Acórdão nº 818/15.0T8CBR.C1 de Tribunal da Relação de Coimbra, 12-09-2023

Judgment Date12 September 2023
Year2023
Acordao Number818/15.0T8CBR.C1
CourtCourt of Appeal of Coimbra (Portugal)

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:



***

I – Relatório

Em execução para pagamento de quantia certa, movida pela “Banco 1..., S. A.”, com os sinais dos autos,

contra os executados AA, BB e CC, também com os sinais dos autos,

tendo sido penhorado um imóvel, foi posteriormente decidida a respetiva venda mediante leilão eletrónico, venda essa que, interposto recurso, veio a ser anulada por decisão deste Tribunal da Relação.

Ulteriormente, por decisão do Sr. Agente de Execução (doravante, AE), datada de 12/01/2023, foi considerada extinta a execução, por deserção da instância.

Desta decisão veio reclamar a Exequente (mediante requerimento datado de 25/01/2023), pugnando pela substituição da decisão proferida em 12/01/2023 «por outra que considere a extinção da execução por inutilidade superveniente da lide», ao que nada opôs o AE.

Na sequência, mediante despacho judicial datado de 03/03/2023, foi assim decidido:

«Quanto à reclamação da decisão do Sr Agente de Execução apresentada pela Exequente em 25-01-2023, tendo presente a pronúncia junta em 23.02.2023, determino, remetendo para a comunicação do Sr Agente de Execução e requerimento da exequente, por razões de economia processual, a revogação dessa decisão, devendo ser substituída por outra que considere a extinção da execução por inutilidade superveniente da lide.

Notifique e comunique.» ([1]).

E, por decisão do AE de 07/03/2023, foi exarado o seguinte:

«Extingue-se a presente execução nos termos da alínea e) do artigo 277.º e da al. c) do art. 849.º, ambos do CPC – por inutilidade superveniente da lide.» ([2]).

Em 13/03/2023 veio a Exequente, por sua vez, requerer ao Tribunal que ordenasse ao AE a transferência imediata para aquela «do produto da venda, conforme apurado na nota discriminativa respectiva» ([3]), perante o que foi proferido despacho afirmativo de que «As entregas dos produtos da venda apenas devem ocorrer com o trânsito em julgado da decisão de 03/03/2023» ([4]).

A Executada CC, em 18/04/2023, veio, por sua vez, interpor recurso do aludido despacho judicial de 03/03/2023 e, bem assim, da decisão extintiva do AE de 07/03/2023, apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([5]):

«1. Devem ser revogados o douto despacho recorrido, com a ref.ª citius nº 90639860, de 03.03.2023, aqui dado por integralmente reproduzido, e a decisão de extinção da instância do senhor A.E., com a ref.ª citius nº 7916440, de 07.03.2023, aqui dada por integralmente reproduzida,

2. Foi proferida mui douta Decisão Singular em 27.02.2018, com a ref.ª citius nº 7908056, por este Tribunal Superior, depois confirmada (na sequência de reclamação da Banco 1..., S.A.) por igualmente mui douto Acordão de 27.05.2018, também deste Tribunal Superior, com a ref.ª citius nº 8070283, os quais se dão por integralmente reproduzidos, e que correram termos em separado como apenso “C”.

3. Em resultado de tal Aresto deste Tribunal Superior foi anulada a venda por leilão eletrónico em 12.07.2017 do imóvel de que é comproprietária a aqui apelante e que constitui a sua casa de morada de família.

4. Todavia, ao cabo de praticamente 5 (cinco) anos, continua sem ser dado cumprimento ao determinado por este Tribunal Superior.

5. Com efeito, confrontados com as sucessivas recusas do senhor Conservador da ... Conservatória do Registo Predial de,

A saber, brevitatis causa, as constantes dos Ofícios de 03.03.2022, com a ref.ª citius nº 7101734, de 02.12.2021, com a ref.ª citius nº 6894027, de 09.12.2019, com a ref.ª citius nº 5458356, e de 16.09.2019, com a ref.ª citius nº 5248709, todos dados nesta sede por integralmente reproduzidos,

O senhor A. E., com o beneplácito da Meritíssima Juiz do processo, nas decisões sub judicio, pretendem sem mais extinguir a instância, desta feita, por uma suposta inutilidade superveniente da lide.

6. Por uma razão simples: tudo indica que o registo da tal venda anulada por este Tribunal Superior foi feito sem a necessária prudência.

Mas também porque não foi feito uso do instrumento legal mencionado nos Ofícios do senhor Conservador da ... Conservatória do Registo Predial de por banda da Meritíssima Juiz do processo.

7. Chegados aqui, temos que a aqui apelante, que já não vai para nova, tal como o marido, são avós de 4 netos, um deles já maior de idade, e pessoas de fracas posses, mas com uma vida de muito trabalho às costas,

Foram retirados da sua casa contra sua vontade, com o auxílio de forças policiais, encontrando-se a viver numa casa arrendada há praticamente seis anos,

A assistirem a esta inércia, e a um espetáculo verdadeiramente desprestigiante da imagem da Justiça.

8. Pior, a Banco 1..., S.A., que tanto quis a venda imediata do imóvel sub judicio, venda esta, como salientámos, anulada por este Tribunal Superior, ainda vem agora a terreiro reclamar o produto de tal venda.

Sucede que,

9. As decisões, sub judicio, objeto do presente recurso, constituem uma violação do dever de acatamento por parte dos tribunais inferiores das decisões proferidas em via de recurso pelos tribunais superiores, segundo o qual aqueles ficam subordinados à decisão do tribunal superior no âmbito do processo em que a decisão é proferida, consagrado pelas leis de processo e de organização judiciária.

10. Esse dever de obediência surge desde logo no art.156º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que dispõe: “Os juízes têm o dever de administrar a Justiça, proferindo despacho ou sentença sobre as matérias pendentes e cumprindo, nos termos da lei, as decisões dos tribunais superiores.”.

11. O mesmo princípio foi de igual modo consagrado na Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, nomeadamente no n.º 2 do art. 3.º da Lei n.º 38/87, de 23/12, no n.º 2 do art. 4.º da Lei n.º 3/99, de 13/01, e no atual n.º2 do art. 4.º da Lei n.º 62/2013, de 26/08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário), bem como no Estatuto dos Magistrados Judiciais, conforme o art. 4º, n.º 1, da Lei n.º 21/85 de 30/07.

12. Em consequência, o não acatamento pelos Tribunais inferiores das decisões dos Tribunais superiores quando proferidas em via de recurso e estejam transitadas em julgado, constitui nulidade insuprível.

13. Consequentemente, de acordo com o art. 195.°, n.º 1 do CPC, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva (só) produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

14. Concluindo-se, por força desta disposição legal, que um ato tem de ser anulado, ter-se-á, de acordo com o que determina o n.º 2 do citado preceito, que anular os termos subsequentes que desse ato dependam absolutamente.».

Pugna, assim, pelo provimento do recurso.

Contra-alegou a Exequente, concluindo assim ([6]):

«A – A Douta Decisão Singular proferida por este Tribunal Superior em 27.02.2018, e confirmada pelo Douto Acórdão de 22.05.2018, ordenou a anulação da venda do imóvel penhorado nos autos, realizada em 12.07.2017.

B – Contudo, à data da prolação da Douta Decisão Singular e posteriormente, do Douto o Acórdão, o imóvel em questão já havia sido vendido a Terceiro de boa-fé, e registada a respetiva aquisição pela AP. ...70 de 2017/11/14.

C – Seguiram-se mais duas transmissões do imóvel, a título oneroso, registadas pela AP. ...29 de 2018/12/10 e pela AP. ...55 de 2019/06/13.

D – Por conseguinte, quando foi requerida pelo Tribunal, a anulação do registo de aquisição registado pela AP. ...70 de 2017/11/14, este já não se encontrava em vigor.

E - Face às transmissões da propriedade ocorridas depois da venda judicial, em 27.02.2022, a ... Conservatória do Registo Predial de , proferiu despacho de qualificação de recusa do averbamento de cancelamento do registo de aquisição, efetuado na sequência da venda por leilão eletrónico em 12.07.2017.

F – Considerando que o registo de aquisição a favor de Terceiro, registado pela AP. ...55 de 2019/06/13, deverá ser acautelado por ser anterior ao registo da ação de nulidade ou anulação, nos termos do disposto no art.º 291º nº 1 do Código Civil.

G - E não existir ação instaurada e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio, nos termos do art.º 291º nº 2 do Código Civil.

H – Deste modo, não sendo possível a anulação do registo de aquisição, efetuado na sequência da venda por leilão eletrónico em 12.07.2017, a Banco 1..., S.A. manifestou-se no sentido de o Sr. Agente de Execução proceder aos respectivos pagamentos, já que nada mais haveria a decidir.

I – E nesse seguimento, em 07.03.2023 foi declarada a extinção da execução por inutilidade superveniente da lide, solicitando a aqui Recorrida o pagamento a que tinha direito.

J- Pelo deverá ser o Douto despacho, agora recorrido ser mantido.

Pelo que não dando provimento ao presente recurso, mantendo o despacho recorrido, V.Exas. farão como sempre

JUSTIÇA».

O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo ([7]), tendo então sido ordenada a remessa dos autos ([8]) a este Tribunal ad quem, onde foram mantidos o regime e o efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação recursória, ao conhecimento da matéria da apelação, cumpre apreciar e decidir.

***

II – Âmbito recursivo

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais, como é consabido, definem o objeto e delimitam o âmbito recursório ([9]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, o thema decidendum consiste em saber, no essencial, se, atenta a sua dupla vertente – por incidir, a um tempo, sobre um despacho judicial e uma (posterior) decisão do AE –, é revestido de admissibilidade e procedência o recurso...

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