ACÓRDÃO N.º 741/2020
Processo n.º 391/20
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Mariana Canotilho
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é recorrente A. e recorrida a Ordem dos Advogados, foi pelo primeiro interposto recurso de constitucionalidade ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante designada por LTC) do acórdão proferido por aquele Tribunal, em 2 de abril de 2020, pretendendo ver apreciada três questões:
i) a interpretação normativa feita pela decisão recorrida do artigo 82.º, n.º 1, alínea k), segunda parte, do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA – aprovado pela Lei n.º 145/2015, com as alterações constantes da Lei n.º 23/2020), segundo a qual a GNR é uma força militarizada;
ii) a interpretação normativa feita pela decisão recorrida do artigo 82.º, n.º 1, alínea k), segunda parte, do EOA, no sentido de diferenciar a PSP da GNR;
iii) a interpretação normativa do artigo 188.º, n.º 1, alínea d), do EOA, no sentido de se aplicarem aos advogados estagiários as incompatibilidades para o exercício da advocacia.
2. No curso do processo a quo, o ora recorrente apresentou intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias perante o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que julgou improcedente o pedido para que a Ordem dos Advogados aceitasse a inscrição do recorrente como advogado estagiário. Desta decisão, o recorrente interpôs recurso de revista per saltum para o Supremo Tribunal Administrativo. O STA, por meio do referido acórdão de 02 de abril de 2020, julgou improcedente o pedido e confirmou a decisão de primeira instância.
Com interesse para os autos, pode ler-se na decisão:
“A questão de fundo que se discute neste recurso e sobre a qual este Tribunal tem de se pronunciar é, como vimos, a de saber se um militar da GNR é ou não um «membro das Forças Armadas ou militarizadas», para efeitos do disposto na alínea k) do n.° 1 do artigo 82.° do EOA, e se, em consequência, a Requerida está ou não obrigada a inscrever o Requerente como Advogado-Estagiário, como vem por este peticionado. No caso de se concluir positivamente pela subsunção da situação de facto descrita nos autos à referida previsão normativa, coloca-se também a este Tribunal a questão de saber se aquela disposição legal é conforme com a Constituição, à luz da liberdade de escolha de profissão garantida pelo n.° 1 do seu artigo 47°, não apenas porque essa questão foi expressamente suscitada pelo recorrente, mas também porque, atenta a sua natureza, a presente ação não pode deixar de implicar para o julgador um dever de diligência acrescido na indagação da conformidade do quadro legal aplicável com as normas constitucionais relativas aos correspondentes direitos fundamentais.
9. É ponto assente na presente ação que a GNR é uma força de natureza militar, apesar de não fazer parte das Forças Armadas. Que a GNR é uma força de natureza militar resulta evidente, desde logo, do n.° 1 do artigo Io da Lei n.° 63/2007, de 23 de novembro, que aprovou a sua orgânica, e que a define como «(...) uma força de segurança de natureza militar, constituída por militares organizados num corpo especial de tropas e dotada de autonomia administrativa». E que não faz parte das Forças Armadas é, do mesmo modo, evidente, pois além de ser apenas uma força de segurança, é uma força organicamente autónoma, que não integra nenhum dos três ramos, nem nenhum dos serviços que compõem as Forças Armadas, nos termos do n.° 1 do artigo 7.° da Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA), aprovada pela Lei Orgânica n.° 1-A/2009, de 7 de julho, e alterada pela Lei Orgânica n.° 6/2014, de 1 de setembro.
A questão verdadeiramente controvertida na presente ação é, pois, a questão de saber se a GNR é uma força militarizada, para o efeito do disposto na alínea k), in fine, do n.° 1 do artigo 82.° do EOA.
Defende o ora Recorrente, em síntese, que «os militares da GNR, sendo militares, não são militarizados», conceito que em sua opinião está reservado a forças que se encontram «acopladas» às Forças Armadas, desempenhando funções complementares destas e inseridas no quadro orgânico do Ministério da Defesa Nacional. Conceito que, nessa perspetiva, apenas parece aplicar-se aos agentes militarizados da Polícia Marítima, criada pelo Decreto-Lei n.° 248/95, de 21 de setembro, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.° 235/12, de 12 de outubro, e ao designado Quadro de Pessoal Militarizado do Exército (QPME), criado pelo Decreto-Lei n.° 550-R/76, de 12 de julho.
O entendimento defendido pelo recorrente não tem, contudo, apoio legal.
Desde logo, porque como o próprio reconhece, não existe um conceito legal de forças militarizadas, e os exemplos que dá dizem respeito ao estatuto funcional de determinados agentes daquelas forças, e não à organização das forças em si mesmas. Ora, a previsão normativa da alínea k) do n.° 1 do artigo 82.° do EOA obedece a um critério orgânico, pelo que está construída por referência à natureza das instituições em que os advogados ou candidatos a advogados se inserem - forças militares ou militarizadas - independentemente do seu estatuto funcional dentro dessas instituições.
Por outro lado, aquele entendimento não tem a mínima correspondência no espírito da lei, assentando num exercício hermenêutico formal - que o recorrente designa como lógica aristotélica - segundo o qual a GNR não pode ser qualificada como uma força militarizada porque é militar, apesar de não ser suficientemente militar para se integrar organicamente nas Forças Armadas. Ou seja, apesar de a sua organização ser ainda mais militarizada do que a de outras forças de segurança, ficaria de fora do âmbito de aplicação da norma. Manda, no entanto, a mais elementar lógica jurídica que um regime que não permite o menos também não permita o mais, e que uma restrição imposta aos membros de forças de segurança de natureza não tão marcadamente militar- ou militarizada - como a GNR, também se lhes aplique.
Na verdade, por forças militarizadas se deve entender todas as forças de segurança que tenham natureza militar, ainda que não pertençam organicamente às Forças Armadas. E é precisamente isso que define a GNR, como está expresso no já citado n.° 1 do artigo Io da respetiva Lei Orgânica, que a qualifica como «(...) uma força de segurança de natureza militar». Atente-se na forma como a própria instituição se define no seu sítio na Internet: «Pela sua natureza e polivalência, a GNR encontra o seu posicionamento institucional no conjunto das forças militares e das forças e serviços de segurança, sendo a única força de segurança com natureza e organização militares, caracterizando-se como uma Força Militar de Segurança. A Guarda constitui-se assim como uma Instituição charneira, entre as Forças Militares e as Forças Policiais e Serviços de Segurança» - cfr. https://www.gnr.pt/missao.aspx. É, aliás, essa sua posição de "charneira" que justifica que a GNR tenha «por missão, no âmbito dos sistemas nacionais de segurança e proteção, assegurar a legalidade democrática, garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos, bem como colaborar na execução da política de defesa nacional, nos termos da Constituição e da lei» - cfr. art. 1.º/2 da Lei n.° 63/2007. O facto de ela se inserir na estrutura orgânica do Ministério da Administração Interna, e não na do...