Acórdão nº 810/07.8TBETR.P2.S1 de Supremo Tribunal de Justiça, 22-06-2023
Data de Julgamento | 22 Junho 2023 |
Case Outcome | CONCEDIDA PARCIALMENTE |
Classe processual | REVISTA |
Número Acordão | 810/07.8TBETR.P2.S1 |
Órgão | Supremo Tribunal de Justiça |
I - Relatório
O Autor intentou uma ação popular contra os dois primeiros Réus, pedindo:
a) a condenação dos réus a absterem-se de praticar qualquer ato na praia do Monte Branco, em toda a zona assinalada a amarelo na planta junta como documento n.º 1 com a petição da providência cautelar apensa aos presentes autos, nomeadamente impeditivo do acesso e fruição da mesma por qualquer cidadão, nela colocando quaisquer objetos, vedando-a, impedindo a sua manutenção e arranjo pela A., realizando qualquer ato que desvirtue a utilização da mesma como praia pública e de livre acesso;
b) que seja reconhecido que a zona identificada a amarelo na planta junta como documento n.º 1 com a petição da referida providência cautelar é domínio público;
c) para a hipótese de assim se não entender, sempre deveria tal zona ser considerada como sujeita a uma servidão de uso público como praia, podendo qualquer cidadão por aí circular livremente, utilizá-la como praia, aí permanecendo, aceder à ria, não podendo aí exercer quaisquer atos que impeçam ou alterem a sua função de praia;
d) que os réus sejam condenados, solidariamente, a pagar ao autor a quantia de € 26.227,88, a que devem acrescer juros à taxa legal contados desde a citação e até integral pagamento, respeitando € 1.277,88 ao montante despendido pelo autor para limpeza da praia, e € 25.000,00 a título de danos morais, pela lesão ao ambiente e qualidade de vida e pela lesão do património natural e cultural, que o autor destinará exclusivamente a ações de promoção de defesa do ambiente e de lazer da população.
Alegou como causa dos pedidos formulados o seguinte:
- Na freguesia da Torreira, concelho da Murtosa, existe, desde tempos imemoriais, uma praia de areia na Beira-Ria (Ria de Aveiro) denominada de Monte Branco, junto à Casa dos Marinheiros.
- Tal praia estende-se de sul para norte, iniciando-se a sul do local onde até há cerca de 15 ou mais anos esteve um bar de praia instalado num barco de pesca de arte xávega e vai até um armazém (antigo armazém da aviação naval) que existe junto à Ria para recolha de barcos e, antigamente, há mais de 40 anos, para apoio aos hidroaviões da aviação nacional, tendo a extensão e localização assinalada com a cor amarela na planta junta a folhas 7 do procedimento cautelar apenso.
- Em frente à Praia e a separá-la da EN 327, no espaço compreendido entre o seu início, a sul, e sensivelmente a Casa dos Marinheiros, a norte, a Câmara Municipal da Murtosa construiu há mais de 30 anos um passeio em cimento com uma largura de 2,75 metros e, ao lado desse passeio, ainda existe uma berma, em terra batida, com cerca de três metros de largura que é utilizada para estacionamento de automóveis.
- Desde tempos imemoriais que, nesse espaço, as pessoas armam barracas de praia, colocam guarda-sóis, estendem toalhas, deitam-se na areia, jogam, brincam e vão tomar banho na Ria, usam o passeio para passear e, ao sair da praia, para se sentarem e limparem a areia dos pés, tudo isto sem impedimento de qualquer pessoa e aos olhos de todos, na plena convicção de estarem a exercer um direito, convictos que estão num local público, sendo o acesso permitido à generalidade das pessoas.
- A praia, na zona em que existe o passeio, estende-se desde a Ria até ao passeio, sendo que, todos os anos, durante a época balnear, o Município da Murtosa coloca, na praia, areia branca, procede à limpeza da praia, coloca caixotes de lixo e faz a respetiva recolha.
- No dia 22.05.2007 a Câmara Municipal da Murtosa transportou 400 m3 de areia da praia oceânica para a praia do Monte Branco.
- Quando, no dia 23.05.2007, os seus funcionários se aprestavam para espalhar a areia na praia, foram impedidos pelos Réus, tendo, ainda, no dia 24.05.2007, com o auxílio de uma máquina, arrancado os lancis dos passeios e espalhado os mesmos pela praia.
- No dia 26.05.2007, espalharam pela praia ramos de acácias, outra vegetação e detritos.
- Os Réus serão donos de um terreno de grande extensão aí situado, mas do lado oposto da EN 327, ou seja, a poente desta, pretendendo construir em tal terreno, tendo apresentado, na Câmara Municipal, um pedido para o efeito, pedido que ainda não lhe foi deferido.
- Procurando pressionar a Câmara, desencadearam as aludidas ações, aparecendo agora a intitularem-se donos da dita praia.
Além dos dois primeiros Réus, foi também citado o Ministério Público, atento o seu papel de fiscalizador da legalidade, conforme consta do despacho que determinou a sua citação.
Contestaram os dois primeiros Réus do seguinte modo:
Excecionaram:
- a ilegitimidade do Réu AA, por este estar desacompanhado do seu cônjuge BB;
- a ilegitimidade do Autor, por este, com a presente ação, não pretender defender o domínio público marítimo, mas reivindicar uma parte de uma propriedade privada para os seus munícipes.
Impugnaram a factualidade alegada pelo Autor, defendendo que o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 532/19890908, de que são proprietários, se estende, a nascente da EN 327, até à Beira-Ria (salvaguardada a zona de 11 metros do domínio hídrico) e a norte abrange também, para além de uma parte assinalada no mapa a amarelo, todo o terreno onde se encontra edificada a casa dos marinheiros, desde a Beira-Ria até à EN 327, em espaço assinalado na aludida planta a branco e a verde.
Por outro lado, ainda, invocaram o seguinte:
- Esse seu imóvel fazia parte outrora dos baldios municipais que se estendiam por toda a costa da Torreira, entre a Ria e o Mar, desde Ovar a São Jacinto (artigo 43º da contestação), que esses «baldios» já antes de 1864 estavam na fruição conjunta das populações radicadas na circunscrição administrativa correspondente ao então concelho de Estarreja (artigo 44º da mesma peça), que, desses «baldios», no uso dos poderes que a CM de Estarreja detinha, foram desaforadas (isto é, transmitidas), em 1926, várias parcelas situadas na costa da Torreira, nelas se incluindo, a pedido de CC (representado por DD) um terreno «baldio» de que fazia parte o aludido prédio dos réus, terreno que veio assim, por aquele meio, a pertencer ao dito CC.
- Posteriormente, por óbito deste último e dos seus herdeiros (EE e FF) veio o dito terreno a caber aos seus respetivos herdeiros, herdeiros esses que vieram, posteriormente, em 1968, a vender o prédio ora em causa ao aqui Réu AA, o qual, por sua vez, vendeu, em 1972, metade indivisa do mesmo imóvel ao seu irmão e também Réu GG.
- Para efeitos do preceituado no artigo 15.º da Lei n.º 54/2005 de 15.11. (Lei que estabelece a titularidade dos recursos hídricos), o prédio de que se arrogam proprietários por mor da aquisição em 1968 e 1972 era, antes de 1864, objeto de propriedade comum e que passou a integrar, desde 1926, o domínio privado, situação em que se manteve desde essa data e até hoje por força das sucessivas transmissões antes descritas.
- Daí que há mais de 30 anos que ocupam esse imóvel com a implantação e delimitação referida, usufruindo deles à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, cultivando-os com árvores de folha perene, cortando e utilizando a sua madeira, pagando os seus impostos, na convicção de serem seus proprietários.
- Todos os imóveis que confrontam com o areal do Monte Branco têm como limite a nascente a Beira-Ria, apenas tendo sido divididos em duas parcelas pela construção da EN 327 em 1955.
- Em razão do comportamento do Autor viram-se obrigados a interromper os trabalhos de limpeza que andavam a executar no seu prédio a nascente da EN 327 e impedidos de utilizar a totalidade do seu prédio desde a decisão proferida a 6.07.2007 na providência cautelar, o que os faz sentir humilhados e envergonhados com a desconsideração perpetrada pela atuação do Autor.
Concluíram pela improcedência da ação, deduzindo reconvenção, na qual pedem a final:
a) a condenação do Autor/Reconvindo a pagar aos Réus/Reconvintes, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados, importância não inferior a € 10.000,00 e, ainda, os danos patrimoniais cujo montante relegam para execução de sentença;
b) que lhes seja reconhecido o seu direito de propriedade plena sobre a totalidade do prédio situado na zona do Monte Branco, ..., ..., do concelho da Murtosa, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 47981 (532/19890908) e inscrito na matriz da freguesia ..., Murtosa sob os nºs. 1428, 1429, 1425 e 1740.
Peticionaram, ainda, a condenação do Autor, como litigante de má-fé, em indemnização no valor de € 5.000,00.
O Autor, em réplica, respondeu à matéria de exceção e da reconvenção, pugnando pela sua improcedência, tendo, ainda, impugnado parcialmente a factualidade alegada pelos Réus.
Terminou pela improcedência das exceções e da reconvenção deduzida.
Os dois primeiros Réus, na tréplica, mantiveram o alegado na sua contestação.
O Autor foi convidado a deduzir incidente de intervenção provocada relativamente a BB, incidente que veio a ser deduzido e admitido.
A Interveniente BB veio a contestar, mantendo, no essencial, a posição já antes adotada no processo pelos demais Réus.
Terminou, pedindo a condenação do Autor como litigante de má-fé, em multa e numa indemnização a pagar à Interveniente, para além da pedida pelos Réus, em importância não inferior a € 5.000,00.
Foi proferido despacho saneador que julgou improcedentes as exceções de ilegitimidade ativa do Autor e passiva do Réu AA.
Procedeu-se a julgamento, findo o qual, em 7.02.2019, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a ação e improcedente a reconvenção.
O dispositivo foi, mais precisamente, o seguinte:
“Julgo, nos termos e pelos fundamentos expostos, a ação parcialmente procedente e em consequência:
a) condeno os RR. e a Interveniente:
1º - a absterem-se de praticar qualquer ato, na praia do Monte Branco, por esta ser do domínio público, em toda a zona assinalada a...
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