Acórdão nº 792/20.0YRLSB.S2 de Supremo Tribunal de Justiça, 15-04-2021

Data de Julgamento15 Abril 2021
Case OutcomeNEGADO PROVIMENTO.
Classe processualEXTRADIÇÕ/M.D.E.
Número Acordão792/20.0YRLSB.S2
ÓrgãoSupremo Tribunal de Justiça





Proc. n.º 792/20.0YRLSB.S2

I

Relatório

1. Por acórdão do Tribunal da Relação ……, de 31.03.2020, no processo de execução de mandado de detenção europeu contra AA, nascido a ...07.1977, e natural .............., da República Federativa do Brasil, foi decidido deferir e, consequentemente, executar Mandado de Execução Europeu (MDE) emitido pelas autoridades francesas, não tendo o interessado renunciado ao princípio da especialidade.

2. Nos termos do art. 18.º, da Lei n.º 65/2003, de 25.08 (alterada pela Lei n.º 35/2015, de 4 de maio, adiante designada LMDE), foi o interessado ouvido a 12.03.2020, foi validado o MDE, e decidida a manutenção da sua detenção, tendo sido conduzido ao Estabelecimento Prisional ....... no mesmo dia.

3. O detido interpôs recurso, nos termos do art. 24.º, n.º 1, al. b), e n.º 5, da LMDE, para o Supremo Tribunal de Justiça.

4. Por acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 07.05.2020, foi concedido parcial provimento ao recurso interposto pelo detido, julgando nulo o acórdão recorrido, nos termos dos arts. 379.º, n.º 1, al. a), 374.º, n.º 2, e art. 374.º, n.º 1, al. c), todos do Código de Processo Penal, ex vi art. 34.º, da Lei n.º 65/2003, de 23.08.
No mesmo concluiu-se, para além do mais, que:
"- a partir da matéria de facto provada, verificamos que Portugal é também o local da prática do facto, pelo que se torna pertinente verificar se existem causas de recusa facultativa de execução do MDE à luz dos arts. 11° e/ou 12.°, da LMDE, e em particular, à luz do art. 12°, n.° 1°, al h), da LMDE; e mesmo que se considere que os factos integram apenas uma contraordenação, poderá ainda assim não se justificar a recusa (facultativa) de execução do MDE, mas cabe ao tribunal a quo pronunciar-se, pelo que existe nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, nos termos do art. 379.°, n. ° 1, al. c), do CPP, ex vi art. 34. °, da LMDE;
- cabe ao Tribunal averiguar se foi ou não instaurado procedimento contra o recorrente pelos factos constantes do MDE, e consequentemente pronunciar-se sobre a possibilidade (ou não) de recusa facultativa nos termos do art. 12. °, als. b) e/ou c), da LMDE, suprindo a omissão existente;
- constituindo fundamento do MDE a prática de crime de participação em organização criminosa, e não estando explícito se se trata apenas de tráfico de cetamina ou de outra substância psicotrópica ou psicoativa, deve o Tribunal a quo solicitar, ao abrigo do disposto no art. 22. °, n. ° 2, da LMDE, informações suplementares;
- não se sabendo se o recorrente tem visto de residência, e porque este facto é relevante para uma decisão de execução sob condição, ao abrigo do disposto no art. 13.°, n.° 1, al. b), da LMDE, deve a matéria de facto ser completada, de modo a suprir a nulidade, por força do art. 379°, n.° 1, al. a), do CPP, ex vi art. 34°, da LMDE; do que se averiguar quanto a este ponto, poderão ser relevantes mais informações quanto às condições de vida do recorrente."
5. Por decisão proferida, pelo Tribunal da Relação …., em 05.06.2020, e por se ter atingido o prazo de duração máxima da detenção, a que alude o art. 30° n° 2, da Lei n° 65/2003, de 23.8, foram emitidos os competentes mandados de libertação do detido.
6. Na sequência do decidido e ordenado pelo Supremo Tribunal de Justiça, o Tribunal da Relação ….., por forma a verificar se existiam as apontadas causas de recusa de execução do MDE [em particular à luz do art. 12° n° 1 als. h), b), e/ou c), da LMDE] e complementar a respetiva matéria de facto, solicitou, às Autoridades Francesas, informações suplementares, ao abrigo do disposto no art. 22.° n.° 2, da LMDE, designadamente para apurar se trata apenas de tráfico de cetamina, ou de outra substância psicotrópica ou psicoativa, recolheu informação sobre se foi instaurado, em Portugal, procedimento criminal ou de contraordenação, contra o requerido, pelo objeto do presente MDE, e, bem assim, para efeitos do preceituado no disposto no art. 13.° n.° 1 al. b), da LMDE, mais mandou apurar, junto do SEF, se o requerido tem visto de residência em Portugal e, em caso afirmativo, até que data.
7. Reunidas as informações suplementares acima mencionadas, foi designada data para a produção de alegações orais, nos termos do art. 21.º n.º 5 da LMDE, que se realizaram, tendo a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta sustentado que se determinasse a execução do Mandado de Detenção Europeu e a Ex.ª Mandatária do requerido reiterado os fundamentos enunciados na oposição deduzida.

8. Por acórdão de 17.11.2020, o Tribunal da Relação …… decidiu julgar improcedente a oposição do detido e decidiu deferir e, consequentemente, executar Mandado de Execução Europeu (MDE) emitido pelas autoridades francesas, não tendo o interessado renunciado ao princípio da especialidade.

9. O detido vem interpor recurso deste acórdão, nos termos do art. 24.º, n.º 1, al. b), e n.º 5, da LMDE, para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões:
1° França não é o país mais bem posicionado para investigar os factos, porque os efeitos não se produziriam nesse espaço, mas sim em Portugal.
2º Verificou-se uma detenção em França, mas também houve duas detenções em Portugal.
3º O facto de o Ministério Público ter tomado conhecimento dos factos e não haver instaurado processo justifica a recusa de execução do mandado.
4º Ao tribunal português não incumbe apenas verificar a regularidade formal do mandado e dar-lhe execução.
5º A tradução do ofício de 25 de junho de 2020 não foi notificada ao recorrente, o que constitui irregularidade geradora de invalidade, porque atempadamente arguida.
6º É nulo o acórdão recorrido por omissão de pronúncia, visto não ter decidido dar como provado ou não provado que o processo francês que originou a emissão do mandado de detenção europeu contra o recorrente apenas respeita ao tráfico de cetamina (ou ketamina).
7º Tal nulidade resulta outrossim de não se ter decidido se tal circunstância conduziria à recusa de execução do mandado.
8º Não procedendo a exame crítico das provas nem fazendo alusão às declarações do arguido, o tribunal recorrido incorre em vício de falta de fundamentação, o que torna o respetivo acórdão nulo.
9º Tal vício decorre também da circunstância de não se explicar por que razões se excluiu a recusa de execução não obstante o Ministério Público ter tomado conhecimento dos factos, abstendo-se de instaurar procedimento, tendo os factos ocorrido também em Portugal.
10° A verdade é que bem se justifica conceder a recusa de execução do mandado, considerando a enorme discrepância de resposta sancionatória na ordem jurídica portuguesa e no Direito francês.
11° Por ofenderem os n°s 1, 2, 3 e 4 do artigo 29º e o n° 7 do artigo 33.º da constituição, são a ela contrárias as regras constantes da alínea e) do n° 2 e do n° 3 do artigo 2.º e da alínea f) do artigo 11.º da Lei n° 65/2003, de 23 de agosto.
12º Normas jurídicas violadas
da Lei n° 65/2003, de 23 de agosto:
- artigo 2º - alíneas c) e h) do n° 1 do artigo 12º
do código de processo penal:
- artigo 123º- n° 2 do artigo 374º- alínea c) do n° 1 do artigo 379º
- n° 4 do artigo 425º
da constituição:
- n°s 1, 2, 3 e 4 do artigo 29º
- n° 7 do artigo 33º.
13º O tribunal interpretou o artigo 2° da da Lei n° 65/2003, de 23 de agosto como permitindo apenas a verificação da regularidade formal do mandado e a determinação da sua execução, quando o deveria ter interpretado no sentido de que a norma estabelece os pressupostos que consentem a execução do mandado, competindo ainda verificar se há fundamento para a recusa de tal execução.
14º Erradamente, o tribunal julgou aplicável a alínea b) do n° 1 do artigo 12º da Lei n° 65/2003, de 23 de agosto, quando esta norma apenas é aplicável se no Estado da execução, em Portugal, existir um processo pelos mesmos factos, o que não é o caso.
15º O tribunal deveria ter aplicado as alíneas c) e h) do n° 1 do artigo 12º da Lei n° 65/2003, de 23 de agosto, recusando a execução do mandado.
16º Termos em que deve ser considerada nula a decisão recorrida ou, caso assim não se entenda, ser a mesma revogada, recusando-se a execução do mandado”

10. Nos termos do art. 24.º, da LMDE, foi a interposição do recurso notificada ao Ministério Público, que respondeu pugnando pela improcedência do recurso.

11. Subido o recurso ao Supremo Tribunal de Justiça foi, nos termos do art. 25.º, da LMDE e art. 379.º, n.º 3, do CPP ex vi art. 34.º, da LMDE, concluso, à relatora, para acórdão.

Colhidos os vistos legais, cumpre agora decidir.

II

Fundamentação

A. Matéria de facto

1. Segundo o acórdão do Tribunal da Relação ……, a matéria de facto relevante para a decisão é a seguinte:

«1. O mandado de detenção europeu (MDE) que, nestes autos, se pretende executar, foi emitido em 11 de Março de 2020, pelas autoridades judiciárias da República Francesa - Juiz de Instrução do Tribunal ……, no âmbito do processo n° 19270000118.

2. O mandado de detenção europeu foi emitido para efeitos de procedimento criminal.

3. O requerido é, naquele país, alvo de procedimento criminal pela prática, como co-autor, de factos alegadamente ocorridos em 26-09-2019, os quais, de acordo com a Lei da República Francesa, integram os crimes de participação em organização criminosa e tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, designadamente tráfico de cetamina, tudo conforme descrição constante no item 044 do Formulário A do SIS, crimes esses puníveis com uma pena máxima de 30 anos de prisão, e previstos nos artigos 222-36, al.l e 2, 222-41, 222-44, 222-45, 222-47, 222-48, 222-49, 222-50, 222-51, 132-71 do Código Penal francês e da lei 5132-7,5132-8, R. 5132-74 R. 5132-77, R5132-78 do Código de Saúde Pública e artigo 1 do Despacho Ministerial de 22 de Fevereiro de 1990 e, ainda, artigos 450-1 al) 1 e 2 , 450-3 e 450-5 do Código Penal, conforme item 040 do sobredito formulário, mais...

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