ofícios do Departamento de Cooperação Judiciária e Relações Internacionais da PGR para que informasse quanto ao significado, conteúdo e efeitos do direito/qualidade das partes no quadro do direito britânico/inglês determinado.
Após estudo da informação facultada pelo Gabinete de Documentação e Direito Comparado da PGR, a Mmã Juiz "a quo"considerou-se apta a aferir da competência do Tribunal.
E, invocando o seguimento da interpretação do Supremo Tribunal de Justiça, entendeu que a lei pessoal da de cujus é a lei da sua residência habitual ao tempo do seu falecimento - Portugal —, sendo, por isso, aplicável a lei portuguesa, pelo que o processo de inventário deve prosseguir, sendo o presente Tribunal o competente.
Acrescentou ainda que, sem prejuízo da sentença proferida no proc. n.° 9254/1 7.2..., ter decidido as questões que lhe foram colocadas por aplicação da lei do Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda do Norte, tal não impede a decisão tomada, na medida em que não se debruçou sobre os ordenamentos jurídicos plurilegislativos, como é o caso do mencionado Reino Unido.
1.2. DD recorreu desta decisão, pedindo a respectiva revogação e substituição da mesma por outra que determine o arquivamento do processo de inventário a correr em Portugal por impossibilidade e inutilidade superveniente da lide, nos termos e para os efeitos do art9 277, al. e) do CPC e, por efeito direto da autoridade de caso julgado, apresentando os argumentos sintetizados nas respectivas conclusões.
CC, Recorrida nos autos, pugnou pela improcedência do recurso.
1.3. O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, nada obstando ao conhecimento do seu mérito, tendo sido apurado o seu objecto que assim foi definido: “São questões a decidir:- Saber se o despacho recorrido viola a autoridade do caso julgado; Qual o ordenamento jurídico aplicado à partilha (um dos existentes na Grã-Bretanha ou o Português).”
1.4. Conhecido o recurso veio ser proferido acórdão que decidiu:
“Pelo exposto, atentas as disposições legais citadas e as considerações expendidas, julga-se improcedente o presente recurso e, confirma-se a decisão recorrida. Custas pela apelante (art. 527 nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).”
1.5. Desse acórdão veio apresentado recurso de revista, por DD, nos termos do disposto nos artigos 671.º, n.º 2, al. a), 629.º, n.º 2, al. a) e 674.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, todos do Código de Processo Civil, e no qual formulou as seguintes conclusões (transcrição):
1) O presente recurso vem interposto do Acórdão que julgou improcedente o Recurso de Apelação, interposto pela ora Recorrente, e confirmou a decisão que concluiu pela aplicação ao presente processo de Inventário da lei portuguesa, tendo concluído que não se verifica qualquer violação de autoridade do caso julgado.
2) O Acórdão de que ora se recorre, ao decidir pela confirmação da decisão recorrida, contém uma errada interpretação da matéria de direito, cuja aplicação da lei impunha decisão diversa da recorrida, colocando em causa o disposto sobre o acesso aos tribunais com tutela dos casos julgados, o valor da sentença transitada em julgado, bem como o seu alcance e efeitos, e dessa forma violou o que se...
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